quinta-feira, 3 de agosto de 2017

‘Simplex’ de obras compromete segurança estrutural de muitos prédios em Lisboa




‘Simplex’ de obras compromete segurança estrutural de muitos prédios em Lisboa

por O Corvo • 2 Agosto, 2017 •

Helena não queria acreditar quando, esgueirando-se à varanda do seu segundo andar na Rua Cidade de Cardiff, em Arroios, se apercebeu do que se estava a passar lá em baixo, no logradouro do rés-do-chão. “Verifiquei, para meu espanto, que estavam a escavar e que, aos poucos, se ia formando um buraco cada vez maior. Só podia ser para uma piscina”, pensou. Os vizinhos haviam avisado, em meados do passado mês de junho, os restantes condóminos de que iriam fazer obras no quintal, sem especificarem qual o seu objectivo. Perante o aparato, no início de julho, Helena pediu-lhe esclarecimentos adicionais. “Estamos a fazer remodelações no jardim, que não implicam com nada do prédio”, responderam por email. Céptica, perguntou-lhes se não se trataria mesmo de uma piscina. Por telefone, acabaram por lhe confirmar aquilo de que desconfiava. Uma obra feita sem a autorização do condomínio nem da Câmara Municipal de Lisboa.

 Casos como este têm vindo a aumentar, nos últimos meses, na mesma proporção do crescimento meteórico do volume dos trabalhos de reabilitação de imóveis na capital portuguesa. Tantos que estarão a pôr em causa a capacidade de resposta dos serviços de urbanismo da autarquia e da Polícia Municipal. Sem meios suficientes para as actuais solicitações, e colocados perante um assinalável avolumar das queixas de cidadãos, ambos os braços do município aos quais cabe a responsabilidade de fiscalização da legislação neste campo tentam fazer o melhor que podem. Mas com dificuldade. Numa das insistências de Helena junto da PM, terá recebido como resposta que teria de aguardar, uma vez que não lhe poderiam indicar uma data para a deslocação ao prédio de uma patrulha, “atendendo ao elevado volume de queixas e à falta de agentes que dispunham actualmente”. Um cenário agravado, em muitos casos, pelo afrouxar dos procedimentos legais a nível nacional, o que dá aos proprietários a ideia de quase imunidade.

 Isso mesmo é reconhecido por Helena Roseta, presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), que pede, por isso, a revisão urgente da legislação. Confrontada, durante uma sessão daquele órgão, na semana passada, com uma queixa de um munícipe sobre os problemas causados num imóvel pelas obras dos vizinhos, Roseta disse que casos como esse são “consequência dos sucessivos simplexs que têm sido feitos na legislação urbanística e que aligeiraram a apreciação pelas câmaras municipais do que as pessoas fazem nos diversos edifícios, criando problemas que podem ser muito graves”, afirmou a presidente da assembleia, a 25 de julho. “Mais que fazermos fiscalizações ad hoc aqui e acolá, o que interessava era rever esta legislação, porque ela tem este problema: nem sempre assegura a verificação da resistência sísmica e da própria resistência estrutural do edifício”, afirmou, considerando estar-se perante um problema “bastante preocupante”.



As obras ilegais de construção da piscina no logradouro do prédio da Rua Cidade de Cardiff

 Um sentimento partilhado por Helena, a moradora da Rua Cidade de Cardiff, que teme pela segurança estrutural do prédio onde vive há onze anos, desde que comprou aquela fracção. “Sobretudo, depois do que se passou na Rua Damasceno Monteiro”, diz, referindo-se ao incidente ocorrido em fevereiro deste ano, quando uma derrocada num condomínio situado a uma cota superior forçou a evacuação e a interdição de três prédios, devido à instabilidade geológica do talude situado nas suas traseiras. A situação naquele arruamento, localizado na fronteira entre as freguesias de Arroios e de São Vicente, obrigou ao desencadear imediato de obras de consolidação da encosta, ainda em curso. “Também aí, no local onde os terrenos cederam, havia uma piscina”, nota a moradora e proprietária de um andar que está situado numa zona em declive, confluente com outros logradouros. “Uma obra deste género pode, obviamente, colocar em risco a estabilidade do edifício”, diz.

 E é numa situação como esta que se coloca a necessidade de ser questionada a visão, muitas vezes deturpada, de quem faz obras em edifícios – percepção formada, em parte, como resultado do tal aligeiramento legislativo. “Quando os confrontei com a ilegalidade da construção de um tanque de água no quintal, disseram-me ‘estamos a fazer uma piscina que cai na categoria das amovíveis, por isso, não precisamos de autorização’. Isto apesar de terem tirado quatro ou cinco contentores de terra”, diz Helena. Depois de confrontada com a situação na semana passada, a CML acabou por informar O Corvo, na tarde desta terça-feira (1 de agosto), que havia sido realizada uma fiscalização ao imóvel em causa, através da qual se constatou “que estão a ser executadas obras de edificação sem apresentação de comunicação prévia, tendo sido determinado o embargo da obra”.

 Em abril passado, durante uma reportagem sobre um caso de obras problemáticas num apartamento, destinadas a convertê-lo em alojamento local, o administrador do condomínio disse a O Corvo que os agentes da PM lhe terão comunicado, informalmente – tal como agora aconteceu com Helena -, que este género de situações se estará a multiplicar de forma acelerada pela cidade. O que acontece devido à pressão de novos investidores – nacionais e, sobretudo, estrangeiros -, para converter velhas casas de habitação em alojamentos turísticos. A 20 de abril, O Corvo enviou as seguintes questões à CML: “Confirma a CML a subida do número de embargos e propostas de embargos de obras em apartamentos? Quais os números de 2016 e deste ano? Como comparam com os números dos anos anteriores? A Polícia Municipal tem, neste momento, capacidade operacional para responder a todas as solicitações deste género?”. Apesar da insistência, as respostas nunca chegaram.

 Texto: Samuel Alemão

Sem comentários: