Novo parque privado em terreno onde antes todos estacionavam
gera conflito de vizinhos em Santa Apolónia
Sofia Cristino e
Samuel Alemão
Texto
18 Março, 2019
Um terreno junto a um complexo habitacional situado ao lado
dos restos do Baluarte de Santa Apolónia era utilizado, até há pouco, como
estacionamento de uso livre. A administração do condomínio decidiu alcatroar o
espaço, colocar sinalização e proibir a utilização por terceiros. E até criou
dísticos e folhetos com advertências de penalização para infractores. Há, contudo,
quem não se conforme com as novas regras, alegando que a fracção não é privada
e considere, por isso, que a situação configura uma usurpação do espaço
público. Mas o administrador do condomínio nega tais argumentos. “O terreno é
nosso, não há dúvidas”, diz Carlos Chaves, que se viu envolvido numa cena de
pancadaria com o homem que lidera a contestação às alterações, e por causa
destas o caso deverá acabar nos tribunais.
Manuel Gomes, 64 anos, sempre se deslocou de carro à horta
que lhe foi atribuída pelo município de Lisboa, em 2014, no Forte de Santa
Apolónia, na Penha de França. Hoje, porém, vai até aquela zona com mais
cautela, constantemente atento à movimentação à volta. Isto porque, no passado
16 de Fevereiro, diz ter sido surpreendido pelo administrador das torres
habitacionais Concorde 21, construídas ao lado das hortas, a fotografá-lo.
“Perguntou-me se o carro era meu e disse-me que não podia estacionar ali, porque
era um condomínio privado. Eu ripostei e disse que não tinha conhecimento que a
zona tinha passado a ser concessionada”, conta. Dessa vez, o conflito foi
apenas verbal, mas, cinco dias depois, a discussão subiu de tom e acabou em
agressão física. “Estava na Calçada das Lajes e ele avistou-me, lá do
condomínio, em baixo. Veio em direcção a mim, com os olhos arregalados e uma
abordagem muito agressiva. Voltou a dizer que eu não podia estar na propriedade
privada e começou a bater-me. Acabámos os dois no hospital”, relata.
As áreas de cultivo situam-se junto ao Concorde 21, um
condomínio habitacional com prédios de 14 andares, construídos na década de 70.
Manuel Gomes garante nunca ter tido problemas em dirigir-se de carro às hortas,
até ao mês passado. Algo mudou, contudo, na zona envolvente dos edifícios.
Agora, vêem-se sinais de trânsito verticais, com a indicação de que ali só
podem estacionar residentes “com dístico” e advertências de que, caso de não o
tenham, podem ser sujeitos a reboque. Foram pintadas no chão marcações
indicativas de lugares de estacionamento, assim como os sentidos de trânsito no
interior do referido parqueamento. Algo que estará a causar indignação junto de
alguns frequentadores da zona, que falam num caso de abuso por alegada
apropriação indevida de um terreno. A situação assume, todavia, contornos mais
complexos, uma vez que a parcela de território urbano em questão, anteriormente
de estacionamento irrestrito e agora limitado a moradores, afinal nem será
pública, mas sim do condomínio. “O logradouro onde está o estacionamento é
privado, não há dúvidas”, diz a O Corvo o administrador, Carlos Chaves, 68
anos.
Investido dessa certeza, e depois de o assunto ter sido
discutido “sem controvérsia” pelos condóminos, o administrador coordenou o
processo de criação do parque privativo – com capacidade para 39 lugares, um
deles para portador de deficiência. Há, contudo, quem tenha um entendimento
diferente sobre a legitimidade de tal acto. Como Manuel Gomes, residente na Rua
Forte de Santa Apolónia, há quatro décadas, o qual garante que a instalação da
sinalização vertical e a marcação dos lugares de estacionamento realizada pela
administração do Concorde 21, nos passados dias 7 e 8 de Fevereiro, contou com
“o apoio logístico da Junta de Freguesia da Penha de França”. Algo que Carlos
Chaves, militar reformado, nega com toda a veemência. “É pura mentira, a junta
de freguesia não participou nisto”.
