Moradores da Graça contestam construção de condomínio de
luxo em logradouro antes cheio de árvores
Samuel Alemão
Texto
12 Março, 2019
O que era um terreno de 0,6 hectares, densamente arborizado,
numa encosta com vista sobre o Tejo, prepara-se para ser cenário de construção
de um condomínio de luxo – com apartamentos a custarem entre 600 mil e dois
milhões de euros. Algo de que os moradores ficaram a saber, há poucas semanas,
quando as máquinas entraram pelo logradouro adentro e derrubaram quase todas as
árvores. Depois do choque, mobilizam-se para suspender o projecto. Exigem
discussão pública do mesmo. Mas a Stone Capital, empresa promotora, ligada a
projectos polémicos como o Palácio de Santa Helena, em Alfama, ou os
contentores do Martim Moniz, diz que muita da contestação não passa de
desinformação. A começar pelo facto de, garante, todos os trâmites legais terem
sido seguidos. Mais, a Stone assegura que, ao contrário do que é dito, o
logradouro verde até vai aumentar e serão plantadas árvores. “Este projecto vai
fazer muito pela Graça, vai requalificar uma zona que actualmente tem maioritariamente
espécies infestastes e vai trazer lugares de estacionamento para residentes”,
assegura.
Era um local quase paradisíaco no coração de um dos bairros
mais típicos de Lisboa, uma mancha verde com árvores de grande porte e
vegetação diversa em plena Graça. Mas, numa manhã de Janeiro passado, as
máquinas vieram e destruíram quase tudo. A intervenção de preparação do terreno
para a construção de um condomínio de luxo, cuja comercialização é feita sob a
designação “Jardim da Glória”, acordou de forma abrupta para a nova realidade
os residentes do quarteirão compreendido
pelas ruas Josefa de Óbidos, das Beatas e da Senhora da Glória. “Nunca nos
passou pela cabeça que fossem construir algo deste género, nesta zona, num
terreno de logradouro que é permeável e com tantas árvores. Vão destruir a
qualidade de vida as pessoas que já aqui viviam. Vamos ter uma aldeia de ricos
a tapar a vista à aldeia dos pobres”, queixa-se Alexandra Vidal, 38 anos, a
morar no rés-do-chão do número 22 de Rua Josefa de Óbidos há meia dúzia de
anos. Como ela, outros estão agora a aperceber-se do impacto que o
empreendimento terá no seu quotidiano. E por isso estão mobilizar-se.
Desde a semana passada, está a circular uma petição sob o
mote “Não ao Jardim da Glória sem discussão pública. Não a um loteamento de
luxo com destruição ambiental e patrimonial no coração da Graça”. Através dela,
pede-se que o projecto seja suspenso até que o mesmo possa ser “tratado por
todos como o loteamento que de facto é”. Algo que não sucedeu. O empreendimento
da Stone Capital – empresa responsável por alguns dos mais polémicos projectos
da capital, como o Palácio de Santa Helena (Alfama) ou a requalificação do
Martim Moniz, esta através da participação na empresa Moonbrigade, Lda –
ocupará grande parte da área de um logradouro com 6.249 metros quadrados. O
projecto prevê a construção de 40 apartamentos com áreas entre os 45 e os 450
metros quadrados (a custarem entre 600 mil e dois milhões de euros ),
estacionamento subterrâneo, piscina, spa e zona lounge, jardim e parque
infantil. Apesar da dimensão da obra e das profundas alterações que o terreno
sofrerá, os moradores dizem que nada sabiam sobre o projecto, até ao corte de
árvores.
Isso mesmo é salientado nos considerandos da petição, na
qual se lê que, a 20 de Fevereiro “máquinas de obras destruíram quase 5
hectares (sic) de árvores e mato, de um imenso logradouro muito antigo, de um
“pulmão verde” entre quatro ruas e quatro eixos de prédios, um elemento vital
para o equilíbrio ambiental da zona e da cidade de Lisboa” – área que, de
acordo com o Plano Director Municipal (PDM) em vigor, será na sua maior parte
“logradouro verde permeável a preservar (espaço consolidado)”. De acordo com os
promotores da recolha de assinaturas contra o projecto, a referida acção
aconteceu “sem aviso prévio”. Mas também, alegam, sem a necessária presença de
técnicos, sem a existência de estudos fitossanitários, como o Regulamento
Municipal do Arvoredo determina, e, “como o imenso terreno fica ao lado da
Capela Senhora da Glória, sem a respectiva avaliação arqueológica”. Pior,
dizem, o empreendimento deveria obedecer aos procedimentos de um loteamento,
mas acabou por ser aprovado pelos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa
“como se não o fosse”.
