À espera de que chova. É preciso rever licenças para uso da
água do Tejo
Ministério do Ambiente reconhece que, neste mês, os níveis
de armazenamento "são francamente inferiores aos observados em 2018".
É preciso avaliar as licenças dos recursos hídricos para uso do rio Tejo, alertam
especialistas.
Miguel Marujo
26 Março 2019 — 06:28
O Tejo vai à míngua, com os pescadores a queixar-se de que o
rio parece uma ribeira em determinados trechos, num momento em que se antecipam
quase nenhumas águas de março e o Ministério do Ambiente reconhece que, neste
mês, os níveis de armazenamento "são francamente inferiores aos observados
em 2018". Sem ficar à espera que chova, é preciso avaliar as licenças dos
recursos hídricos para uso do rio Tejo, alertam especialistas.(…)
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Leiam e Releiam este artigo de 19 de Novembro de 2017 …
OVOODOCORVO
“Se isto não mudar no Tejo, tudo vai morrer, tudo”
O Tejo está a morrer em Espanha, dizem activistas de defesa
do rio, especialistas e autarcas. A seca é apenas mal menor. Os 600 mil milhões
de litros de água transvasados para regar os campos agrícolas de Múrcia e a
elevada contaminação são o mal maior. Se morre onde nasce, não chegará onde
desagua.
Luciano Alvarez (Texto) Toledo, Nuno Ferreira Santos
(Fotografia) e Frederico Batista (Vídeo) 19 de Novembro de 2017, 5:59
A construção, em 1958, da Barragem de Entrepeñas, na
província espanhola de Cuenca a cerca de 100 quilómetros a sudoeste de Madrid,
deu à pequena vila de Sacedón uma magnífica praia fluvial. Os cerca de três
quilómetros de água mais afastados do paredão da barragem percorriam todo o
lugarejo, com as águas limpas do rio Tejo a quase tocarem a primeira linha de
casario e estendendo-se muito para lá dele. O lugar ganhou fama e gente, que
ali começou a ir de férias ou passeio. Chamaram-lhe então “mar de Castela”.
Cresceu a vila, cresceram as casas de veraneio, abriram
hotéis, quartos para alugar, restaurantes, negócios ligados aos desportos
náuticos. Fotos dos finais dos anos de 1970 mostram a praia cheia de gente e
autocarros de turismo nas estradas junto à água.
Mas, a partir daí, ano após ano, o volume de água começou a
baixar e a afastar-se de Sacedón. Em 1995, num período de grande seca, já não
havia qualquer praia no lugar. Restava uma linha de água que ligava a antiga
zona balnear à albufeira da barragem. As chuvas de Inverno recuperam algum do
volume do rio, mas nunca a praia.
Este ano, há cerca de quatro meses, desapareceu pela
primeira vez toda a água da antiga zona balnear. Resta uma poça junto à
albufeira, também ela em níveis mínimos. Resta igualmente, em jeito de
monumento anedótico à tragédia, um ancoradouro onde se mantém um barco
amarrado.
O resto são terras gretadas pelo calor, quase sem vida
animal no solo, lixo, conchas secas dos moluscos que por ali existiram, num
deserto que revela os antigos caminhos de terra antes da construção da barragem
e que se estende por cerca de três quilómetros de comprimento e cerca e 1,5 de
largura. Ao “mar de Castela” os locais chamam agora simplesmente “pântano”. E
da sua margem desapareceram pessoas, especialmente jovens, fecharam hotéis,
restaurantes, comércio, desportos náuticos e é proibido tomar banho e pescar
onde ainda existe água na albufeira da Barragem de Entrepreñas – uma proibição
que se estende a quase todos os locais onde em Espanha corre 68% da extensão
total dos 81.477 metros quadrados do Tejo.
Transvase polémico
Como se chegou aqui? Os períodos de seca nas últimas
décadas, nomeadamente as mais recentes, como a deste ano, pesaram para a
diminuição significativa do caudal do rio – no século XX, segundo vários
estudos espanhóis, a diminuição do caudal na zona cabeceira do rio foi de 47%.