Mas José Silva, 75
anos, vizinho de Manuel Gomes, também se diz “escandalizado” com a alteração
realizada. “Como é possível que a administração de um edifício privado
regularize sentidos de trânsito e de estacionamento num espaço público? E como
é que a administração do prédio anda a colar nos pára-brisas das viaturas
advertências?”, questiona. Além disso, “os sinais não estão homologados, são
ilegais”, critica ainda. O formato dos dísticos de estacionamento para
residentes daquele edifício e os avisos de advertências com ameaças de multa e
reboques estão a intrigar quem por ali circula. “Também sou administrador de um
prédio e apetece-me fazer o mesmo, só para azedar mais. Parece que cada um faz
o que quer agora”, critica um morador da Avenida Afonso III, que não quis ser
identificado.
Dois dias depois da
cena de pugilato, Manuel Gomes enviou um email à Junta de Freguesia da Penha de
França a exigir explicações sobre o que, afinal, teria ali acontecido.
“Queremos ser esclarecidos da legalidade (ou ilegalidade?) do que se está a
passar com esta usurpação e ocupação do espaço público por uma administração de
um edifício que, já por si, terá sido uma usurpação do espaço público. E
queremos perceber qual a conivência da Junta de Freguesia nesta ilegalidade”,
exige o morador, aludindo também a uma suposta ilegalidade no processo de
licenciamento da construção do edifício. Carlos Chaves, por seu turno,
reconhece que o empreendimento teve na sua génese, em 1971, um processo “problemático”
e que as complicações judiciais relacionadas com as partilhas da herança do
empresário que lançou o empreendimento se arrastaram durante anos.
Na ausência de
resposta, a 22 de Fevereiro, Manuel Gomes enviou outro email para a Câmara
Municipal de Lisboa a relatar o caso de agressão do qual foi vítima. “Sou
detentor de uma horta pela qual pago uma anuidade à Câmara de Lisboa. Como
passo quase todos os dias junto ao edifício, perante estes acontecimentos,
tenho receio de que algo mais grave possa acontecer. Têm que repor a
legalidade, pode acontecer a qualquer um que se atreva a entrar no perímetro
Concorde 21. A inoperância e o retardar da resolução deste problema pelas
entidades pode ter consequências muito graves”, escreve.
A resposta da câmara
não chegou, mas, no mesmo dia em que Manuel Gomes enviou este email ao
município, a junta de freguesia reagiu. Na resposta, a Junta de Freguesia da
Penha de França diz que “solicitou a fiscalização por parte da CML
relativamente à propriedade do terreno e sobre a legalidade dos sinais
verticais”. Assegura, ainda, estar a insistir “diariamente” com os serviços do
município para que a situação seja esclarecida. Não responde, porém, se se
participou ou não na colocação dos sinais. Manuel Gomes acredita que a chegada
da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) à Penha de
França, em meados do mês passado, poderá ter levado mais pessoas a estacionarem
nas zonas circundantes. Nada justifica, porém, a “usurpação do espaço público
por um condomínio de prédios”, diz. “Temo pela minha integridade física”, diz.
Uma versão bem
diferente deste conflito tem, contudo, Carlos Chaves, o administrador do
referido condomínio. Não apenas em relação à legitimidade de toda a operação de
ordenamento do estacionamento, como dos incidentes ocorridos no mês passado,
envolvendo Manuel Gomes. Se sobre aquela garante a O Corvo não restarem dúvidas
de que o terreno “é privado e pertence ao condomínio”, sobre a refrega com o
agricultor urbano conta uma história diferente da por este relatada. “O que se
passou foi que, já depois de ter sido avisado de que não poderia estacionar
ali, voltou ao local noutro dia e eu fotografei o carro dele. Quando me viu,
veio pedir satisfações e agrediu-me com um soco na cabeça. Naturalmente, tive
de me defender”, rememora, garantindo que avançará com uma queixa-crime contra
Gomes. “É um indivíduo problemático e revoltado, toda a gente aqui na zona sabe
disso”, diz, antes de garantir que nada o move contra a existência das hortas
naquela zona. E até reconhece que o talhão trabalhado por Manuel Gomes “até é o
mais bem cuidado de todos”.
