A construção do nada
Fingir que a União Europeia é democrática, com aquele
patético Parlamento e estas eleições, ou é inútil, ou é prejudicial.
(…) “Se a União continua o seu caminho, com o que sabemos
hoje, os destinos poderão ser dois ou três. Primeiro: avivar a pulsão nacional,
excitar todos os populismos identitários e despertar os reflexos condicionados
nacionalistas. Poderá ser um fim com ruptura e desordem. Segundo: chegar a um
beco sem saída, provocar a sua lenta destruição e estimular os sucessivos
abandonos, o que significa o definhamento. Um término tristonho, o fim do prazo
de validade. Terceiro: obrigar a repensar e exigir a refundação. Esta terceira
hipótese poderá salvar a Europa, estimular a economia e dar novo sentido à
democracia. Mas é sabido que são enormes as dificuldades em repensar, reformar
e reorganizar o que quer que seja. Em geral, os dilemas fatais têm mais sorte:
ou tudo ou nada, ou continuar ou morrer! Ora, morte é mesmo o grande perigo
diante da União.”
António Barreto
17 de Março de 2019, 7:21
Nos tempos modernos,
a construção do Estado é a primeira realidade deste tipo: organização
deliberada de um aparelho institucional capaz de enquadrar populações e
culturas, dinastias ou comunidades.
Sítios houve em que se construiu o império. Os condimentos e
os métodos eram simples. Uma ideia, uma doutrina, objectivos e valores. O
monarca ou o Estado central e os seus exércitos eram os obreiros da construção.
O método era sobretudo o da força. Os valores eram os da grandeza dos que
mandavam.
Já houve tempos em que se construía a democracia. Ou a
República. Foram processos morosos, duraram séculos, com dificuldades, avanços
e recuos. Havia princípios, valores, doutrinas e objectivos. Nem sempre claros,
raras vezes bem definidos, muitas vezes difusos e geralmente próprios de elites
políticas. Mas a construção avançava. E os povos, identificando-se com os
ideais, iam aderindo. E sabia-se ao que se vinha. Os protagonistas eram os
povos. Os métodos incluíam a democracia, os parlamentos e o voto. Os exemplos,
bem diferentes uns dos outros, podem ser os da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos
da América e da França.
Depois, começou a construir-se o socialismo. A sociedade sem
classes. O comunismo. A força dos valores era enorme, a ponto de permitir que
se recrutassem, para a luta, milhares e milhões de pessoas. Fizeram-se
revoluções. Na mente dos povos, estava mais o melhoramento das condições de
vida, mas nos espíritos dos militantes, as ideias, os sonhos e os objectivos
estavam bem presentes. Da democracia avançada passar-se-ia à construção do
socialismo, terminada esta seguir-se-ia a construção do comunismo, este sim
objectivo último e definitivo, a sociedade sem classes. O agente desta
construção era o partido da vanguarda, em nome da classe proletária. O método
era o da ditadura do proletariado. Os melhores exemplos são os da União
Soviética e da China.
Hoje, constrói-se nada! Isto é, a Europa! A Europa é uma
abstracção. Depois de umas décadas em que teve sentido e significado, desde a
paz à defesa da liberdade e da democracia ao desenvolvimento, tem cada vez
menos doutrina e ideia. E muito menos identificação popular. Hoje, a Europa
faz-se porque se faz. Continua porque é. Para seu êxito, a Europa necessita de
varrer a história e a geografia. Hoje tenta-se apagar a ideia de que a
democracia tem uma geografia, as liberdades individuais têm uma história. Os
meus direitos, o meu voto, a minha liberdade e a minha parte na decisão
colectiva exercem-se numa comunidade, num local, numa área com limites e história.
Podem ser fronteiras físicas, culturais ou lendárias. Mas só há direitos se
houver geografia. Até porque quero saber onde vou protestar, onde vou exigir
que respeitem os meus direitos, onde vou reclamar que a minha liberdade seja
protegida. Se não há identidade nem geografia, a quem me dirijo? Ao mundo? Às
Nações Unidas? Às Igrejas universais?
Construir a Europa, tal como se está fazendo, significa
construir nada, construir uma abstracção de gestão e regulamentos, uma terra de
ninguém, um não-país e uma não-sociedade. Sem geografia e sem identidade, as
sociedades e os regimes políticos caminham para o totalitarismo burocrático e
despótico, onde todos poderão ser iguais, mas ninguém tem personalidade. Onde
ninguém é responsável, porque a responsabilidade exige nome.
A ideia Europa (isto é, uma das ideias Europa) é ainda uma
das hipóteses mais interessantes do planeta. Mas, como todas as grandes ideias,
é susceptível de degradação e perversão. A actual União, na sua forma presente,
desde Maastricht e de Nice, com o acrescento do Tratado Constitucional e da
Estratégia de Lisboa, corresponde a esse aviltamento.
A criação de uma entidade não democrática faz parte dessa
corrupção política. A União não é democrática por impossibilidade. Não é. Não
pode ser. Nem deve ser. Democráticos são os Estados, as sociedades e os
Parlamentos. Assim como as instituições nacionais, regionais e locais. Fingir
que a União é democrática, com aquele patético Parlamento e estas eleições, ou
é inútil, ou é prejudicial, pois corrói as instituições nacionais democráticas
e cria uma ideia falsa, um biombo de ilusões.
Da União sem comunidade nem cidadãos poderá resultar uma
Europa despótica, feita de andróides maravilhosamente iguais. Ou então, terá
como consequência a reacção de populismos irracionais e nacionalistas. Ambos
serão capazes de demolir a União e destruir a liberdade.
Democráticos, na Europa, podem ser os Estados e os
Parlamentos nacionais. O Parlamento Europeu serviu sobretudo para extinguir os
Parlamentos nacionais e outras instituições. Ora, a democracia exige identidade
e reconhecimento. Exige geografia e comunidade. De modo a que eu seja capaz de
fazer valer os meus direitos como homem concreto, não apenas como ser humano
abstracto.
Se a União continua o seu caminho, com o que sabemos hoje,
os destinos poderão ser dois ou três. Primeiro: avivar a pulsão nacional,
excitar todos os populismos identitários e despertar os reflexos condicionados
nacionalistas. Poderá ser um fim com ruptura e desordem. Segundo: chegar a um
beco sem saída, provocar a sua lenta destruição e estimular os sucessivos
abandonos, o que significa o definhamento. Um término tristonho, o fim do prazo
de validade. Terceiro: obrigar a repensar e exigir a refundação. Esta terceira
hipótese poderá salvar a Europa, estimular a economia e dar novo sentido à
democracia. Mas é sabido que são enormes as dificuldades em repensar, reformar
e reorganizar o que quer que seja. Em geral, os dilemas fatais têm mais sorte:
ou tudo ou nada, ou continuar ou morrer! Ora, morte é mesmo o grande perigo
diante da União.
Repensar significaria dar nova vida às instituições
nacionais, a começar pelos parlamentos. Implicaria retirar à União grande
número das suas competências furtivamente transferidas nos últimos anos para entidades
longínquas, a fazer pensar nos conselhos e nas comissões das utopias de ficção
científica, a começar pelo Senado Galáctico do Star Wars. Exigiria afastar do
horizonte constitucional europeu qualquer ideia de federação, de super Estado,
de super governo ou de Estados Unidos da Europa. Obrigaria a trazer para os
Estados nacionais as suas competências sociais, económicas, políticas,
judiciais e culturais, privilegiando todos os caminhos da coordenação
voluntária e da articulação de políticas entre Estados. Forçaria a Europa a
adoptar regras de comportamento que consagrassem a flexibilidade, a diversidade
cultural e a subsidiariedade, isto é, o princípio de que tudo deve ser decidido
ao mais baixo nível possível, ou seja, mais próximo das instituições locais.
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