FILIPE HOMEM FONSECA: "A MAIOR PARTE DAS PESSOAS QUE EU
OUÇO DIZER QUE LISBOA ESTÁ LINDA E INCRÍVEL SÃO AS QUE NÃO MORAM CÁ."
19 mar 2019
António Moura dos Santos
Uma comunidade em estado de sítio, onde os seus habitantes
resistem como podem às adversidades em isolamento. Podia ser uma história
bélica, mas em “A Imortal da Graça” a guerra é outra: a dos habitantes do
bairro histórico de Lisboa pelo direito a manter as suas casas. Foi com este
confronto em pano de fundo que Filipe Homem Fonseca lançou o seu terceiro
romance, pretexto para uma conversa com o SAPO 24.
Filipe Homem Fonseca:
Paulo Rascão | MadreMedia
Glória, Celeste, Gabriel, Rosalina e Graça são algumas das
personagens conturbadas que habitam um bairro cercado por obras de renovação
feitas em nome de uma Lisboa nova e que fazem deste microcosmos um espaço
enclausurado onde apenas entram e saem turistas e crianças. Contudo, estas
pessoas não são caracterizadas como vítimas, antes como “combatentes nas
trincheiras”, como “resistentes” - as “últimas lisboetas”.
A gentrificação em curso em cidades como Lisboa e o direito
a nelas viver, por parte tanto de novos quanto velhos, são alguns dos temas que
inspiraram Filipe Homem Fonseca a escrever esta história, que começou a ser
posta em palavras em 2016. No entanto, o escritor explica, esta é uma narrativa
que se foca principalmente nas questões do crescimento e da identidade -
particularmente como o primeiro pode corromper o segundo -, mas também da
memória. Esta manifesta-se em extremos opostos da narrativa: tanto serve de
barro fundacional para construir um amanhã melhor, como pesa enquanto fardo que
verga aqueles que já acumularam recordações em demasia. Razão pela qual esta é
uma prosa carregada de negrume e humor, frequentemente entrelaçados, e que não
se coíbe de pôr a nu as falências das suas personagens, de um homem frustrado
que vive na ânsia de obter um prémio do Euromilhões que não consegue levantar,
até a uma das mulheres idosas, obcecada em tornar-se a mais velha do bairro.
Este é o quinto livro de um escritor que se notabilizou na
área da televisão. Junta-se aos dois romances, “Se não podes juntar-te a eles,
vence-os” (2013) e “Há Sempre Tempo Para Mais Nada” (2015), e às obras de
poesia “conta gotas” (2008) e “e enquanto espero que me arranjem o esquentador
penso em como será a vida depois do sol explodir” (2015). Parte do núcleo
fundador das Produções Fictícias, o argumentista participou em projetos que se
eternizaram na memória coletiva, como a “Conversa da Treta”, o “Herman
Enciclopédia” e o “Contra-Informação”, sendo que “1986”, “Aqui Tão Longe” e
“Excursões Air Lino” são apenas algumas das séries para as quais escreveu mais
recentemente.
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Porém, se o pequeno ecrã é o meio ao qual continua a dedicar
grande parte do seu tempo, o seu currículo comprova porque é que é descrito
como um homem dos sete ofícios. Escrevendo desde crónicas para rádio até peças
de teatro, passando pela realização de curtas e longas-metragens e pela
presença em bandas como os Cebola Mol e os Lâmina, são poucos os campos
artísticos onde o seu interesse não se debruçou.
Dada a experiência multidisciplinar, esta foi uma conversa
que se ramificou em vários tópicos, desde a necessidade de encarar o horror (e
a vida) com uma lente humorística até à forma como se pode combater o
pensamento populista - tanta vez encarado nas personagens desta história - que
ameaça a democracia. E, claro, falando ainda sobre como se produz conteúdo numa
era onde a informação sobrecarrega os sentidos - é “omnipresente mas não a
processas”, dirá Filipe.
Não é a primeira vez que a ação das tuas histórias decorre
na Graça, mas agora o bairro constitui-se como um cenário fulcral para a
narrativa. O que te levou a tomar esta opção?
O primeiro passo para a história, de onde veio a ideia, foi
exactamente a gentrificação a acontecer em Lisboa, nomeadamente as obras que
houve. Ainda são evidentes, mas há dois anos isto parecia que estava em estado
de sítio. Moro na Graça, passo aqui todos os dias e parecia mesmo que tinha
havido um bombardeamento. Dei por mim a pensar que existem de facto semelhanças
no estado de uma cidade quando está em obras ou quando está sob bombardeamento.
Com alguma ironia, obviamente, porque há uma grande diferença. Estás viver numa
cidade onde existe uma construção e tu estás ali a meio caminho. É um bocadinho
como estares a meio da vida, não é? Não sabemos quantos anos é que vivemos, mas
por alguma razão se fala em meia idade, estás tão próximo da morte como do
nascimento e é esse estado intermitente entre transformações que me pareceu
interessante que me pareceu que a Graça estava a viver nessa altura. Esse foi o
ponto de partida para que a história se passasse aqui, estávamos cercados pelas
obras, ninguém conseguia entrar e sair, excepto os turistas lá está, que andam
sempre de um lado para o outro. Se vivesse noutro bairro, tinha sido esse o
palco. Mas acho que são estes bairros, a chamada zona histórica, aqueles que
estão mais afetados pelos Airbnbs, pelo alojamento local.
É UMA IDEIA DE TERES AS VELHAS DO BAIRRO COMO UM ÚLTIMO
PATAMAR DE RESISTÊNCIA CONTRA ESSA OCUPAÇÃO
Essa referência bélica, relativa ao bombardeamento, ela
chega mesmo a surgir no livro, quando escreves que as habitantes "não
estão presas, estão barricadas".
Sim, é uma espécie de resistência contra a invasão exterior,
é por aí. Tenho vários amigos, malta que morava aqui em Lisboa, que teve de
sair. Os senhorios triplicaram as rendas, chegaram os contratos de muito curto
prazo. Tenho assistido a isso, muita gente que eu conheço que tem saído de
Lisboa para ir para a Margem Sul... excepto as pessoas mais velhas, que por
causa das leis, ainda conseguem, apesar das rendas irem aumentando - manter uma
casa em Lisboa. É uma ideia de teres as velhas do bairro como um último patamar
de resistência contra essa ocupação.
E depois há as exceções à regra, como os personagens mais
novos da Graça e do Gabriel.
Sim, por circunstâncias diferentes. Ela, com 22 ou 21 anos,
é um bocado o retrato da malta mais nova que quer vir morar para um bairro
destes. Eu tive sorte que já moro aqui há muito tempo, portanto, consegui
"ludibriar " esse sistema, só me conseguem apanhar no IMI (risos).
Mas pensei em personificar essa vontade de criar raízes onde não é permitido.
Há uma diferença entre não fazeres as coisas porque não queres ou não fazeres
porque não podes, é algo que não tem só a ver com viver aqui na Graça. Se estás
impossibilitado de fazer uma coisa, a primeira questão é mesmo essa, a segunda
é se a querias fazer ou não…
Há um handicap logo à partida.
Para poderes dizer que não queres, primeiro é porque podes,
é te dada essa possibilidade, e neste caso [viver na Graça], isso não acontece.
Daí a ideia de teres alguém que chega ao limite a que a Graça [personagem]
chega, para poder morar aqui, de certa forma é também uma face dessa
resistência, mas que acaba por ser autofágica. Sem querer revelar muito o final
do livro, essa Graça consome-se a si própria. O que tentei passar no livro é
que as únicas vítimas do confronto acabamos por ser nós próprios, não é uma
guerra contra ninguém, é uma guerra de vontades entre aquilo que se quer e
aquilo que se pode.
ESTÃO A TRANSFORMAR LISBOA NUM PARQUE TEMÁTICO
Mas como é que se resolve este dilema?
É o grande problema de qualquer tipo de evolução, até no
crescimento pessoal, de perceberes quais são as características que ganhas e
que perdes para poderes crescer, mas também até que ponto te está a fazer perder a tua identidade.
Existem sítios em Lisboa, nomeadamente a Graça, que até podem estar mais
bonitos e acolhedores, mas para quem? Esse é que é o grande mal da
gentrificação, a ideia de que para haver uma evolução e um crescimento tem de
haver uma perda de identidade. Acho que estão a transformar Lisboa num parque
temático. Aquela ideia de que tinhas uma tasca que é vendida e os novos donos
remodelam-na de maneira a parecer uma tasca antiga, mas já não é a original. É
um processo perverso e contraditório, compras uma coisa e renova-la para ficar
como antigamente. Acho que não faz sentido em termos práticos de aposta no
turismo, se queres ir a um parque temático, vais a um parque temático, se
queres a ir a um sitio real, não vais a um parque temático.
Vou, contudo, ser aqui o advogado do Diabo. A páginas tantas
escreves “saberá ainda a cidade o que é ser de outra forma que não assim,
inacabada?” Por outras palavras, as cidades não estarão também condenadas a
renovar-se perpetuamente, tirando-nos o tapete de debaixo dos pés, insensíveis
à nossa vontade?
Sim, têm uma vida própria, uma consciência coletiva, a
cidade é feita de todas as pessoas que por aqui passam. A ideia da cidade ser
inacabada é uma questão que coloco no livro e para a qual não tenho resposta.
Isto que estou a dizer da perda de identidade, primeiro temos de ver então qual
é essa identidade, de uma cidade como Lisboa. Daí o papel que a memória também
representa no livro. Existem tantas Lisboas como quantas pessoas aqui moram e
passam. Tu constróis a própria cidade com a tua memória e depois ocupas os
espaços com a tua vivência e a tua imaginação, vamos construindo a cidade na
nossa cabeça. Pegando naquela frase do “O Naufrago do ‘A’” do Philémon [banda
desenhada francesa, editada em Portugal pela Meribérica], "numa ilha que
não existe, tudo pode existir", mesmo numa cidade ou numa ilha como o
bairro da Graça, depois de ficar cercado pelas obras. Por isso é que isto é tão
perverso e tão complicado, por isso é que existem opiniões tão divergentes
quanto ao rumo a tomar pela cidade. A questão é que essa guerra de vontades é…
Desigual?
Sim, porque o cidadão X não terá o mesmo poder de impôr a
sua Lisboa perante o presidente da Câmara ou determinado grupo económico. Nesse
sentido, aquilo que me preocupa mais e que penso ser um grande problema é
quando começas a roubar pedaços da cidade para só serem desfrutados por certas
elites ou a fechar zonas do Tejo, a que só acedes se estiveres no hotel X.
Lembra-me aquela ideia de praias alocadas a hotéis.
Portanto, fala-se aqui de privatização do espaço público.
De repente sente-se isso. Como o que se passa no [Miradouro
do] Adamastor, com o acesso super condicionado. São coisas que se confundem, é
a velha história da deriva securitária, de "para sua segurança, temos de
ter aqui alguns limites". É uma falácia, os propósitos nunca são esses, há
sempre outros que vêm disfarçados com essa conversa. A maior parte das pessoas
que eu ouço dizer que Lisboa está linda e incrível, são as que não moram cá.
Mas essa pulsão de securitização e de higienização não é uma
coisa nova, já se olha assim bairros históricos de Lisboa desde o século XIX. O
que há de diferente em 2019?
Antes de mais, nós. Mas, acima de tudo, a velocidade. As
coisas agora transformam-se de forma muito mais rápida. Coisas que no século
XIX só se conseguia percebê-las passado algum tempo, se calhar ao fim de
algumas gerações, agora ocorrem agora no teu tempo de vida, tu vês
"N" Lisboas a acontecer. É tudo muito mais rápido. O que é que isso
provoca? Voltando à questão da memória, não nos é dado tempo para processar
nada. É como as séries. Vês uma série, descartas, vês outra, descartas, fazes
"binge" e vês 20 episódios, é muito giro mas se calhar para a semana
já não te lembras porque estás a ver outra e outra e outra. E essa aceleração
das coisas... elas têm de ser pensadas. Eu trabalho em televisão, um meio onde
escrevemos para ontem. Num romance não, tive muito tempo a escrevê-lo, é um
processo de amadurecer ideias, a própria forma como está escrito, etc... Isto
para dizer que as coisas agora são tão rápidas que nem tens tempo sequer para
pensar com calma ou para ver como estão a ser feitas.