O administrador justifica a decisão de avançar para a
criação do estacionamento alcatroado privado com a necessidade de garantir não
apenas lugares para os moradores – as garagens dos prédios revelam-se
insuficientes para as necessidades de um condomínio com 300 pessoas -, mas
também acabar com o que qualifica como “mau-ambiente” até então existente.
“Aquele terreno, não sendo público, mas do condomínio, estava como que
abandonado. Para além de carros estacionados, era frequente haver ali situações
de consumo de droga e maus comportamentos cívicos”, afirma, sem avançar que
outras medidas planeia o condomínio para garantir que tal não se repetirá. Vai
colocar uma vedação? Carlos Chaves prefere não adiantar. Certo é que diz não
haver qualquer impedimento na passagem para as hortas urbanas – para onde,
afinal, até existem outros acessos. “O que queremos é que as pessoas da comunidade
fruam daquele espaço em harmonia, que seja um lugar aprazível”, assegura.
Em 2014, a Câmara
Municipal de Lisboa (CML) abriu inscrições para hortas sociais no Forte de
Santa Apolónia. De acordo com o site do município, as hortas deveriam criar
neste local “um espaço de estadia e lazer, recuperando vestígios da antiga
estrutura de patamares da Quinta de Manique, do século XVIII”. A obra definirá
ainda “percursos pedonais que ligarão a Calçada das Lages, a Avenida Afonso III
e a Rua do Forte de Santa Apolónia”, lê-se ainda. Algo que ainda não terá
acontecido e que a colocação de sinalética vertical também não estará a ajudar.
“Podíamos ter aqui um sítio de convívio, de encontro das pessoas e, em vez
disso, estamos de costas voltadas”, queixa-se Manuel Gomes. Já Carlos Chaves
diz quer o mesmo e até propõe a criação naquela zona de “um espaço
intergeracional, onde os indivíduos da comunidade pudessem conviver”.
O Forte de Santa
Apolónia, também denominado “Baluarte de Santa Apolónia”, foi construído no
século XVII. Em 1968, passou para a posse da Câmara de Lisboa, e, no início da
década de 70, foi ali construído o edifício Concorde 21. Quando a edificação
foi concluída, em 1996, os restos do baluarte foram classificados como Imóvel
de Interesse Público (IIP). Hoje, vêem-se apenas alguns vestígios das
fortificações originaiss, sendo aquela área utilizada pelos donos das hortas e
habitantes das zonas envolventes como espaço de lazer. Desde que o município é
detentor desta estrutura, têm havido vários pedidos para se realizar uma
intervenção na fortificação e chegaram a existir propostas de intervenção, no
âmbito do Orçamento Participativo de 2016 (OP), que não tiveram seguimento.
O Corvo confrontou a
Junta de Freguesia da Penha de França com as acusações dos dois moradores, mas
a autarquia garante que “não realizou qualquer intervenção de pintura, nem de
colocação, de sinalização na envolvente do prédio Concorde”. “Também não
solicitamos qualquer delegação de competências para a realização de trabalhos
de sinalização nesta área. Os trabalhadores da junta de freguesia apenas
executam acções da competência desta autarquia, nomeadamente o corte de ervas,
limpeza e manutenção dos espaços verdes”, assegura, em resposta escrita. A
Junta de Freguesia da Penha de França garante ainda ter remetido as reclamações
recebidas para a entidade competente, a Direcção Municipal da Mobilidade da
Câmara Municipal de Lisboa. O Corvo enviou
ainda questões ao gabinete do vereador da Mobilidade, Miguel Gaspar, mas, até
ao momento, as respostas não chegaram.
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