Loja
de tecidos da Baixa aberta desde 1793 vai dar lugar a loja de
produtos turísticos
POR O CORVO • 14
JULHO, 2016 •
Um dos mais antigos
estabelecimentos comerciais de Lisboa, a Tavares Panos, fechará
portas no final do mês. Naquele espaço, abrirá mais uma loja de
produtos turísticos explorada por empresários do Bangladesh. O dono
da casa de tecidos diz que encerra porque “já não há clientela,
as opções de consumo das pessoas agora são outras”. Sem
amargura, admite que a loja com 223 anos de vida ficou parada no
tempo. Mas lamenta, tal como a sua já reduzida clientela, o fim de
mais uma parte da memória da cidade. Sobretudo porque, no seu lugar,
abrirá outro estabelecimento indistinto, sem qualquer mais-valia
para a Baixa.
Texto: Samuel
Alemão
A mão esquerda
passa sobre o linho que se espalha pelo balcão, para atestar a
qualidade do produto. Irene Nunes, 80 anos, é cliente “há 60
anos” da Tavares Panos, e nela se abasteceu para o seu enxoval, bem
como o dos filhos e “agora também dos netos”. Veio comprar
tecido para fazer naprons para os seus descendentes e confessa a
perplexidade com a iminência do encerramento da casa fundada em
1793. Situada entre os números 61 e 71 da Rua dos Fanqueiros,
fechará portas 31 de Julho, para dar lugar a mais uma loja de
recordações turísticas explorada por cidadãos do Bangladesh. Até
lá, está a saldar os seus produtos.
“Olhe, é uma
pena, não fazia ideia que isto estava para fechar”, diz ao Corvo,
enquanto se decide sobre se leva uma parte do rolo de linho que lhe é
mostrado pelo lojista, José Carvalho, 64 anos. O comerciante, que
herdou o negócio familiar e está ali desde os 22 anos, diz que “já
não há clientela, as opções de consumo das pessoas agora são
outras, os gostos mudaram”. Sem amarguras, José admite que este
tipo de actividade, de venda de tecidos a retalho e de malhas, “já
teve os seus dias”. “Já ninguém tem paciência para comprar um
tecido e ir para casa costurar. Nos últimos 20 anos, isto foi sempre
a descer”, admite, resignado.
José Carvalho conta
que, nos anos mais recentes, estava a ser muito difícil manter a
sustentabilidade da loja, por causa dessa mudança evidente nos
padrões de consumo. “Além disso, com a firma descapitalizada, não
era possível pensar em fazer grandes mudanças. Depois, as minhas
filhas já estão todas encaminhadas e nenhuma quereria vir para
aqui”, explica, dando conta das razões que levarão, daqui a duas
semanas, ao fim de um ciclo iniciado há 223 anos – apesar de a sua
família apenas ter assumido os destinos da loja em 1867. “Os
estrangeiros param à porta e ficam admirados por ainda haver uma
loja destas”.
No lugar da loja,
nascerá um estabelecimento comercial dedicado à venda de
recordações turísticas, explorada por empresários do Bangladesh,
à imagem do que tem sucedido um pouco por toda a Baixa lisboeta –
“é uma pena estar inundada desse género de lojas, que estão a
descaracterizar o que existia”, diz. Mas a realidade do negócio
impõe-se sempre e José Carvalho sabe que já não há espaço para
si. “É evolução dos tempos, que se tornaram mais rápidos”,
assente o comerciante, deixando entrever um certo alívio pelo fim de
um longo período de definhamento. Afinal, o número de clientes foi
descendo e os que ainda aparecem “são senhoras de meia-idade para
cima”.
Um facto confirmado
pelo Corvo ante as escassas clientes que entram na loja, enquanto na
rua passam grupos de turistas e o ruído é intenso. Tal como Irene
Nunes, também Esmeralda Silva, 67, tem memórias de comprar na
Tavares Panos tanto o seu enxoval como o dos seus filhos. “Tudo o
que é bom acaba”, desabafa, enquanto vai discutindo com um dos
empregados as qualidades de um conjunto de atoalhados. Já Noémia
Baptista, 66 anos e residente na Pontinha, lamenta “isto que está
a acontecer à Baixa”. Apesar de não ser cliente habitual desta
loja, ao ver os anúncios de liquidação iminente na montra
decidiu-se a entrar, na expectativa de encontrar alguma pechincha.
“Estas coisas não
se encontram nos centros comerciais, isto é diferente. Vá lá que,
por enquanto, ainda temos as retrosarias. Qualquer dia, nem isso”,
afirma, apesar de se afirmar também cliente das grandes superfícies.
Noémia vê com grande preocupação a grande transformação em
curso no tecido comercial dos bairros mais tradicionais de Lisboa.
“Lojas como esta dão-nos vida, são nossas, são portuguesas”,
afirma. Um sentimento partilhado por Esmeralda Silva, para quem a
Baixa “não pode ser só hotéis e lojas para turistas”. “Tem
de ter vida normal, porque é isso que os turistas querem .
*Nota: Texto
rectificado às 13h50 de 14 de julho. Corrige o nome da casa, que se
chama Tavares Panos e não Tavares & Tavares, como era referido
na primeira versão do texto. Aos leitores, pedimos as nossas
desculpas.
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