Manifesto por uma floresta discriminada
Discrimine-se o que deve ser discriminado, porque as
florestas não são todas iguais e porque a sociedade valoriza de forma diferente
os diferentes tipos de floresta e as espécies que os constituem. Pugnemos por
isso por uma floresta discriminada!
21 de Março de 2019, 6:40
Imagine o leitor uma floresta natural madura e longeva no
espaço que hoje é Portugal. As árvores são, naturalmente, uma componente
estrutural dominante, mas não exclusiva dessa floresta. Entre a restante
vegetação há várias outras espécies, quer arbustivas quer herbáceas, e
organismos mais simples como os musgos. Haverá árvores de todas as idades, mas
são as árvores centenárias que dominam o ecossistema, não apenas pela sua
dimensão, mas também porque, no seu longo processo de decadência e finalmente
morte, abrigam todo um universo de seres vivos. Os organismos decompositores –
bactérias, fungos, microinverterbrados – pululam na manta morta proveniente da
folhagem que se desprende cada ano, e transformam a matéria orgânica,
permitindo que os nutrientes sejam gradualmente libertados e disponibilizados
às raízes das plantas vivas. Desta complexa teia dependem todos os animais da
floresta, desde os microscópicos, que vivem no solo e na matéria vegetal morta,
aos que dependem das folhas e dos frutos, aos roedores e aos herbívoros.
Animais de tamanho e visibilidade crescente à medida que percorremos a cadeia
alimentar, culminando nos predadores, mamíferos e aves, diurnos e noturnos.
O leitor deverá agora ter em conta que apenas pode imaginar
uma floresta assim em Portugal, pois no nosso país as florestas primárias foram
todas destruídas pelo Homem ao longo dos milénios. Sim, foram destruídas, mas
outras vezes apenas alteradas na sua composição, e em situações mais raras
foram apenas pouco alteradas, permitindo-nos ter um vislumbre das antigas
florestas que acompanharam as diferentes civilizações que passaram pelo nosso
território. Ainda existem alguns resquícios destas florestas: a Mata do
Solitário na Serra da Arrábida, a de Albergaria na Serra do Gerês, a da
Margaraça na Serra do Açor ou a Laurissilva da Madeira constituem uma amostra,
mesmo que alterada, do que foram as florestas pristinas do passado. Devido à
sua raridade e ao seu valor natural e histórico, estas florestas têm um grande
valor patrimonial.
Para além do seu valor patrimonial, em geral as florestas
nativas podem prestar um enorme manancial de serviços à sociedade: a regulação
do regime hidrológico, suavizando os picos de cheia e fornecendo água de
qualidade; a conservação do solo e a manutenção de elevados níveis de
fertilidade, o armazenamento prolongado de carbono (algo muito diferente de
simples fixação de carbono) necessário para contrariar o aquecimento global; a
paisagem, que faz com que estes locais sejam muito visitados para recreio e
lazer; ou o abrigo a animais e plantas, constituindo sistemas com elevada
biodiversidade.
Num país onde os incêndios são um fenómeno recorrente, estas
florestas podem ser locais muito pouco favoráveis à propagação do fogo. Em
particular, as florestas maduras dominadas por espécies folhosas caducifólias
como os carvalhos ou o freixo dão normalmente origem a um ambiente aprazível de
sombra e de frescura durante o verão, que torna mais difícil a propagação dos
incêndios, algo amplamente comprovado cientificamente. As florestas nativas são
também uma excelente barreira ao avanço de espécies exóticas invasoras, como
tem sido também recorrentemente demonstrado por estudos científicos.
Com todos estes benefícios, parece natural que algo seja
feito pela sociedade para favorecer estas florestas, relativamente à floresta
estritamente produtiva. No entanto, há a tentativa de passar a mensagem, mesmo
por agentes do meio académico, que as florestas não devem ser discriminadas. Há
quem chegue ao ponto de comparar a discriminação das espécies florestais a
questões sociais como o racismo, numa espécie de antropomorfismo das árvores no
mínimo absurdo, para não dizer ridículo. A acompanhar esta linha de raciocínio
vem a afirmação de que apenas a gestão florestal faz a diferença em termos dos
serviços prestados à sociedade. Esta assunção nega décadas de investigação
científica que demonstram até à exaustão que as espécies são todas diferentes,
e que há umas mais diferentes que outras, chama-se a isso distância
filogenética. Esta distância faz, por exemplo, com que pouquíssimos animais da
nossa fauna se alimentem de espécies provenientes do outro extremo do Planeta,
como o eucalipto ou as acácias.