Como por exemplo?
Usando uma passagem do livro, quanto tu tens obras numa rua,
primeiro fazem buracos por causa da água, depois fecham-nos. Depois vêm os
tipos da eletricidade, depois a fibra óptica... Ou seja, estás constantemente a
fazer cirurgias em vez pensares: "bem, o que é que esta cidade precisa?
Fazemos um buraco, instala-se tudo duma vez, fecha-se e não é preciso mexer
mais". É essa pressa, essa falta de comunicação porque não há tempo... É
quase como se a cidade fosse um organismo a evoluir a uma velocidade cada vez
maior, como nós. Mas essa evolução é feita à custa do tempo de processar a informação
e da memória. Se calhar passas por sítios que já não te lembras de como eram
antes. Até a esse nível é difícil avaliar se gostavas mais ou menos, isso faz
me alguma confusão. Tudo bem que as coisas têm de crescer e de mudar, mas
gostava ir processando-as e hoje em dia não há essa oportunidade. Daí essa
passagem que referiste. Hoje já nem sequer acedemos a fotografias, há 300 mil
livros de fotografias de Lisboa, mas já não as vês, as pessoas tiram-nas e
guardam-nas.
Isso é a parábola do
Fedro [de Platão]. Prescindir da memória em prol da documentação.
Vê o que isso te faz à cabeça. Uma pessoa mete as coisas na
“cloud” e está a fazer descansar o cérebro, não precisa de acomodar essa
memória, ficou guardada. É paradoxal, é prescindir da memória em função do
crescimento, que devia ser um acumular de memórias, mas acumulamo-as fora de
nós. No documentário sobre o Alan Moore [“The Mindscape of Alan Moore”, de
2003], ele faz o paralelo entre informação e água. É uma imagem já antiga, a de
que a informação vai andando pelo rio e vai-se dividindo noutros rios e
riachos... O que tu tens hoje em dia é que a informação é como vapor, está em
todo o lado, mas não consegues captá-la, é omnipresente mas não a processas.
Mas eu não quero dar um intuito moralista a esta conversa, simplesmente não sei
o que fazer.
E a tua vida bairrista, foi afetada com todas as
transformações dos últimos anos? Menciono-o porque me recordei da cena do
jantar, em que os protagonistas supostamente querem ir a um restaurante, mas
encontram outro. Pensei se não haveria um projeção de ti nessa experiência.
A minha vivência em si, não, passo muito tempo em casa a
escrever e, quando desço, movimento-me muito nos mesmos metros quadrados, só
senti mesmo na pele durante a fase das obras. Mas relativamente a essa cena do
jantar, sim, acontece, não só na Graça, mas em muitos sítios. Só que, lá está,
não tenho memória desses outros sítios. Às vezes, basta só mudar de gerência,
faz parte do crescimento, às vezes até muda para melhor. Mas há toda uma cultura
de malta que julga - e isto é uma apreciação das merdas já pós-pós-moderna -
que o típico de uma tasca é o copo estar sujo ou o óleo a escorrer da parede,
não percebendo que não é bem isso.
Portanto, uma pessoa arrisca-se a entrar em leituras
deturpadas do passado?
Uma frase do Alexander Sokurov que eu pus no livro é "O
que seríamos de nós sem os museus?". E, de facto, é verdade. Tenho um
amigo, o Miguel Martins, um poeta do caraças, que diz que eu não vivo aqui, que
vivo no futuro mas por acaso estou aqui. Isto para dizer que também tenho a
ideia de que sou um gajo virado para a frente, não sou minimamente saudosista.
Mas para apreciar melhor e para construir melhor o que vem à frente, a questão
da memória é essencial! Podemos construir por cima de dez andares de estrutura,
sobre não sei quantos séculos, mas se fizeres tábua rasa, começas a construir
de baixo e estás sempre a começar do zero, esse é que é o problema. Se estás
sempre a fazer os mesmos erros, é contraproducente e contra a própria ideia de
evolução. São as fundações.
"O QUE É QUE ALGUÉM QUE TEM UM TERÇO OU UM QUARTO DA
MINHA VIDA TEM PARA ME ENSINAR SOBRE SEJA O QUE FOR? SE O MELHOR LIVRO QUE EU
LI E FILME QUE VI JÁ SAÍRAM ANTES DE NASCERES..."
Esse lado da memória traz-nos também a outra das grandes temáticas
que acompanham a narrativa, a velhice. As pessoas mais velhas são as maiores
portadoras de memórias, sendo que muitas vezes não estão inscritas em mais lado
nenhum que não na sua vivência.
Existem tantas cidades quanto existem pessoas. Isso está presente
de uma forma sublimar, muito bruta, na personagem da Menina Celeste. É uma
personagem muito reacionária, especialmente quando diz coisas como "o que
é que alguém que tem um terço ou um quarto da minha vida tem para me ensinar
sobre seja o que for? Se o melhor livro que eu li e filme que vi já saíram
antes de nasceres..." Mas isto é ela, não sou eu. Mas a ideia de que
"vivi três vezes mais do que tu, hei de saber alguma coisa", é, de
facto, verdade.
A noção de que a idade é um posto é literal nesta história.
Qual era a intenção?
A ideia de que a velhice é um estatuto é, em si própria,
também uma coisa irónica, porque sabemos que é exactamente o contrário, são
pessoas completamente arredadas na sociedade atual. Existe um património, que
mesmo que não seja de conhecimento, por haver memória conseguimos extraí-lo.
Supostamente, quanto mais próximo do fim, mais bagagem terias para fazer
grandes transformações em ti e no mundo, mas depois não tens a força anímica
para fazê-lo. Aí, a memória é um peso, que nos dá armas e bagagem para fazer o
futuro, mas que nos esmaga e que nos impossibilita de o fazer.
As personagens mais velhas são descritas como vergadas pelos
seus demónios, é um livro duro. Trata-se de um assunto que ainda difícil de
discutir em sociedade?
