Carta
de resposta a Marinho e Pinto
ANTÓNIO DE ALMEIDA
SANTOS 03/06/2015 - PÚBLICO
Tenho
consciência de ter sido sempre um presidente merecedor da confiança
e do respeito da totalidade dos deputados e dos meus subordinados.
Ao ler o PÚBLICO de
24/05, fui surpreendido com uma entrevista do dr. Marinho e Pinto, na
qualidade de líder do PDR – Partido Democrático e Republicano, em
que, assumindo-se como “diferente”, afirma “denunciar a
corrupção na política”, o que só lhe fica bem.
Mas, ao tentar
exemplificar esse louvável propósito, resolveu seleccionar-me a
mim. E, embora “sem desejo do poder”, vai candidatar-se a
primeiro-ministro e está disponível para se aliar ao diabo.
A escolha é sua.
Questionado sobre
como tenciona pagar a dívida, a resposta é original: “Sentar os
credores à mesa e discutir.” Só com essa moeda?
E, inquirido “como
tenciona financiar o Estado social”, responde sem embaraço: “Com
a economia.”
Fácil, como se vê.
E, dito isto,
ocupa-se de mim para tentar desfazer o que resta do meu capital de
prestígio. “Há 20 anos — diz — o pacote da transparência
proposto por Fernando Nogueira, quando era líder do PSD, previa os
conflitos de interesses dos advogados, e o dr. Almeida Santos, como
presidente da Assembleia da República, foi a revogar a aplicação
da norma aos advogados. Sabe porque é que ele fez isso? Porque o dr.
Almeida Santos é advogado e foi um dos advogados que mais negócios
fizeram neste país, à custa do que é público. Não estou a dizer
isto em off, é em on: o dr. Almeida Santos é um advogado e uma das
pessoas que mais negócios fizeram em Portugal, na sua condição de
líder político e de advogado, mesmo que tenha tido em alguns
momentos a sua inscrição na Ordem suspensa. É vergonhoso esse acto
que ele praticou contra a essência da democracia, porque permite que
a Assembleia se tenha transformado numa plataforma onde circulam
interesses absolutamente opacos, muitas vezes ilegítimos, tráficos
de influências. Ver o que foram os debates sobre amnistia.”
O que aconteceu? “A
última lei de amnistia e perdão de penas de 1999: os advogados até
se arranhavam uns aos outros para meter crimes dos seus clientes que
pagavam melhor ou que tinham mais poder. A lei foi aprovada em
Assembleia e foi alterada na ida para a Presidência para
promulgação. A lei aprovada que consta do Boletim da Assembleia é
diferente da que foi publicada no Diário da República, e não é
uma diferença só de correcções. Têm crimes diferentes
abrangidos. Os advogados deputados que lá estão actuam muitas vezes
mais em nome dos seus clientes privados do que do interesse público.”
Passou tanto tempo
que não guardo memória de nada que se pareça com o que o autor do
texto transcrito descreve. Mas posso adiantar que, se o que descreve
se tivesse passado, seguramente guardava. Mas é sempre tempo de
confirmar ou infirmar a descrição do autor do texto transcrito,
extraindo das conclusões o significado que tiverem, e agindo em
conformidade.
Para esse efeito,
nesta data me dirijo à senhora presidente da Assembleia da República
para que mande averiguar o que com verdade se passou. E se o que
tiver por provado responsabilizar alguém, que sejam pedidas
responsabilidades a esse alguém.
Se se provar a
conduta que o dr. Marinho e Pinto denuncia, ela terá seguramente um
ou mais autores e responsáveis por ela. É claro que não tenho
consciência de ter sido um deles, nem seria concebível que,
sozinho, eu tivesse podido cometer a infracção de que me acusa.
Esse absurdo não seria sequer possível.
Tenho consciência
de ter sido sempre um presidente merecedor da confiança e do
respeito da totalidade dos deputados e dos meus subordinados. Se
excepcionalmente a não mereci, serei o primeiro a querer ser
castigado por isso.
E, já agora, como o
autor do texto que comento também inclui outras acusações a meu
respeito, peço ao responsável por elas que esclareça que negócios
condenáveis em concreto me atribui, para eu poder responsabilizá-lo,
se for caso disso, pelos que forem inverídicos ou não
comprometedores para mim.