Mas a seca é, para as populações locais, uma gota de água na tragédia. O
principal problema chama-se Tejo-Segura, um sofisticado projecto de engenharia
hidráulica de barragens, estações elevatórias de água, tubagens e canais que
começou a funcionar em 1981 (ver texto nestas páginas), desviando a água do
Tejo desde as províncias de Cuenca e Guadalajara, na região Autonómica de
Castela-La Mancha, até uma das barragens do rio Segura, na região de Múrcia,
por um percurso de quase 300 quilómetros.
Esse transvase pode levar por ano até 600 hectómetros
cúbicos (hm3) desde as barragens do médio Tejo espanhol em direcção a uma das
represas do rio Segura, mas já chegou a levar 1000 hm3 num passado recente. Os
600 hm3 são mais do que duas cidades de Lisboa consomem.
Quando o transvase está a funcionar na sua máxima força,
suga 33 mil metros cúbicos de água por segundo que é ejectada com uma pressão
tal que, por vezes, bate na turbina e é projectada de volta. A água do Tejo
transformou Múrcia, onde antes do projecto a água escasseava, na chamada “horta
de Espanha” e num dos maiores produtores agrícolas da União Europeia.
A revolta contra o Tejo-Segura é visível nas varandas das
casas de várias cidades, grandes e pequenas, nos edifícios de algumas
autarquias, nos autocolantes em viaturas e em graffiti nas paredes que onde se
lêem frases como “Não nos roubem a água”, “A água é nossa” ou “Tejo-Segura nem
uma gota mais”.
“A máfia da água”
J., um activista da associação Rio Tejo Vivo, marca encontro
no Miradouro do Alto de San Julian, à entrada de Sacedón (com cerca de 1500
habitantes) e com vista privilegiada para o “pântano”. Aceita falar sobre a sua
associação, se lhe garantirmos o anonimato. “A máfia da água persegue todos os
que a denunciam. Tentam identificar-me a mim e aos meus colegas. Se descobrirem
quem somos, vão chover processos em tribunal. Se estiveres empregado, vais
perder o emprego. Já fizeram a vida negra a muita gente e vão continuar a fazer”,
justifica o homem com pouco mais de 30 anos.
A Rio Tejo Vivo actua através de uma página no Facebook onde
denunciam “transvases ilegais” e “descargas de todo o tipo de lixo no rio”. Na
página há vídeos feitos na parte portuguesa do Tejo. A “máfia da água”, ou os
“murcianos do transvase” são, segundo J., “os poderosos que lucram com a água
que é do povo”, os que “estão a matar o rio para encherem os bolsos, os
políticos corruptos”.
“Estão a matar o rio e eles sabem que o estão a fazer, mas
enquanto houver água no Tejo vão sugá-la, transformá-la em euros e têm poder
suficiente para mandar abaixo todos os que se atravessarem no caminho”, afirma.
J. aponta para o “pântano”. “Aqui já houve um mar de água,
mas a seca e, principalmente, roubo da água deixaram isto. Já tinha havido uma
situação idêntica em 1995, mas depois choveu e com ela voltou alguma água,
embora nunca como quando havia uma praia, muito longe disso. Agora foi toda.”
A guerra da água
A cidade de Aranjuez, com cerca de 65 mil habitantes e desde
2001 Património de Humanidade da UNESCO, é uma das mais afectadas pela falta de
água e carro da frente pelo fim do Tejo-Segura.
“Deus trocou o tempo para não sabermos mais do que ele”
“Deus trocou o tempo para não sabermos mais do que ele”
Patrícia Moreno, a socialista que preside à camara da
cidade, recebe-nos no seu gabinete com um sorriso largo e de braços abertos.
“Bem-vindos, bem-vindos, é bom que Portugal saiba o que se está a passar.”
“O principal problema do Tejo na nossa região é só um: não
há água”, afirma logo no início da conversa. Para a autarca, o transvase
Tejo-Segura “está a matar definitivamente o rio” e “está a matar a paisagem [de
Aranjuez] que é protegida pela UNESCO”.
“Sem rio não existe vida. Se não há rio, não há paisagem,
não há bosque, não há animais. Não há nada e nós nada podemos proteger. Isto é
o que está a fazer o transvase Tejo-Segura. Está a destruir tudo, a nossa
essência, a nossa agricultura, o nosso desporto aquático, que aqui é o
principal desporto, o nosso turismo, as nossas festas populares que festejam o
rio, a nossa cultura e a nossa economia”, salienta.