É o fardo de que estávamos a falar. Se a história, a
vivência, a vida, fazem vergar as pessoas, consigo perceber um certo medo,
porque pessoa velha é um espelho do nosso futuro. Consoante o estado ou o
estatuto dessa pessoa, pode ser uma coisa da qual tu fujas, não queres ter um
lembrete de como vais ficar. Mas devia ser o contrário. Eu estou a generalizar,
obviamente, mas porque é que não olhas para uma pessoa velha e ambicionas ficar
assim? Porque, infelizmente, as condições para envelhecer, e não só neste país,
não são as melhores. É um lembrete de que vais ficar sem os teus filhos, de que
as pessoas se vão estar a cagar para ti. É um lembrete muito duro do que pode
estar à nossa espera, e não devia ser assim, devíamos ambicioná-lo. E não é
pareceres mais novo, é estares bem.
O Gabriel é uma
personagem bem mais nova e não está bem.
O Gabriel é provavelmente o mais acabado de todos eles, é o
que não cresceu, vive só naquela ideia errada de que existe justiça e mérito.
Na cabeça dele, é um tipo "justo" que aponta os pecados dos outros e
que acredita que as coisas se vão organizar de forma a ter aquilo que merece.
Mas não é assim que as coisas funcionam. Eu faço esse paralelo também na
cidade, onde as obras aparecem feitas e ninguém vê bem quem construiu as
coisas, ele está convencido que com ele vai acontecer o mesmo. As obras dele
não acabam. Está a caminhar para onde? Entre os barricados e os que estão
aprisionados, ele se calhar é o mais aprisionado, porque não tem outros
parâmetros que não as palas que tem nos olhos.
Todo o romance vai sendo pintalgado por observações
incómodas, que vão da crueldade ao cinismo, daquelas que se pensa mas que se
guarda para si. Vem-me à memória a lista de pecados de Gabriel, o “zeloso
cartógrafo da miséria humana”. Quanto deste romance é que constitui num
expurgar de demónios, teus e coletivos?
Eu diria coletivos. É normal que se diga que isto é
autobiográfico, obviamente que se escreve um bocado sobre aquilo que se conhece
e, passando-se esta história no bairro onde eu vivo, é baseado em muita gente
que conheci e conheço e em muitas coisas minhas. Agora, não tenho prurido
absolutamente nenhum em pôr na voz dos personagens coisas completamente
contrárias ao que acredito, porque eles não têm de ser reflexo das minhas convicções.
E, dum ponto de vista de exercício literário e ficcional, gosto muito às vezes
de defender o indefensável. Não há uma única boa pessoa neste livro. Podem ser
bem ou mal intencionadas, mas só fazem porcaria.
Ou então estão desesperadas.
Sim, não há ninguém que seja um modelo. Não era essa a minha
ideia, mas também não o foi fazer só malta assim. Aconteceu, a história
puxou-me para aí. Existem algumas tiradas da Celeste e do Gabriel que são
coisas semelhantes ao que já ouvi dito em cafés. E depois há aquilo que não se
diz por medo, algo que às pessoas mais velhas não afeta, estão-se a lixar. Eu
sei que é perverso dizer isto, mas há coisas que a Menina Celeste diz que penso
"olha, Menina Celeste, bem pensado”, como quando ela tem aquela tirada
sobre a maioria.
"NÃO CONFIO NA MAIORIA PARA ME ESCOLHER UM FILME PARA
VER, UM LIVRO PARA LER, ACHAS QUE CONFIO NA MAIORIA PARA ME ESCOLHER UM
GOVERNO?"
Que ideia é essa?
Pegando nas palavras da Menina Celeste, "não confio na
maioria para me escolher um filme para ver, um livro para ler, achas que confio
na maioria para me escolher um governo?" Ou seja, primeiro tem de ser uma
coisa arredada do gosto, mas depois existe o lado funcional, de justiça
elementar. Esse, nos dias de hoje, é cada vez mais manipulado. É muito fácil
atualmente teres uma maioria tudo menos esclarecida que, através de um sistema
democrático, pode impor uma ditadura. A maioria, neste momento, é um conceito a
ser discutido. Depois dir-me-ão: "mas achas que só as pessoas com estudos
é que podem votar?" Epá, sim. Agora, o que é preciso é democratizar a
educação. E, mais do que isso, ter regras no tipo de palanque que se dá a uns e
outros.
Estás-te a referir, por exemplo, à participação de Mário
Machado no programa da manhã da TVI?
Ele não precisa de ir para lá com um discurso de
extrema-direita, basta ter um palanque e, a partir daí, já apareceu na
televisão. Quando aparecer noutro sítio qualquer, aí sim, a dizer coisas duras,
há muita gente - e digo isto com a maior das humildades - que não é esclarecida
o suficiente para fazer uma distinção e vai pensar "mas este senhor até
esteve no Goucha". É normalização da presença, como o André Ventura a fazer
programas de desporto. As pessoas confundem liberdade de expressão com tu
poderes dar ou não palanque a esse tipo de malta. Daí a conversa da maioria.
Isto já existia antes, mas hoje em dia, com as ferramentas que tens à
disposição, é um caso muito mais bicudo, consegues manipular a opinião pública
para as pessoas agirem contra para si próprias. Veja-se o que aconteceu no
Brasil. Como? Deriva securitária, "há pessoas a morrer na rua e eu não vou
deixar que isso aconteça".
NÃO VOU RESPEITAR A OPINIÃO DE GAJO NENHUM QUE SE BASEIA NA
RAÇA, NEM CONSIGO DEBATER ESSAS IDEIAS. AGORA VOU-ME SENTAR COM O HANNIBAL
LECTER E DIZER-LHE "BEM, VAMOS FALAR DA OPINIÃO QUE TENS ACERCA DE
CONSUMIR CÉREBROS HUMANOS"?!
Mas isso traz-nos a uma situação incómoda, se nós quisermos
controlar o discurso...
...É incontrolável, mas deve ser falado abertamente, sem
medo de pôr em causa a validade de uma maioria. Uma maioria deve ser validada
se for esclarecida. O que é o esclarecido? Vamos debater isso! Agora, está mais
do que visto o perigo do populismo ser um eco daquilo que se diz nos cafés às
vezes coloca muitos mais problemas do que os resolve. E depois diz-se "ai,
mas as pessoas têm direito à sua opinião", Caro que têm, mas não podemos
formar a nossa vida em sociedade a partir dessas opiniões de merda. A partir do
momento que é um discurso de ódio, sim, é uma opinião de merda. "Mas não
podes dizer isso, tens de respeitar a opinião das pessoas". Não, não vou
respeitar a opinião de gajo nenhum que se baseia na raça, nem consigo debater
essas ideias. Agora vou-me sentar com o Hannibal Lecter e dizer-lhe "bem,
vamos falar da opinião que tens acerca de consumir cérebros humanos"?!
