Palmas para António Costa, que falou muito bem
É um escândalo as portas giratórias entre sector público e
privado. E é um escândalo a endogamia deste governo. Os dois desgraçam
Portugal. Escolher entre eles? Não, obrigado.
João Miguel Tavares
30 de Março de 2019, 6:09
Podem pôr as pipocas
no micro-ondas, que o espectáculo está a ficar giro. Não sei se têm conseguido
acompanhar todos os desenvolvimentos do Familygate nos últimos dias, mas é para
isso que eu cá estou. Então é assim: 1) Marcelo deu uma canelada em Cavaco,
dizendo que os familiares socialistas que hoje estão em Conselho de Ministros
foram nomeados por ele. 2) Cavaco deu uma canelada em Marcelo, dizendo que no
tempo em que ele foi primeiro-ministro não detectou – “espero não me ter
enganado” – nenhuma ligação familiar. 3) Infelizmente, enganou-se um bocadinho.
Por isso, 4) António Costa deu uma canelada em Cavaco, dizendo – e cito – que
“o professor Cavaco Silva tem muitas qualidades e seguramente a melhor não é a
memória”. 5) A canelada de Cavaco virou-se contra a sua própria canela, porque
houve mesmo familiares em governos seus (exemplo: os irmãos Leonor e Miguel
Beleza; ou o sobrinho Durão Barroso e o tio Diamantino Durão). Ainda assim, 6)
Cavaco não se enganou muito, porque o regabofe do presente é mesmo inédito na
História de Portugal. 7) As caneladas também se viraram contra Marcelo, que no
meio de tanta notícia e confusão sentiu-se obrigado a apresentar a lista de
todas as ligações dos seus familiares à política, desde 1955 até aos dias hoje
(e são muitas).
O que é que ganhamos com tanta canelada entre altos quadros
da nação, para além das inevitáveis nódoas negras? Ganhamos algo que me parece
até bastante estimável: mais transparência pública e mais exigência quanto aos
padrões éticos de quem nos governa. Aliás, como a mostarda finalmente chegou ao
nariz de António Costa, que percebeu que estava a ser queimado em lume brando, ele
decidiu habilmente dar um passo em frente e entrar a pés juntos sobre Cavaco
Silva e sobre Passos Coelho, com esta declaração sibilina: “Uma coisa posso
garantir: nenhum dos membros do meu Governo sairá do Governo para ir formar um
banco que depois vá à falência e fique a viver à custa dos contribuintes
[referência a Oliveira e Costa e ao BPN]. Nenhum membro do meu Governo sairá do
Governo para ir gerir uma infra-estrutura cuja construção ordenou [referência a
Ferreira do Amaral e à Lusoponte]. Nem nenhum membro do meu Governo irá
adquirir activos a empresas que privatizou [referência a Maria Luís Albuquerque
e à Arrow Global].” E acrescentou: “Essas é que são as relações com que se
deviam efectivamente preocupar.”
Bravo, senhor primeiro-ministro, bravo. Vamos por um momento
esquecer que o ministro Joaquim Pina Moura, depois ter tido nas suas mãos a
reestruturação do sistema energético no governo de António Guterres, acabou
presidente da Iberdrola. Vamos também esquecer que o ministro do Equipamento
Social Jorge Coelho acabou CEO da Mota/Engil. Ou que o ministro Fernando Gomes
acabou administrador executivo da Galp. Aliás, o melhor é mesmo esquecermos,
porque cada vez me lembro de mais nomes. Aqui o que importa são duas coisas. Em
primeiro lugar, que o senhor primeiro-ministro não pode “garantir” coisa
alguma, porque não manda no futuro dos seus ministros, e ainda bem. Em segundo
lugar, importa sublinhar que António Costa está cheiinho de razão. Aquilo que
ele referiu é um autêntico escândalo. Só que estes escândalos não são
disjuntivos – são copulativos; e eu quero preocupar-me com ambos. É um
escândalo as portas giratórias entre sector público e privado. E é um escândalo
a endogamia deste governo. Os dois desgraçam Portugal. Escolher entre eles?
Não, obrigado.
“Conheci muito bem o seu pai, foi meu aluno”
Nos partidos não se deve viver a não ser com muita
moderação. E fora deles é que estão a maioria das “famílias” dos predadores.
José Pacheco Pereira
30 de Março de 2019, 6:25
O actual tema das
“famílias” é um típico tema de campanha eleitoral. Há quem o trate a sério e há
quem com ele faça campanha eleitoral. Não gostaria de me misturar com uma
direita que, como não consegue criticar o núcleo duro das políticas do governo,
na economia e nas finanças, atira ao lado. Acontece que não tem qualquer autoridade
para falar, até porque tem demasiadas “famílias” bem mais perigosas do que
aquelas que criticam e, sobre elas, nem uma linha. Acresce que têm também o
mesmo tipo de “famílias” governamentais e arredores do PS. Admito que, no
passado, mais diluídas do que a actual concentração governamental.
