Tenha
juízo, sr. Presidente
JOÃO MIGUEL TAVARES
09/07/2016 – PÚBLICO
https://www.publico.pt/…/…/tenha-juizo-sr-presidente-1737754
O
país está meio falido, mas, que se saiba, ainda não é uma
mercearia.
Marcelo Rebelo de
Sousa decidiu ir a França assistir ao Portugal-País de Gales. Como
estava em Trás-os-Montes, apanhou em Bragança um dos três Falcon
que estão à disposição do governo e da Presidência para
deslocações oficiais. O Correio da Manhã deu conta disso na
quinta-feira. Título: “Viagem de Marcelo para ver o Euro custa 14
mil euros”. E apresentava as contas: “Uma hora de voo nesta
aeronave (combustível e manutenção) custa cerca de 3500 euros.”
Contactado pelo jornal, o porta-voz da Força Aérea deu-se ao
trabalho de desvalorizar tais números e explicou que os aviões têm
de voar de uma maneira ou de outra, para a tripulação se manter
activa, treinada e qualificada: “Se não fôssemos levar o
Presidente, provavelmente o próximo voo estaria vazio.”
Mas Marcelo é
Marcelo: que outros não desvalorizem o que ele tanto gosta de
valorizar. Nomeadamente, a sua imaculada seriedade e a sua probidade
acima de qualquer suspeita. E vai daí, para espanto de todos, eis
que surge uma nova notícia no Correio da Manhã de ontem: “Marcelo
paga a fatura da viagem do próprio bolso”. Fonte oficial de Belém
tinha mais contas para mostrar: contabilizava o valor do combustível
(cerca de seis mil euros), dividia-o pelo número de passageiros
(dez, ao que parece) e chegava a um valor por passageiro a rondar os
600 euros, sendo esse o montante que Marcelo se dispunha assumir. A
mesma fonte adiantava que se a viagem tivesse sido feita em voo
comercial, como nas duas ocasiões anteriores, o custo seria maior,
porque implicaria pernoita. Mas, pelos vistos, isso pouco interessa:
Marcelo é mais rápido a sacar da carteira do que Lucky Luke do
revólver.
Eis o ponto a que
chegámos: a dignidade do Estado reduzida a uma vaquinha. A malta
quer ir à bola, a malta divide o combustível, a malta vai. Eu
também fiz isso, mas tinha 17 anos. Nunca na minha vida achei que o
Presidente do meu país tivesse de estar envolvido em colectas para
representar Portugal num Europeu. Porque das duas, uma. Ou aquilo foi
uma viagem privada do adepto Marcelo, ou aquilo foi uma viagem
pública do Presidente Marcelo. No primeiro caso, Marcelo deveria ter
ido por sua conta. No segundo caso, é inconcebível que o Presidente
da República se sinta na obrigação de custear parte do combustível
de um avião que existe para transportar Presidentes da República.
Isto já não é boa gestão da coisa pública. Isto é o
miserabilismo tornado política oficial da nação. Ver Marcelo ceder
ao mais baixo populismo por causa de uma notícia sobre o consumo de
um Falcon aos 100 é coisa que não tem pés na cabeça. Pior: é
snobismo invertido, porque Marcelo só paga porque pode. Ora, uma
democracia séria deve dispensar a fortuna pessoal dos seus
dirigentes.
Não é a primeira
vez que Marcelo tem este tipo de atitudes. Já na campanha eleitoral
sublinhou várias vezes que estava a pagar as despesas do seu bolso e
até criticou os gastos dos adversários. Recentemente, recusou o
Mercedes de 130 mil euros que Cavaco Silva lhe deixou para ir alugar
um Mercedes mais barato. Embora eu aprecie gestos de contenção e
exemplos de modéstia, convém não cair no ridículo. A democracia
tem custos. Se os portugueses concluírem que Marcelo viajou demais e
andou a ir demasiado à bola, logo tratarão de ajustar contas em
2021. Para já, mais vale cortar na demagogia do que no combustível.
O país está meio falido, mas, que se saiba, ainda não é uma
mercearia.
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