É entrar numa relativização extrema?
Sim, é isso que para mim me ultrapassa. Isso também está
muito nos interstícios do livro e muito no Gabriel. Pode-se dizer que ele é um
tipo bem intencionado, mas consome-se em estar a julgar toda a gente e nunca
olha para si próprio, está sempre lá em cima. Ele é um dos tais, não lhe façam
sondagens, porque ele só diz porcaria. Há opiniões que são válidas única e
exclusivamente para serem ignoradas. E ativamente, não é para fingirmos que não
existem, é para reconhecer que estão taxativamente erradas. Como é que é
possível cada vez mais vermos estes discursos na primeira página de um jornal
ou num programa da manhã? Não tem nada a ver com censura, isto dantes era senso
comum. Já temos provas mais do que suficientes para fazermos como o José Régio,
"não sei por onde vou, sei que não vou por aí".
Filipe Homem Fonseca
créditos: Paulo Rascão | MadreMedia
Voltando ao livro, referiste que nenhuma das personagens era
boa. Relativamente às mesmas e ao seu destino, há aqui algum lado de parábola
moral?
Isto é um livro sobre hierarquia e sobre crescimento, sobre
as maneiras retorcidas como nós crescemos. Não houve qualquer tentativa de
moral, não foi intencional. É só uma exposição e tiras dali o que quiseres. Se
assim fosse, tinha alguém que se destacasse pela sua integridade, e não há. Tem
a ver com uma crise de crescimento e como faz parte estares sempre a crescer.
Este romance contém uma série de situações rocambulescas e
surrealistas onde humor e horror surgem entrelaçados. É um testemunho à nossa
capacidade de nos rirmos da nossa própria desgraça?
Sim, é o tipo de humor que eu gosto de fazer e, mesmo
enquanto consumidor, é o rir do pior que nós temos enquanto pessoas, enquanto
mundo, senão ficamos malucos. Se só olharmos para o trágico com olhos de
tragédia, torna-se insuportável. O humor tem essa capacidade, o que procuro
fazer com ele é desconstruir as coisas. Toda a tragédia tem um lado ridículo.
Uma vez em Cuba, há uns 18 anos, perguntei a um tipo que era salva-vidas numa
praia, super bem-disposto, galã estilo "Baywatch" junto das miúdas:
“se vocês não podem sair daqui, têm de fugir para Miami, como é que tu és tão
bem-disposto e tens essa leveza de espírito, estando nesta situação?" Ele
respondeu-me: “Não és latino?” E eu “sim”. Diz-me ele: ”então, quando vês
alguém cair no chão, não te ris?” E isso leva-me para outra frase que eu gosto
de usar que é, se tu vês alguém cair e aleijar-se um bocadinho, é engraçado,
mas se a pessoa caiu e se aleijou muito, então é hilariante. As pessoas acham
que isto é ser má pessoa, mas não, eu vou lá ajudar, só que acho muito
engraçado se for uma queda aparatosa. Há todo um lado de tragédia horrível, mas
o primeiro click - pelo menos o meu e o de muita gente - é esse.
Daí as pessoas rirem-se por incredulidade?
Olha o caso das Torres Gémeas. A minha primeira reação
àquilo, aos aviões a chocar, foi rir, mesmo não tendo piada nenhuma. Mas não
foi de horror, foi de pensar "isto não é real". Ficas a processar
aquilo. A reação não se dá só pelo humor, mas pelo desfasamento da realidade,
de pensar "isto não pode estar a acontecer", algo que sai de tal
forma fora dos parâmetros que não pode ser real, mas depois apercebes-te que
sim. E isso é algo todos nós já sentimos. É uma defesa. Quantas pessoas é que
se riem em funerais? Estão contentes pelo morto? Não, mas é uma reação humana.
Eu no livro tenho muito isso, são coisas de tal maneira trágicas que, da
maneira como é exposto - e eu nem tento fazer um grande exercício de construção
de humor - a tua primeira reação é rires-te, para depois pensares: "hei,
espera aí..."
Tendo em conta que disseste que não há personagens boas,
para mim vai um pouco de encontro àquela máxima aristotélica de que a comédia
se serve do patético, nós rimo-nos dos patetas ...
E de nós próprios, nós também somos patéticos. Todos nós
temos esse lado. Alguém tem um ar sério quando espirra e lhe caem os óculos do
nariz? É a beleza, que tem um lado sempre feio. Nada é uma coisa só.
"A Imortal da Graça" inscreve-se na longa tradição
de livros que não só colocam as suas personagens em Lisboa, mas servem-se disso
para falar da própria cidade. Tiveste alguma obra como referência quando te
preparaste para este texto?
Não, podia estar para aqui a citar nomes mas não. Gosto
muito de autores como o Dinis Machado, mas não me baseei em nada. O meu
processo para escrever romance é muito diferente de quando faço outras coisas,
mesmo pelos timings que isso envolve. Quando escrevo televisão ou teatro,
estruturo muito bem as coisas, já tenho a estrutura acabada antes de começar a
fazer diálogos, independentemente de poderem sugerir alterações. No caso do
romance, vou escavando muito, ando à procura. A partir de certa altura, as
personagens, e o universo onde estão, já se encontram de tal maneira definidos
que, sem qualquer lado esotérico, elas começam a falar sozinhas. Há ali coisas
no livro que eu fiquei surpreendido quando aconteceram, porque para aí
caminharam. Claro que há todo o trabalho de minúcia de voltar atrás, mudar
coisas, acrescentar outras, para que tudo seja mais forte e tenha uma
ressonância maior. Mas voltando à pergunta, pegando naquilo que estávamos a
falar acerca de cada um de nós ter uma cidade, esta é uma das Lisboas que tenho
aqui dentro.
Costumas ser apresentado como um homem do Renascimento dada a
forma como te desdobras por várias artes, realizando, compondo e escrevendo,
para rádio, teatro, televisão e cinema entre outras áreas. O que é que levou a
percorrer esse percurso multidisciplinar?
