Tudo
por causa da América
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 06/07/2016 – PÚBLICO
Só
havia uma coisa pior do que a invasão do Iraque: era os americanos
fazerem a guerra sozinhos.
Tony Blair travou um
infindo combate na defesa da guerra no Iraque, em confronto aberto
com o seu partido e com a maioria da opinião pública. No dia 15 de
Fevereiro de 2003 mais de um milhão de britânicos manifestaram-se
em Londres contra a invasão. Idênticas demonstrações mobilizaram
dezenas de milhões de pessoas em 600 grandes cidades de todo o
mundo. No dia 26 de Fevereiro, enfrentou uma revolta sem precedentes
de 122 deputados trabalhistas. Tinha contra si Paris e Berlim. Nada o
fez recuar. Blair não era propriamente um belicista, antes se
resignou à guerra, tornando-se no mais fiel paladino de George W.
Bush. É isto que é fascinante e pesará na avaliação da História.
Tudo tem a ver com
os Estados Unidos. No fim desse mesmo Fevereiro, Bush reafirmou que
derrubaria o regime de Saddam Hussein “com ou sem ONU”.
Acrescentou que o “novo regime iraquiano servirá de exemplo
excepcional para os outros países da região”. As célebres armas
de destruição maciça (ADM) de Saddam eram o pretexto. Mas as
razões eram mais ambiciosas. Os neoconservadores tinham teorizado um
círculo virtuoso em que a democratização do Iraque levaria à
modernização do islão, culminando na paz israelo-palestiniana. Os
EUA assumiriam a completa hegemonia da região.
Este projecto
preocupava europeus e árabes pelo risco de consequências funestas
ao refazer o mapa geopolítico do Médio Oriente. E aquilo que mais
irritava os europeus era a nova arrogância imperial americana. “Com
o fim da ameaça soviética tudo mudou e emergiu um sistema unipolar
em que os Estados Unidos exercem uma posição de dominação sem
concorrência”, escrevia o neoconservador Charles Krauthammer.
O aspecto político
mais incómodo era o conceito de “guerra preventiva”. Os
americanos arrogavam-se o direito de, em nome da moral ou da luta
contra o terrorismo, fazerem guerras contra a lei internacional. Para
isso, os neoconservadores imaginaram outro conceito: “A missão faz
a coligação”, o que permitia dispensar os aliados tradicionais
renitentes.
Paris e Londres
A Europa temia que a
América estivesse a abrir uma Caixa de Pandora e entendia a guerra
como um acto imperial, contrário aos seus interesses e à sua visão,
que privilegiava o conflito israelo-palestiniano. Mas não era este o
cerne do problema.
Na altura, estava
perante um dilema porque havia uma coisa ainda pior do que a Caixa de
Pandora: era que os Estados Unidos fizessem a guerra sozinhos,
desvalorizando os aliados e as alianças permanentes, uma evidente
ameaça à NATO e à União Europeia.
Para Paris e Berlim,
a salvaguarda da legalidade internacional era também um meio de
limitar as prerrogativas da hiperpotência americana. Mas, ao mesmo
tempo, a Europa reconhecia a necessidade de que os EUA continuassem a
exercer o papel de “polícia mundial”. Paris e Berlim correram o
risco calculado de se oporem ao projecto americano exigindo mais
tempo para inspecções e para a busca das ADM, que nunca apareceram,
e a indispensável aprovação da intervenção militar pelas Nações
Unidas. Paris e Berlim não tinham meios de impedir o conflito e
acabaram por ficar à margem da gestão do pós-guerra. E como
Londres e outras capitais faziam a aposta inversa abriu-se um ruptura
dentro da UE.
Blair e Chirac serão
os rostos desta divisão, que pouco tinha a ver com o Iraque. Tinha
antes a ver com a relação com os Estados Unidos, encarados como a
única superpotência do planeta. Explicou a Economist: “Nem Chirac
nem Blair querem fazer a guerra no Iraque. Nem um nem outro acreditam
que seja a boa guerra no bom momento. O problema é saber como conter
Washington.” E aqui separam-se.
“Mas [Blair] nunca
confessou o seu verdadeiro desejo, o de evitar a guerra, porque isso
o privaria de qualquer influência sobre George W. Bush.”
Mentiras de Estado
“A táctica dos
britânicos é sustentar ao máximo a política americana na
esperança de influenciar Washington em privado. É uma tradição
britânica que remonta ao fiasco do Suez em 1956”, prossegue a
revista. Os EUA deixaram então cair britânicos e franceses. Londres
decidiu passar a estar sempre ao lado de Washington. O general De
Gaulle tirou a conclusão oposta.
Nem Chirac nem Blair
pesaram na decisão americana. De resto, tanto Blair como os outros
europeus tinham razões para temer um fiasco americano. Um
enfraquecimento dos Estados Unidos lançaria o caos no Médio
Oriente, uma das mais críticas regiões do planeta. Depois, foi o
que se viu.
À custa de defender
Bush e a invasão, Blair passou a dar uma imagem de “belicista
sincero”. Foi tratado como “o caniche de Bush”. A sua imagem
degradou-se com o suicídio de David Kelly, em Julho de 2003,
cientista suspeito de ter passado à BBC documentação sobre a
procura das ADM. Abriu um conflito com a estação e generalizou a
convicção de uma grande “mentira de Estado” sobre o arsenal de
Saddam.
A “mentira de
Estado” nasceu com o próprio Estado. O problema de Blair é que o
seu discurso moralista mais intolerável torna a mentira.
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