Não me pesa a
consciência de ter perpetrado assim tantos negócios, sobretudo
merecedores de censura ética. E tanto tempo volvido só
verdadeiramente me lembro de um que me enche de orgulho: o de ter
estado na origem da constituição da sociedade Geocapital, que
propus aos doutores Stanley Ho e Ferro Ribeiro, então em Macau, para
tentar suprir o facto de a CPLP ter sido constituída sem um
departamento encarregado de promover investimentos económicos entre
os países de língua portuguesa. Os meus referidos amigos aceitaram
a sugestão e eu subscrevi no capital da empresa uma modesta
participação, de que tenho o maior orgulho. Essa empresa já é
societária de três bancos. Um em Moçambique, outro em Cabo Verde e
outro na Guiné-Bissau, e do pedido de mais dois em Macau e Timor,
além de outras mais modestas empresas noutras áreas económicas de
actividade.
Deixo ao dr. Marinho
e Pinto o trabalho de descobrir outros negócios meus, já que diz
que realizei muitos. Se quiser, pode incluir um de que os meus filhos
subscreveram parte do capital, um aparthotel em Monte Gordo, já que
lhes proporcionei os meios financeiros para esse efeito.
Não me lembro de
mais nenhum. Reconheça-se que estes são poucos, e não condenáveis,
para justificar a acusação do dr. Marinho e Pinto. É assim que
quer ganhar o respeito dos seus eleitores?
Também não
corresponde à verdade a afirmação, pretensamente
responsabilizante, de que só excepcionalmente não fui advogado. A
verdade é bem outra: não me lembro de, depois de Moçambique, ter
voltado em Portugal a pisar o chão de um tribunal, envolto na minha
velha toga, que em Portugal não voltei a envergar. E porque os
magistrados me nomeavam para defesas oficiosas, sempre, creio eu, me
fiz substituir por outro colega.
Isto para assegurar
a verdade de que, regressado a Portugal, após Abril, passei a ser
político a tempo inteiro. Pertenci a oito governos e posso afirmar
que fui talvez um dos mais prolíficos legisladores de sempre. E
enquanto ministro da Justiça fui responsável pela mais vasta e
profunda reforma legislativa talvez de sempre.
Semelhante currículo
não seria nunca compatível com a acusação de que exerci de facto
a advocacia em Portugal, o que, verdadeiramente, não chegou a
acontecer. E o cancelamento da minha inscrição na Ordem dos
Advogados não aconteceu apenas “em alguns momentos”, certo sendo
que, de facto, essa foi a mais durável situação após o meu
regresso de Moçambique.
Fica assim a caber
ao dr. Marinho e Pinto a demonstração de que, ao invés do que
acabo de dizer, passei o tempo todo a fazer negócios, e negócios
comprometedores para a solidez da minha seriedade. Se o não fizer,
terá de responder pela inverdade das suas acusações.
Ex-ministro e
ex-presidente da Assembleia da República
Marinho
Pinto acusou Almeida Santos e o Parlamento investiga mas o caso não
era bem assim
Marinho Pinto: “Deputados
não deviam poder exercer advocacia”
|
Marinho
Pinto esclarece que “a imputação” sobre alterações à lei da
amnistia, afinal, não era dirigida a Almeida Santos
“Não
estou a dizer isto em off , é em on: o dr. Almeida Santos é uma das
pessoas que mais negócios fizeram em Portugal na sua condição de
político e de advogado”
Paulo Pena / 3-6-2015 /
PÚBLICO
Se uma das funções
do jornalismo é garantir a veracidade dos factos para que exista um
debate público de qualidade, os leitores perdoarão que este texto
não comece por um “quem fez o quê, onde e quando” tradicional.
Porque, como se verá, a resposta a essas perguntas é longa. Tudo
começou numa entrevista a este jornal. Marinho Pinto, recémeleito
líder do PDR, criticava, no dia 24 de Maio, o “conflito de
interesses” que existe para os deputados que exercem advocacia. Deu
um exemplo: Almeida Santos. E citou um caso: a “lei da amnistia de
1999”. Almeida Santos não gostou do que leu. E respondeu, por
carta, ao PÚBLICO (que pode ler na íntegra na página 47).