Algo que terá contribuído para apanhar a comunidade
desprevenida, alega-se na Graça. “Como não houve comunicação prévia, foi uma
surpresa. Grande parte dos vizinhos não sabe o que vai acontecer. Sabia-se que
havia um projecto qualquer, até porque havia obras no prédio com o número 16 da
Rua das Beatas, onde é a entrada para este terreno, mas nada de concreto”, diz
Nicolas Sousa, um dos moradores da zona – e que prefere manter a sua morada
incógnita -, recordando o choque sentido por quem, a 23 de Janeiro, viu as
máquinas entrarem por aquele oásis urbano e cortarem a primeiro árvore do
logradouro, localizada numa zona que se suponha de protecção ambiental. Depois
disso, voltou a acontecer uma grande intervenção, a 20 de Fevereiro, quando
cortaram todas as árvores altas que restavam, com excepção de uma junto ao
quintal de uma moradora. Viajando com frequência para o estrangeiro, Nicolas
não assistiu a tal momento. Mas o que viu depois deixou marcas. “Quando voltei,
apanhei um susto, estava perante uma paisagem apocalíptica”, descreve.
E a estupefacção de
Nicolas, como dos restantes, com a intervenção em curso é tanto maior quanto,
asseguram, a inexistência de informação pública transparente sobre o que ali
estaria para acontecer. Para além das movimentações de operários no mencionado
número 16 da Ruas das Beatas, os moradores daquela área dizem que nada faria
supor o que agora se lhes assemelha a um pesadelo. Até porque a única
comunicação a prévia a que supostamente tiveram acesso, através de uma carta
enviada a cada um, a 3 de Julho passado, dificilmente deixaria adivinhar a
dimensão da intervenção. Na missiva enviada pela firma Percurso Positivo, Lda,
que tem a mesma morada da Stone Capital, os destinatários eram informados de
que a mesma iria avançar com “obras de construção com execução de obras de
escavação geral e beneficiação de muros periféricos”. Para além de garantir o
cumprimento de todas as normas de segurança, a carta asseverava que a
intervenção iria “contribuir para a melhoria da qualidade urbanística, social e
ambiental desta freguesia e consequentemente da cidade de Lisboa”,
comprometendo-se ainda a minimizar eventuais incómodos causados pelos
trabalhos.
Só que os incómodos
aparentam ser de uma escala bem maior, tal o grau de contestação que se vai
fazendo sentir na Graça. “Os moradores dos prédios em volta do logradouro vão
perder a vista sobre o Tejo e sobre uma área verde natural, para receberem em
troca uma vista sobre dois enormes prédios e um pequeno jardim do novo
condomínio. E os atuais proprietários desses prédios vão ver o valor
imobiliário dessas casas diminuir”, denuncia-se na petição, que pede que o
projecto seja suspenso, para que se inicie um processo de consulta pública
sobre o mesmo. Algo que, salientam, compreende aviso público, fase de recolha
de contributos dos interessados, relatório de ponderação, reformulação (ou não)
da proposta e aprovação da mesma em reuniões de câmara e da assembleia
municipal. “Dois prédios aqui no meio não fazem sentido nenhum. Isto não
deveria ter sido aprovado ou, se fosse, pelo menos que houvesse uma partilha de
opinião com as pessoas”, diz Alexandra Vidal. “É muito triste ver isto. Em
Lisboa fazem falta espaços verdes”, diz Daniel Santos, 30, morador no último
andar do prédio ao lado, o nº 24 da Rua Josefa de Óbidos.
Ora, a apreciação do processo feita pelos residentes
contestatários não poderia ser mais distinta da realizada pelos promotores do
projecto. Garantindo que o mesmo “seguiu todos os trâmites legais e
regulamentares e foi objecto de todos os estudos necessários, tendo sido
escrutinado ao longo de quatro longos anos de tramitação”, os representantes da
Stone Capital asseguram a O Corvo ter tido profundas preocupações ambientais,
segundo inclusivamente as recomendações para o respeito da biodiversidade e da
biofilia, elaboradas por uma empresa francesa do ramo. “No final da obra, vamos
aumentar o logradouro verde para 4,500 metros quadrados e plantar 67 árvores,
1,600 arbustos e 18 herbáceas. Os dois edifícios no jardim, desenhados pelos
arquitectos da ARX, vão ser forrados a madeira para suavizar o seu impacto
visual e se integrar no contexto ajardinado”, explica a mesma fonte, antes de
notar que “há 20 anos atrás, uma grande parte do terreno estava ocupado com
construções” precárias – tendo enviado uma foto como prova.
“Antes do início das
obras de limpeza do terreno, este encontrava-se repleto de espécies de arvoredo
infestantes e, de forma geral, mal tratado”, explicam os representantes da
Stone Capital, assegurando que no projecto de paisagismo desenvolvido pelo NPK
– Arquitectos Paisagistas Associados está projectada a integração de vegetação
autóctone promotora de biodiversidade. “No plano da flora a implementar, estão
mais de 100 espécies de diferentes portes, sazonalidade, biodiversidade e
interesse”, explica a mesma fonte, em resposta escrita às questões enviadas por
O Corvo, garantindo ainda que “este projecto vai fazer muito pela Graça, vai
requalificar uma zona que actualmente tem maioritariamente espécies infestastes
e vai trazer lugares de estacionamento para residentes”. No que se refere à
comunicação do projecto aos moradores, a empresa diz ainda que, além da carta
enviada em Julho de 2018, foi colocada uma placa de informação sobre o processo
de licenciamento na Rua Nossa Senhora da Glória.
Nota editorial: texto
editado às 9h50 de 12 de Março. Corrige referência à ligação da Stone Capital
ao projecto do condomínio da Rua Damasceno Monteiro.
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