No que toca às histórias propriamente ditas, o meio em que
estás a contar a história condiciona e potencia-a. Se eu contasse esta história
numa série, não seria assim. Não era só modificá-la para um discurso
televisivo. Haveria partes da história, o conteúdo, que teriam ser modificadas
em função do suporte, mudava a sua própria eficácia. É perceber que uma
história pode ser mais viçosa se contada em teatro ou televisão, mas esta só
podia ser contada por romance. É por isso que trabalho em meios tão díspares e
com tons tão diferentes. Não tenho interesse nenhum em fazer só comédia ou só
drama, ou mesmo em música, tocar só Stoner Rock, só Punk ou só Free Jazz. E
depois gosto também de trabalhar em equipa, porque aprendo imenso, ganha-se
muito nesse pingue-pongue. Isto, o romance, é um trabalho solitário, em que estás
a fazer pingue-pongue contigo próprio. São processos muito diferentes que, a
mim, mantém-me não aborrecido. É uma boa maneira de não estagnar e de não ficar
maluco. E também, quando há contaminação de projecto para projecto, desta ser
produtiva e não uma erva daninha que vai corroer o que vier a seguir.
Como por exemplo?
Imagina que eu só escrevia romances, mas todas as coisas que
me vêm à cabeça têm a ver com uma comédia com um tom mais popular ou mais ácido
e eu, como não tinha mais lugares onde pudesse depositar as ideias com esse
tom, ia tudo parar ao mesmo sítio. Não tenho interesse em ter um bolo disforme
de tons e, se quero fazer uma coisa, faço-a, não querendo dizer que não fique
contaminada por aquilo que trago ou que aprendi de outros projetos. Mas isto
também me dá uma clareza do que é que pertence aonde. Há 100 páginas que não
estão no livro.
Portanto, diferentes meios pedem diferentes histórias e
diferentes histórias têm como destino diferentes meios.
Sem dúvida, não quer dizer que não possas ter a mesma
história contada em meios diferentes, mas a transformação que têm de sofrer é
muito grande. Tu vês isso nas adaptações cinematográficas de livros. As mais
bem sucedidas, normalmente, são aquelas que respeitam a essência da história,
são modificadas de acordo com o meio onde estão a ser contadas. Se estás a pôr
a mesma história noutro meio sem a adaptação necessária, vais contra a sua
intenção.
Quais são as consequências práticas do ato de adaptar?
Há coisas que no livro funcionam mas na televisão não,
porque os timings são diferentes, o tempo de processamento também, a própria
dinâmica que o discurso televisivo impõe é completamente diferente de um
romance. Num livro é muito mais simples voltares atrás para ver alguma coisa do
que numa série, o teu espetro de atenção é diferente.
Podes dar um bom exemplo desse tipo de adaptação?
Uma distância absolutamente brutal que se vê entre o livro e
o filme, e eu adoro ambos, é o “The Shining”. Vês os dois... têm o mesmo
arranque, mas são histórias diferentes. Agora, a intenção, eu acho que está lá.
Apesar dos choques entre o [Stanley] Kubrick e o [Stephen] King, são duas obras
primas e o que eu retiro de cada uma é diferente. A adaptação tem esse nome por
um motivo.
Referiste há pouco a questão da contaminação entre as várias
áreas onde te moves. Há vários momentos neste livro que são cinemáticos - o
plano da Graça a olhar para o pai, por exemplo - e que podiam ser imaginados
com sendo vistos por uma lente. Foi consciente?
Penso que esse tipo de imagem tem um lugar muito presente na
literatura. As grandes diferenças de que eu falo de suporte para suporte têm
mais a ver com o lado formal do que propriamente a criação de imagens. Eu, como
leitor, procuro isso na literatura, são imagens que eu gosto que fiquem
vincadas. Estava a referir o “Shining”. Há uma cena que não está no filme mas
que é das coisas mais cinematográficas e que, para mim, é o grande horror no
livro do King e que me ficou quando era puto. Repara que estou a tratá-la como
cena mas é no livro. É quando tens um almoço de família, contado do ponto de
vista do miúdo, em que o pai, com os copos, dá uma estalada na mãe, à mesa, e
os óculos dela caem em cima do puré de batata. Lá está, a primeira reação é
essa, isto é horrível e uma pessoa ri-se, mas depois apercebes-te que o miúdo
está ali, coitadinho, não consegue olhar nem para a mãe nem para o pai porque
está a acontecer uma cena horrível e ele está fixado nos óculos. Isto é super
cinematográfico, quase que estás a ver em fundo, desfocado, o pai a bater à mãe
e em primeiro plano o puré de batata e os óculos.
A Imortal da Graça
créditos: Quetzal Editores
Já estares versado em diferentes áreas permite-te não caíres
em armadilhas quando fazes adaptações?
Tento, sim. Lá está, quando estou a escrever um livro, estou
a pensar na pessoa que vai ler, estas coisas que estou a dizer são um exercício
do que faria se precisasse de adaptar "A Imortal da Graça" para outro
formato. Mas quando escrevo para romance, é a maneira como acho que deve
aparecer. Podia ser de outra maneira, há de haver 300 maneiras de contar aquela
história, mas talvez dessem em 300 histórias diferentes. Quase parecidas, mas
diferentes. Eu lembro-me que no primeiro episódio de uma série que eu fiz, o
“Aqui Tão Longe”, tinha amigos a dizer-me que aquilo às vezes tinha um discurso
demasiado literário. Fiquei sem perceber, mas foi a leitura que as pessoas
tinham, talvez porque na altura também tinha lançado um livro e então a
aproximação que fizeram àquilo também foi diferente. Tento fugir disso.
Livros cujas passagens fazem lembrar televisão, séries cujas
passagens fazem lembrar literatura.
Mas eu convivo muito bem com isso. Faço o "Conversa da
Treta", os Cebola Mol, livros... Sabes, há malta que pensa "se fizer
isto, não posso fazer aquilo", mas era só o que faltava. Não posso ter uma
banda de Punk?