Palavra contra
palavra? Não. Almeida Santos enviou também uma carta a Assunção
Esteves, pedindo à presidente da Assembleia da República que
esclareça o seu papel na tal lei que Marinho Pinto cita como mau
exemplo, nesta passagem: “Não estou a dizer isto em off , é em
on: o dr. Almeida Santos é um advogado de negócios e é uma das
pessoas que mais negócios fizeram em Portugal na sua condição de
líder político e de advogado (...) É vergonhoso esse acto que ele
praticou contra a essência da democracia, porque permite que a
Assembleia se tenha transformado numa plataforma onde circulam
interesses absolutamente opacos, muitas vezes ilegítimos, tráficos
de influências. Vá ver o que foram os debates sobre a amnistia
(...) A última lei de amnistia e perdão de penas de 1999: os
advogados até se arranhavam uns aos outros para meter crimes dos
seus clientes que pagavam melhor ou que tinham mais poder. A lei foi
aprovada em Assembleia e foi alterada na ida para a Presidência para
promulgação. A lei aprovada que consta do boletim da Assembleia é
diferente da que foi publicada no Diário da República e não é uma
diferença só de correcções. Tem crimes diferentes abrangidos.”
O PÚBLICO
reconstituiu os passos da lei, que Marinho Pinto diz ter sido
alterada antes da promulgação. No Diário da Assembleia da
República (a que Marinho Pinto chama “boletim”) do dia 23 de
Abril de 1999 relata-se a aprovação, por unanimidade, do projecto
de lei 667/VII em votação final global. Depois de aprovado, o
projecto deu origem à Lei 29/99, promulgada em 29 de Abril pelo
Presidente da República, Jorge Sampaio, e publicada no Diário da
República, I Série-A n.º 110 de 12-5-1999.
Os dois textos têm,
apenas, duas diferenças. No projecto — por lapso — existem duas
alíneas c) do art.º 2.º, ponto 2 e uma alínea k). Na versão
final há só uma alínea c) e a sequência passa do j) para o l),
ignorando a letra k), como é normal. Os diplomas são submetidos,
após aprovação, a uma “comissão de redacção”, onde estão
representados todos os partidos com assento parlamentar, que se
encarrega de corrigir essas falhas. O que importa, para o caso, é a
descrição dos crimes em ambos os textos. É aí que entra a segunda
diferença, um pouco mais importante. Há um crime que deixa de ser
amnistiado na versão final, o que parece contrariar o sentido da
acusação de Marinho Pinto. Se a intenção era “meter crimes”,
ou seja, amnistiar mais gente, o diploma final faz o contrário:
acrescenta mais um crime aos que não estão abrangidos pela amnistia
consagrada no projecto-lei — o “tráfico de menor gravidade”,
tal como vem descrito na legislação de combate ao tráfico de droga
(art.º 25.º do DL 15/93). Esta é a única alteração que se
consegue detectar entre a aprovação e a promulgação da lei e
deve-se ao facto de ser um crime “de pequena gravidade” — o que
encaixaria no espírito da lei — mas numa época em que o combate à
droga era uma prioridade da investigação criminal, o que fez com
que fosse excluído da amnistia.
Confrontado com esta
informação, Marinho Pinto esclarece que não pretendeu acusar
Almeida Santos de nenhum papel nas alegadas alterações à lei da
amnistia: “Não estou a acusá-lo a ele. Isso não é uma imputação
que lhe faço a ele, até porque ele não é advogado criminal.”
Quanto à única alteração de conteúdo na lei ir no sentido
contrário ao que afirmara na entrevista, o eurodeputado afirma que
“sinceramente não sabia” e põe a hipótese de tudo o que afirma
se ter passado antes da votação, e não entre a aprovação e a
promulgação. Em todo o caso, questiona a “legitimidade de haver
uma alteração feita depois de a lei ter sido aprovada” e mantém
o argumento de fundo: “Os deputados não deviam poder exercer
advocacia.”
O PÚBLICO confirmou
que a presidente do Parlamento recebeu o pedido de Almeida Santos
“para que mande averiguar o que com verdade se passou”.
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