O chavão da gestão, tão recorrente no discurso sobre a
floresta, parte do princípio que tudo deve ser gerido e que, portanto, cai
sobre o Homem e não sobre as espécies o papel que eventualmente possam ter
quanto aos serviços que prestam e sobre os problemas que possam causar. Esta
atitude exageradamente antropocêntrica revela não só ignorância como também uma
enorme falta de humildade e de respeito pela natureza. Revela também um enorme
irrealismo, dado que é impossível gerir cada metro quadrado do território deste
ou de qualquer outro país.
Repare-se que a discriminação das espécies sempre foi uma
evidência ao longo dos séculos, tal como aliás acontece hoje em dia. El-rei D.
Dinis terá decretado que “sse non faça dano nos soueraes” de modo a travar a
destruição dos sobreirais, no século XIV. A discriminação positiva do sobreiro
mantem-se até aos dias de hoje, através de legislação de proteção,
impedindo/dificultando a sua substituição por outras espécies e usos do solo. A
legislação também discrimina, neste caso negativamente, as acácias, pelo
impacto que a sua expansão pode causar nos ecossistemas nativos.
A discriminação tem sido naturalmente feita pela industria
de pasta para papel ao optar por uma única espécie, o eucalipto, para abastecer
as suas fábricas. Essa discriminação positiva foi também feita pelo Estado ao
fomentar a procura de matéria-prima através do aumento da capacidade industrial
instalada. O aumento da procura fez aumentar naturalmente a oferta de madeira
através da expansão das plantações, fazendo com que o eucalipto seja atualmente
a espécie dominante na paisagem florestal portuguesa, à custa de uma
discriminação negativa das espécies de crescimento lento, menos interessantes
economicamente.
Dado que tudo se conjuga para favorecer a floresta de
produção, é fundamental que se discrimine positivamente a floresta de
conservação, para que possam continuar a existir ecossistemas florestais dignos
desse nome, não obstante a lógica económica tender a suprimi-los. Por isso, a
dotação de recursos, quer privados quer públicos, para a criação e manutenção
de florestas nativas, discriminando-as positivamente em relação às monoculturas
industriais, é fundamental, e só a sociedade, refletindo e agindo acima de uma
lógica imediatista, pode garanti-los. A discriminação positiva da floresta
nativa tão necessária em Portugal deverá passar por um pacote de medidas a
nível legal, fiscal e financeiro. Em particular continua a não existir
legislação de proteção às espécies arbóreas nativas, tal como já acontece com o
sobreiro, a azinheira e o azevinho. Existem muitas manchas de floresta nativa
em propriedades privadas sem qualquer estatuto de proteção e existem muitas
outras áreas em que, com pouco esforço, se poderiam converter matagais em
florestas nativas maduras. Mas para que se possam expandir e conservar estas
manchas de floresta, é necessário fazer mais do que tem sido feito até agora,
dando incentivos aos proprietários e compensando-os pelo serviço que prestam à
sociedade. Em alternativa, estas áreas, algumas delas sem dono conhecido,
poderão ser adquiridas pelo Estado ou outras entidades públicas, corrigindo o
enorme deficit de florestas públicas em comparação com todos os outros países
da Europa. Ao nível do planeamento seria desejável que os Planos Regionais de
Ordenamento Florestal fossem muito mais ambiciosos no fomento da floresta
nativa. Enfim, discrimine-se o que deve ser discriminado, porque as florestas
não são todas iguais e porque a sociedade valoriza de forma diferente os
diferentes tipos de floresta e as espécies que os constituem. Pugnemos por isso
por uma floresta discriminada!
Individualidades signatárias:
Ana Raquel Calapez; Carlo Bifulco; Carlos Pacheco Marques;
Fernando Leão; Filipe Duarte Santos; Francisco Castro Rego; Francisco Ferreira;
Francisco Moreira; Gonçalo Duarte; Helena Freitas; João Loureiro; Joaquim Sande
Silva; José Gaspar; José Manuel Alho; Manuel Graça; Maria João Costa; Maria
João Feio; Paulo Alexandre Estrela Lucas; Paulo Domingues; Raul Silva; Rui
Cortes; Rui Lourenço; Sónia Serra; Verónica Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário