OPINIÃO
O
lobo mau chama-se “sanção”
MANUEL CARVALHO
03/07/2016 / PÚBLICO
A ameaça de sanções
por incumprimento do défice é como a história do lobo mau.
Qualquer criança bem-educada sabe que os lobos existem e que
castigam quem sai do bom caminho ou dá ouvidos aos estranhos. Mas,
sabe também que, no final, lá há-de vir um caçador, seja
Jean-Claude Juncker, François Hollande ou Angela Merkel, salvar os
distraídos ou os relapsos do défice e dar um final feliz à
história. Talvez por reconhecerem que assim é, os nossos vizinhos
espanhóis ouvem as ameaças de sanções que a cada passo chegam de
Bruxelas, assobiam para o lado e dedicam-se a questões com
verdadeira aderência à realidade. Nós, pelo contrário,
transformámo-las numa batalha pela dignidade da Pátria com muito
sabor a propaganda e algumas pinceladas de ridículo.
Tudo indica que a
opereta das sanções esteja para acabar (talvez no Conselho Europeu
de dia 6) e as movimentações dos actores políticos, do
Presidente-Rei ao primeiro-ministro, passando pelos seus aliados no
Parlamento ou pela oposição, orientam-se no sentido poderem
beneficiar com o final feliz que se adivinha. Quando, como se espera,
se deseja e se antevê, a Comissão Europeia afastar o cenário das
sanções, o Governo lá estará na linha da frente a reivindicar o
cumprimento da promessa de uma nova era na política europeia; o
Presidente fará mais uma festa e reclamará o seu quinhão de
sucesso pela promoção de mais uma frente de unidade da Pátria; o
Bloco recordará nas entrelinhas que, afinal, as ameaças de
referendo à Europa ou ao Tratado orçamental são armas de arremesso
político eficazes; o PCP celebrará mais uma derrota das pulsões
capitalistas, dos monopólios e das multinacionais e até Passos
Coelho se poderá chegar à frente para mostrar que a bandeirinha na
lapela significa, também, um forte apego às causas nacionais.
Vivemos uma
encenação, um faz-de-conta muito europeu. Alguém viola as regras
(Portugal, a França ou, com muito maior intensidade e dolo, a
Espanha), Bruxelas faz de conta que vai ser severa, os holandeses,
finlandeses ou letões do Conselho ou da Comissão fazem de conta que
desta vez vão bater nos poltrões do sul e a classe política
portuguesa faz de conta que está a ser vítima de bullying. Depois
da história de uma década e meia do euro com tantos défices
excessivos, alguém acredita que é agora, no meio da tempestade do
“Brexit”, que a Comissão terá condições políticas para
penalizar a Espanha e Portugal? Alguém pensa que seria possível
deixar de lado a França por ser a França, como disse Juncker numa
esplendorosa confissão de que está ao serviço dos fortes da
Europa? Alguém acredita que a Espanha, que em 2015 registou um
défice de 5.1% do PIB, vai ser molestada com um puxão de orelhas no
exacto momento em que luta em desespero por encontrar uma solução
política que lhe garanta, ao menos, um Governo?
Bem sabemos que há
bruxas, bruxedos e outras maldições. E sabemos ainda melhor que,
por culpa dos bancos falidos pela incompetência e pela gula do
complexo político-empresarial, da China de Angola ou de qualquer
outro expediente, continuamos a não ser capazes de cumprir os pactos
a que nos obrigámos com a Europa. Mas o que deveria gerar um
excelente debate interno, despido da irritante, pobre e enganadora
dicotomia entre austeridade/não austeridade, serviu apenas para
definir um inimigo externo que tudo esconde, tudo ilude e tudo
desculpabiliza. O Governo falha na capacidade de colocar a economia
no centro do debate, falha na capacidade de atrair investimento e
restaurar confiança, falha com estrépito na procura de uma solução
para a Caixa, falha na capacidade de acalmar os credores mas tudo
isso se subalterniza perante a ameaça das sanções. O que se
discute não são os nossos limites, mas o alegado conluio de uma
Europa persecutória que protege os fortes e desanca os fracos.
Neste programa pobre
e fútil, só faltava Wolfgang Schauble juntar-se à festa com a sua
habitual imprevidência e idiotia para dar mais uma bandeira aos
Calimeros que se juntaram nos fóruns e nas redes sociais a pedir
punição aos que pedem punição ou juízo a Portugal. É uma
injustiça. Mas se é legítimo e razoável que os portugueses se
revoltem com as palavras incendiárias do ministro alemão, faz menos
sentido resumir tudo o que ele disse à imprevidência ou aos
maus-fígados. É inegável que nas últimas semanas Portugal
regressou ao radar das suspeições sobre a sua capacidade e, pior, o
seu empenho em combater as causas da sua persistente incapacidade em
cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
O melhor será
entender por que razão há tanta gente a olhar para o céu de
Portugal e a prever uma tempestade. Sim, porquê? Seria tão fácil
como errado dizer que a culpa é do Governo ou que toda a culpa é do
Governo – ou da política. A execução orçamental não corre mal,
pelo menos nominalmente. O Governo, afinal, governa. O presidente
reina. O desemprego estabilizou. E, entre o futebol e a expectativa
de férias, o país anda contente. Mas para lá da união nacional
contra as sanções ou contra os dislates do senhor Schauble, é bom
que não esqueçamos que o investimento parou, a confiança encolheu,
a banca implode, a economia arrefece, as exportações caem e o
monstro do défice externo, essa doença incurável do Portugal
democrático, está à espreita na esquina mais próxima.
As sanções são um
engodo fácil para nos aliarmos ao Governo e esquecermos que, como
lembrou o director do Mecanismo Europeu de Estabilidade, o alemão
Klaus Regling, o país não consegue ser capaz de competir, de
desenvolver uma economia que gere emprego e receitas fiscais para
resolver os seus problemas. Com a união do país contra o mundo, é
mais fácil manter um Bloco descafeinado e um PCP sereno e mais
improvável que se discutam as causas dessa eventual perda de
competitividade – Regling fala uma vez mais do aumento do salário
mínimo, o que é um disparate, mas também das 35 horas na função
pública, o que é um erro deste Governo nas presentes
circunstâncias.
Com ou sem o
folclore das sanções, o medo de que seja necessário fazer mais,
quer dizer, cortar mais, ganhou outros contornos, mais nítidos. Ele
anda a pairar por aí há meses e a verdade é que o Governo sempre
conseguiu afastá-lo com as suas políticas do possível, no caminho
estreito que os parceiros da extrema-esquerda lhe impõem. Mas, como
parece ser difícil fazer mais, Portugal está de novo no olho do
furacão. Ou acontece um milagre, um golpe de génio ou uma mudança
radical na Europa, ou dentro de meses corremos o risco de olhar para
o que hoje se passa com uma inevitável sensação de tempo perdido.
Arriscamo-nos a constatar aí que a historieta das sanções não
passou de um logro que nos desviou a atenção do que realmente
importa.
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