É INSUPORTÁVEL PENSARMOS QUE VAMOS MORRER, QUAL É A ÚNICA
MANEIRA DE UM GAJO SUPORTAR ESSA IDEIA? É COM HUMOR. NÃO É MUITO ENGRAÇADO
PENSAR QUE ESTAMOS AQUI TODOS CHEIOS DE ESFORÇOS, SONHOS E ESPERANÇAS E DEPOIS
MORREMOS? A MIM DÁ-ME VONTADE DE RIR! TAMBÉM ME DÁ VONTADE DE CHORAR, MAS
RIO-ME!
Isso faz lembrar um preconceito, de que uma pessoa ligada ao
humor não está capacitada para escrever um drama ou um thriller.
Mas eu acho que está. Vou dar outro exemplo, o do Mário
Botequilha. Ele é um humorista brutal e é capaz de drama pesadão. Mais do que
dizer se é possível para um humorista escrever drama, se calhar fá-lo mais
facilmente do que alguém que não escreve humor. Isso é muito visível em atores.
Não digo que seja uma constante, mas tens grandes atores de registo dramático
que nunca conseguiram fazer comédia, e não estou a falar apenas de Portugal.
Mas tens muitos humoristas e comediantes que fazem registo dramático, na boa.
Falta alguma coisa à verdadeira compreensão do drama, da tragédia, se não tiver
humor a suportá-la. A condição humana dita que a tragédia tenha sempre alguma
piada, há uma camada do trágico que é a piada. É insuportável pensarmos que vamos
morrer, qual é a única maneira de um gajo suportar essa ideia? É com humor. Não
é muito engraçado pensar que estamos aqui todos cheios de esforços, sonhos e
esperanças e depois morremos? A mim dá-me vontade de rir! Também me dá vontade
de chorar, mas rio-me!
Um ator de comédia quando faz um papel dramático é que é
definido como um ator a sério. Ainda se olha para a comédia como uma arte
menor?
Acho que já foi mais assim mas ainda acontece. A frase não é
minha, mas lembra aquela necessidade das pessoas terem os seus remédios
amargos. A ideia de um remédio doce faz confusão, ou seja, de que o humor pode
ser uma experiência transcendente é uma coisa que faz muita confusão ainda a
algumas cabeças. Preferem que a coisa seja só negra.
O que parece ligar a grande maioria dos projetos em que te
envolves, quer no seu momento de criação ou de execução, é a sua natureza
colaborativa. Um livro parece ser uma tarefa bem mais solitária. Vindo desse
meio, entrar no mundo da literatura mais formal é uma montanha a escalar
sozinho?
Não o sinto com esse peso. Desde puto que quis aprender a
ler por causa dos livros de super-heróis, via aquelas imagens e queria perceber
o que estavam a dizer. Rapidamente daí passei para policiais, mas
principalmente ficção-científica, explorando depois o fantástico e literatura
em geral. Também por isso, desde muito cedo comecei a fazer as minhas BD's e a
escrever os meus livros, só eu, fechado no meu quarto. Ou seja, já tinha
exercício feito. Quando escrevo o meu primeiro romance ["Se não podes
juntar-te a eles, vence-os"], em 2013, nunca tinha escrito algo para ser
editado, mas já tinha escrito muitos livrinhos quando era miúdo. É uma montanha
no sentido em que é um trabalho mais demorado, mas também porque vou fazendo
outras coisas pelo meio. Entre o outro livro e este escrevi o quê, cinco séries
e quatro peças? Isto é feito nos intervalos da chuva, há toda uma vida a
decorrer enquanto o livro está a acontecer.
Não é, portanto, uma questão de sentir o peso de uma
responsabilidade mais solitária?
Eu não quero estar a passar uma ideia de diletantismo, quero
que o livro seja apreciado porque estou a escrever para pessoas e não para mim.
Mas a parte de responsabilidade, no que toca a elencar elementos que vêm comigo
durante a escrita, está muito para baixo. Há toda uma data de preocupações que
eu tenho antes desse peso da responsabilidade: o compromisso para com a
história, para com a estrutura, para com a palavra, a própria linguagem... é
preciso não esquecer que num guião, a única coisa que é ouvida são os diálogos.
As didascálias e as descrições das ações não precisam de ser polidas, são
funcionais. Aqui não, tudo é lido, não há uma vírgula que possa ser colocada
por acaso. É um trabalho de maior minúcia, se quiseres, porque para além da
estrutura e dos diálogos, tudo vai ser escrutinado e não é filtrado pela ação
do ator, do realizador ou do diretor de fotografia. É só a minha visão e a do
leitor. Só há duas pessoas neste processo.
Estás muito ligado à escrita humorística dos últimos 20 anos
em Portugal, especialmente no que toca à televisão. No entanto, apesar de este
ainda se manter um meio relevante, vemos o foco deslocar-se para canais
alternativos, principalmente online. Como assistes a estas alterações?
É positivo, são mais janelas. Lá está, os suportes estão a
influenciar o conteúdo. Estávamos a falar de fazer bingewatching. O facto de
estares a escrever algo que sabes que não vai ser consumido um episódio por
semana, que vai sair todo num Netflix da vida e que pode ser visto em binge, é
escrito de maneira diferente do que se sair de semana a semana. É toda outra
lógica. E se estás fazer conteúdo - já nem falo dos Youtubers, em discurso
direto para com quem está a ver - mas mesmo produtos de ficção como a RTP tem
vindo a fazer, com a Casa do Cais. São coisas que tematicamente não tinham
lugar no canal generalista mas que já têm lugar ali [online], que permitem
abordagens e tons que, se calhar, até agora não tinham uma maneira de chegar a
ninguém, mas que já existem e com qualidade. Esse [Casa do Cais] é um ótimo
exemplo de uma série [online] muito bem feita, mas que na RTP em sinal aberto
não lhe abriria a porta, porque não faria o que o canal precisa, de alcançar um
público mais transversal. Mas há um público para isso, não só em termos quantitativos,
mas também de estratificação por idade e etc, se calhar a malta mais nova já
não consome televisão de fluxo, não quer saber das horas, vê os programas
quando lhe apetece. Tudo isso interfere no conteúdo e no tom. Portanto, só
tenho coisas boas a dizer quanto a essa abertura, quanto mais meios de escoar
talento houver, melhor.
Vive-se uma boa era para ser argumentista/guionista em
Portugal?