“O transvase tem de parar já”, afirma, acrescentando que é
necessário “um grande pacto pela água”, entre o Estado central e “os municípios
afectados pelo transvase, que resolva o problema de maneira territorial e não
política”. Garante mesmo que todos os municípios, independentemente da sua cor
política, “estão unidos contra o roubo da água”.
Questionada sobre os efeitos que a paragem da transferência
de água teria nas populações de Múrcia, Patrícia Moreno diz que há outras
soluções para abastecer aquela região, como a dessalinização da água do mar, ou
encontrá-la nos aquíferos subterrâneos de Múrcia onde diz estar “provado
cientificamente que há muita água”.
“Acabem com as cada vez mais canalizações ilegais de água,
em edifícios igualmente ilegais, acabem com os campos de golfe, com cultivo
intensivo e cada vez mais extensivo no meio de um deserto. Num deserto não se
pode cultivar, por isso não podem continuar a ampliar as zonas de cultivo.
Façam isto e têm parte do problema resolvido”, diz, em jeito de recado, aos
dirigentes políticos de Múrcia.
Diz saber que Múrcia é “a horta de Espanha” e garante que o
seu município e todos os outros afectados pelo Tejo-Segura “sempre foram
solidários com Múrcia”. “Quando se se começa a matar tudo, não podemos ficar
calados. Aqui há zonas do Tejo que se podem atravessar a pé. Eu sempre digo, o
Tejo nasce em Albarracín e desagua em Múrcia.”
Patricia Moreno diz “haver uma guerra da água em Espanha”,
entre os municípios afectados pelo transvase e Múrcia. “Uma guerra onde há
interesses económicos muito poderosos, com muito dinheiro. Há gente a ganhar
muito dinheiro nesta guerra da água, a fazer negócio com ela. Já há casos de
corrupção a serem julgados ligados ao negócio da água. Por trás deste transvase
há muito dinheiro e muito dinheiro oculto.”
Mais do que a água que falta
Mais do que a água que falta
A autarca diz ainda não ter dúvidas que “Portugal também vai
sentir os efeitos nefastos do transvase”. “Se é que não está já a sentir.”
Uma “guerra” Espanha-Portugal
Manuel Ganãn, presidente da Assembleia de Defesa do Tejo
Aranjuez, assistiu à conversa com a autarca e diz “partilhar a 100 por cento”
as preocupações de Patrícia Moreno. “O que se passa é o seguinte: houve um
acidente e alguém está a morrer. Tu dás o teu sangue para lhe salvar a vida,
mas tiram-te o sangue todo e morres.”
Também ele fala de uma guerra da água, mas vai mais longe.
“A guerra hoje é em Espanha, mas não duvides, um dia, quando houver ainda menos
água aqui, a guerra vai ser entre Portugal e Espanha. Acreditas que Espanha vai
deixar passar para Portugal a água que passa hoje, se precisar urgentemente
dela? Só um tolo pensaria tal. Preparem-se, os portugueses também vão sofrer o
que nós estamos a sofrer”, acrescenta em jeito de aviso.
Jarama, mais um grave problema
No lugar de Las Cabezadas, a uma dúzia de quilómetros do
centro de Aranjuez, junto a um campo de cultivo e rodeado por floresta, o rio
Jarama junta-se ao Tejo. O abraço das águas é visível, com o castanho-claro do
Jarama a unir-se ao verde-escuro do Tejo.
Aqui, a juntar ao transvase e à seca, nasce outro problema
muito grave: o Tejo já poluído recebe uma nova carga poluente de enormes
dimensões. É que o Jarama atravessa Madrid antes de se juntar ao Tejo e com ele
traz detritos de 6,5 milhões de pessoas, em que as depurações da água são
muitas vezes ineficientes. Daqui para baixo o Tejo vai passar a transportar
detritos e “venenos” de muita ordem.
“Venenos” e má gestão
A ponte medieval de San Marti é central entre o vasto
monumental património arquitectónico de vários séculos que fazem com que a
cidade de Toledo seja há 30 Património da Humanidade da UNESCO.
No final da tarde da passada quarta-feira, muitos turistas
passeavam ainda pela ponte. No ar há um cheiro intenso a lixívia. Olhando para
o caudal do Tejo que ali corre percebe-se que o cheiro vem das muitas manchas
da espuma branca que navega sobre o rio.
“Aquilo é fosfato e muitas outras porcarias que o Tejo
transporta desde que se lhe juntou o Jarama”, explica Alejandro Cano,
presidente da Plataforma de Defesa do Tejo.
Cano, 61 anos, dedica-se, desde que se viu obrigado a uma
“reforma antecipada forçada”, há cerca de dez anos, a estudar os problemas do
rio. Fala do Tejo com paixão.
“O Tejo está em permanente agonia. É um rio morto, não tem o
caudal adequado, está sujo, muito sujo, não tem a plantação nativa, nem os seus
peixes característicos, porque, excepto o barbo, todos desapareceram. Nem as
aves que o sobrevoam são as nativas do rio. O Tejo está morto”, afirma.
Sob a ponte estariam a passar naquele momento 35 metros
cúbicos de água por segundo. “Só seis ou sete são do Tejo, o resto são águas
residuais de Madrid”, salienta.
A culpa, acrescenta, é “da má gestão do rio que é feita pela
hidroeléctricas” e “pelos poluidores que lançam todo o tipo de porcaria para o
rio e a quem compensa mais pagar as multas do que tratar do lixo”.
207 represas só em Espanha
Cano diz mesmo para que não nos deixemos “impressionar pelas
fotos que mostram o rio vazio culpando a seca”. “Claro que a seca é um
problema, mas a Península Ibérica está habituada aos períodos de seca. Sempre
as houve. Mas não é a seca que tira a água do rio, é a má gestão. Está-se a
jogar com a seca para esconder tudo o resto, a contaminação do rio, e a má
gestão, em que as hidroeléctricas gerem o ritmo das águas do rio de acordo com
os seus interesses e desrespeitando o seu ritmo normal.”
Só na demarcação espanhola da bacia do Tejo existem 207
barragens, com capacidade total de mais de 11.000 hm3. São usadas para produção
eléctrica e irrigação.
Uma gestão que, diz, faz com que o Tejo “não seja um rio
vivo e tenha um caudal fraco”, que “não respeita as suas dinâmicas”, que o
“transforma”. “Os interesses económicos sobrepõem-se aos interesses do rio e,
como tal, aos interesses das pessoas.”
“O Tejo hoje já não é um rio, é uma ria, em alguns locais
não passa mesmo de um riacho”, acrescenta.
Desde 1972 que, em boa parte do troço do rio naquela região
é proibido nadar e pescar. Alejandro Cano faz uma pergunta: “Viram algum
cartaz, algum aviso, a revelar a proibição?” E dá a resposta pronta: “Não,
porque não os há. É mau para o turismo. É mais uma vez os interesses económicos
a sobreporem-se aos das pessoas.”
Este activista de defesa do Tejo levou-nos pelas margens do
rio Toledo, “há uns anos cheias de vida e hoje abandonadas de gente”, onde “o
caudal baixou de forma significativa o rio perdeu força e alma”. Mostrou-nos,
desde o cimo da serra, a albufeira da barragem de Castregon, em Cuenca, a
primeira a receber as águas depois de o Tejo e o Jarama se juntarem. Ali o Tejo
corre entre enormes ilhas castanhas, “montanhas de matéria orgânica, lixo e
gases nocivos à saúde".
A ponte romana de San Martin de Montalbán, com os seus 20
arcos, tem 200 metros de comprimento, que era a largura do caudal na altura da
construção. Hoje, o leito está entupido de lixo e o caudal não tem mais de 1,5
metros de largura. Ao lado da ponte há um enorme matadouro e no que resta do
rio são encontrados “com frequência, vísceras de diversos animais”.
“Claro que esta poluição chega a Portugal, não assim como a
vemos aqui, porque a água vai passando por várias barragens, mas quando chega a
Portugal claro que vai contaminada. O veneno está lá. Em Portugal, como em
Espanha, são as hidroeléctricas que fazem a gestão do rio. Se isto não mudar no
Tejo, tudo vai morrer, tudo”, diz Cano.
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