Contei outro dia, na “Circulatura do Quadrado”, uma cena que
todos os alunos de Direito que tiveram Marcelo Caetano como professor
conheciam. Caetano chegava à primeira aula e chamava os estudantes um a um, e
interpelava-os com variantes da mesma conversa: “conheci muito bem o seu pai”;
“você não é sobrinho de X? É que ele foi meu aluno”; “é da família X? O seu tio
esteve comigo nos Graduados da Mocidade Portuguesa”; “o seu pai ainda está em
Moçambique?”, etc., etc. De vez em quando, empancava num plebeu e não sabia o
que dizer. Mas a concentração de alunos, filhos, sobrinhos e parentes de outros
antigos alunos na Faculdade de Direito de Lisboa era muito grande. Estávamos
numa época em que na universidade havia apenas 4% de estudantes de famílias
operárias e camponesas. Aliás, mesmo após 45 anos de democracia, ainda existem
problemas com as “famílias”, em particular filhos de professores na Faculdade
de Direito, que suscitaram um conflito a que não se deu muita atenção pela
necessidade de as provas escritas serem anónimas para evitar favorecimentos
“familiares”.
Veio o 25 de Abril e o recrutamento político democratizou-se
significativamente. Partidos como o PSD, o PS, o PCP trouxeram para a vida
política gente que vinha de “baixo” ou do “meio”, mas essa democratização não
foi tão longe como se pensa. Uma divisão social profunda continua a existir na
sociedade portuguesa, só que a parte que cabe aos políticos eleitos e aos
governantes é a parte de baixo da cadeia alimentar das “famílias”. A obsessão
populista com os “políticos” esquece que a maioria deles não tem qualquer poder
significativo e, ao concentrar-se neles, ajuda a permanecer discretos os
verdadeiros poderosos. E esses continuam a “mandar” em Portugal. E não estou a
falar do DDT mais conhecido, mas no “círculo de confiança” que dos negócios à
advocacia, aos lóbis, às empresas, aos think tanks e fundações subsidiados,
controlam tudo o que é importante na decisão económica, social e política em
Portugal. Há um “círculo” parecido na cultura e nos media, com relações
próximas com o que referi antes, mas esse fica para outra altura.
Esse “círculo de confiança” é informal, mas controla
escolhas de pessoas, ou nomeando-as para lugares estratégicos ou vetando-as,
talvez o mais importante poder que tem, e acumula uma enorme quantidade de
informação, pura e dura, sem distracções, que lhe vem da circulação dos seus
membros pelos lugares de poder, quer políticos, quer nos conselhos de
administração, quer nas comissões de remuneração, quer na pseudo-governance nas
empresas, quer nos escritórios de advogados de negócios – sempre os mesmos a
serem contratados pelo Estado ou contra o Estado –, quer nas empresas de
auditoria ou de consultadoria financeira, nos grandes bancos, no Banco de
Portugal, nos clubes desportivos, nas ligações obscuras na União Europeia,
etc., etc. Essas é que são as “famílias” perigosas e também estão no governo,
como de costume nas áreas mais sensíveis.
Comparado com isto, as “famílias” governamentais e
partidárias são chicken feed, excelente expressão inglesa para designar “uma
pequena quantidade de alguma coisa”. Não é que não sejam um sintoma, só que não
são um sintoma daquilo que se lhes aponta. São um sintoma de um outro problema
da democracia, o encolhimento da oligarquia partidária à medida que, cada vez
mais, nos grandes partidos, PS e PSD, se implantam carreiras
profissionalizadas, desde as “jotas” ao partido adulto, com gente que não tem
qualquer experiência das dificuldades da vida a não ser in vitro dentro dos
partidos. E é natural que a endogamia cresça, como acontece em todos os grupos
que encolhem ou são muito fechados.
Há, no entanto, um outro factor preocupante, mas com esse
pouca gente se interessa: é que tudo lhes facilita andar mais depressa. É que,
sem pôr em causa o mérito de muitos membros dessas “famílias”, quando se lhes
analisa o currículo profissional, académico ou de lugares públicos ou privados,
se percebe que, face a outras pessoas de idêntico mérito, elas sobem mais
depressa e isso tem a ver com os círculos de conhecimentos e amizades que os
partidos proporcionam ou com o papel de instituições como a maçonaria no PS ou
fundações, lóbis universitários ou mediáticos, na direita, ou as relações
certas com as “famílias” certas.
É como as chitas, correm muito, são muito eficazes a caçar,
mas casam demasiado entre elas e ficam mais expostas às doenças. As explicações
patéticas de alguns dos membros do PS que vêm explicar por que razões casam com
“camaradas” de partido mostram a doença das chitas em todo o seu esplendor,
vivem no partido, convivem no partido, casam (e descasam) no partido, adormecem
no partido, acordam no partido. Nos partidos não se deve viver a não ser com
muita moderação. E fora deles é que estão a maioria das “famílias” dos
predadores. As chitas vão passar, os predadores invisíveis vão continuar lá, na
sombra. E diversificam os casamentos e divorciam-se menos. Sabem muito. Estes
jovens ambiciosos do PS não sabem nada.
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