Não sei responder a essa pergunta. Há 20 anos havia coisas
boas e coisas más e agora também. Acho que hoje é mais fácil, talvez, entrar no
mercado e se calhar menos ficar.
TENS PROJETOS QUE CHEGAM A MUITO POUCA GENTE, MAS CUJO ECO
NAS REDES SOCIAIS É ENORME, FICA-SE COM A ILUSÃO DE QUE FOI UM SUCESSO.
Aquela que tem sido maioritariamente a tua casa, a RTP,
continua a ser responsável por grande parte da produção nacional.
Sim, para ficção e para humor, a RTP tem vindo a ter um
papel fundamental nisso. Deixa ver o futuro, para o ano temos uma nova
administração e temos de ver o que aí vêm. Estou a escrever um programa que há
de estrear... mas isto é super volátil e cada vez o é mais. As coisas têm
tempos de vida mais curtos e às vezes o eco que este ou aquele projeto tem não
é representativo. É quantitativo mas não forçosamente qualitativo. Tens
projetos que chegam a muito pouca gente, mas cujo eco nas redes sociais é
enorme, fica-se com a ilusão de que foi um sucesso. Em que termos? Em números
não foi.
Referiste estar a preparar uma série. Ainda vamos no segundo
mês de 2019, mas já lançaste um livro, já saiu um filme com argumento teu e
ainda estiveste envolvido no regresso de Zé Manel Taxista [personagem
interpretada por Maria Rueff] aos palcos. O que é que te aguarda no resto do
ano?
Bem, para já é a série e outra peça, a série vai ser
anunciada muito em breve, não posso ainda dizer o que é. Tenho ainda duas ou
três coisas das quais não posso falar, é muito cedo.
Vivemos tempos de saudosismo pelo passado. Alguma vez
sentiste a tentação de recuperar projetos antigos?
Isso do saudosismo tem muito que se lhe diga. É o saudosismo
do género "vamos comer iscas em redução de vinho tinto", já é uma
coisa pós-pós-moderna, com laivos gourmet... percebes o que eu quero dizer? São
reinterpretações com muita verdade no pacote mas se calhar pouca verdade na
essência.
VEM AÍ UMA NOVA "TRETA", É A TAL PEÇA QUE EU NÃO
QUERIA REVELAR MAS QUE VAI SER ANUNCIADA EM BREVE.
Se recuperasses, por exemplo, o Contra-Informação para 2019,
teria de ser forçosamente apresentado noutros moldes?
Sim, a realidade é completamente diferente. O "Contra"
acabou em 2011, já lá vão uns 7, 8 anos, seria outra realidade. O “Contra”, sem
ser comigo, com o Rui [Cardoso Martins] e com o [José de] Pina, teve um
regresso com a Mandala a produzir mas com outros autores e aconteceu e
desapareceu. Olha o Conversa da Treta... nós fizemos o "Filho da
Treta" e agora vem aí uma nova "Treta", é a tal peça que eu não
queria revelar mas que vai ser anunciada em breve. O [António] Feio morreu, mas
o Zé Pedro [Gomes] está connosco. O que aparecer agora vai ser diferente. Não
há saudosismo, é continuar. Eu conto, vai-se chamar o "Casal da
Treta", que vai ser o "Zézé" com a Ana Bola, pela primeira vez
vais ter uma mulher naquele contexto.
No que toca a retornos, tivemos o exemplo recente do
Levanta-te e Ri.
Que é diferente, até os gajos que lá estão são diferentes.
Aquilo continua a ter o Marco Horácio mas já não tem aqueles tipos que tu
associavas com o Levanta-te e Ri. Tens rostos novos, teve forçosamente de ser
uma coisa diferente. E ainda bem.
Mas não deixa de ser um formato que as pessoas já conhecem
e, até mesmo de uma perspetiva de custo-benefício, é mais fácil apresentar um
projeto que já tem uma linhagem do que algo totalmente nova.
Sim, já vem com uma carga. Isso leva-nos para a conversa de
como se trabalha a nostalgia. Relativamente ao 1986, que eu fiz com os Markls
[Ana e Nuno Markl], falo novamente na questão da verdade em relação à coisa. Tu
podes fazer uma coisa que assenta única e exclusivamente na nostalgia enquanto
um revisitar de lugares, sensações e vivências que existiram em determinada
altura, mas eu acho que há maneiras melhores. Se vires uma série que foi feita
nos anos 80, como a Balada de Hill Street, e se não tiveres uma carga afetiva
para com essa série, tu reconheces que é uma coisa datada, numa dinâmica que
não faz sentido. Eu gosto porque cresci com aquilo. A melhor maneira de seres
verdadeiro para com aquilo que era a intenção e o legado afetivo, a ressonância
emocional do que era na altura, é fazeres tudo menos imitá-lo, porque senão só
vais afastar os leitores de hoje. Pode haver saudosismo e nostalgia, mas sempre
com uma visão atual. Volto ao que estava a falar sobre o livro: evolução sim,
mas sem perda de identidade. É preciso perceber o que é que foram as coisas
realmente importantes da época mas com os códigos e a dinâmica de hoje,
perceber o que fez daquilo especial. Os Napalm Death eram super “edgy” quando
apareceram, mas hoje em dia quantas bandas é que tens com aquela sonoridade? O
Kerouac também escreveu um livro e os beatniks estavam muito à frente, hoje em
dia é mais uma cena nostálgica e saudosista.
E que projetos é que ainda te falta concretizar? Qual é o
prémio do Euromilhões que te falta levantar?
Não sei, tenho muita coisa que ainda quero fazer, mas vou
fazendo. Há coisa que, lá está, estão super embrionárias e não quero estar a
falar sobre elas, mas tenho muito na calha, até noutros suportes como a
banda-desenhada, onde tenho feito coisas esporádicas e pequeninas. Ainda tenho
uns quantos livros aqui dentro, ou não, mas é possível que sim. Tenho mais dois
na calha que não sei se são romances, podem ser coisas mais curtas. Mas como
não faço as coisas só por gosto, sou um profissional do que escrevo, por isso
preciso de continuar a trabalhar para fazer televisão e teatro. Daí a ter uma
visão apaixonada mas também prática em relação ao futuro. Mas sim, ainda tenho
muita coisa com a qual chatear as pessoas...
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