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O Porto à sorte
Ao
desconstruirmos o processo do sorteio de arrendamento da Câmara do Porto,
percebemos que a visão da autarquia para o Morro da Sé é coerente com o
processo corrente de gentrificação, propondo, no entanto, fazê-lo a médio e
longo prazo, com os locais.
Bernardo Alves e
Marta Sousa
Bernardo Alves e
Marta Sousa
Arquitectos
4 de Março de
2020, 12:40
No seguimento do
recente sorteio de arrendamento lançado pela Câmara Municipal do Porto (CMP),
parece pertinente, e até mesmo urgente, dar o devido enfoque à doença de fundo:
a impotência financeira da maioria da população em encontrar habitação no
actual mercado. Deste modo, vemos que o sorteio evita fazer as perguntas
difíceis reforçando e perpetuando o problema, mascarando-o.
Foram abertas no
passado dia 20 de Janeiro as candidaturas para o sorteio de 15 fogos
reabilitados pela Porto Vivo, SRU, destinados a agregados de classe média, na
zona do Morro da Sé. Da oferta habitacional fazem parte apartamentos entre a
tipologia T0 e T2, cujas rendas variam entre os 152 e os 934 euros, sendo que
este último valor faz estremecer a categoria de renda acessível quando o
salário mínimo nacional é de 635 euros. Levantam-se algumas questões de
princípio: a legitimidade de uma entidade pública sortear um direito que
deveria estar assegurado a todos; a escolha de certos agregados de classe
média; o ignorar da crescente lista de pedidos de ajuda habitacional; e, por
fim, o número de fogos disponíveis, que é como atirar areia para os olhos de
uma população que se vê cada vez mais afectada por esta crise.
A elegibilidade
dos agregados é ditada por um número calculado a partir dos factores escolhidos
pelo município: ser residente ou trabalhador no Porto (50 pontos); não
ultrapassar os 35% de taxa de esforço, sendo também apontado o rendimento
máximo mensal de 2000 euros — classe média? (30 pontos); a idade média do
agregado ser inferior a 35 anos — e se for 36? (seis pontos); e, por fim, a
existência de uma criança com menos de cinco anos no agregado — e se for seis
ou 12? (14 pontos).
Sabemos ainda que
termos como regeneração ou revitalização, utilizados para atrair mais pessoas a
zonas ainda aquém da sua capacidade de rentabilização, são, neste caso, usados
no campo da habitação como modo de mascarar a gentrificação que ainda está por
fazer naquelas ruas estreitas e escuras. Aqui, pretendem fazer esse
aburguesamento e essa valorização do solo através da escolha específica de um
certo tipo de agregado familiar. Ou seja, não só não vão à raiz do problema
como também elaboram uma resposta que compactua com o estado da arte. Ao
desconstruirmos o processo deste sorteio percebemos que a visão da Câmara do
Porto para o Morro da Sé é coerente com o processo corrente de gentrificação,
propondo, no entanto, fazê-lo a médio e longo prazo, com os locais. Trata-se,
por um lado, da zona da cidade de onde provêm o maior número de pedidos de
ajuda à habitação, cerca de 30%; e, por outro, é nesta freguesia que são
praticados os valores mais altos, atingindo o preço médio de venda de 2081
euros por metros quadrados. Não seriam estas 15 casas um início da resposta à
crescente lista de pessoas a necessitar de ajuda habitacional?
Este sorteio
nasce a par do Programa de Arrendamento Acessível (PAA) lançado pelo Governo
Central para “dar resposta às novas necessidades habitacionais”. O vereador do
urbanismo da CMP apoia-se nesta iniciativa para alegar que os preços das
habitações a sorteio são mais baixos do que os propostos pelo PAA. Parece-nos
importante desmistificar o erro de leitura por parte do executivo municipal ao
comparar as duas iniciativas porque, ao passo que o PAA se trata de um
incentivo a privados, o sorteio joga com o património público. É perversa a
premissa, principalmente no domínio das instituições públicas, de que uma
habitação para ser considerada acessível, tenha apenas de ter um aluguer 20%
abaixo do preço de mercado.
Ora, se os preços
do mercado não são controlados, como é que a categoria acessível é calculada em
sua função e não em função dos rendimentos das famílias? Quando a Câmara e o
Estado parecem agir mimeticamente com a conjectura do mercado, quem é que age
de acordo com as necessidades da população residente? Dita a Constituição que
as rendas deveriam ser compatíveis com os rendimentos familiares e a nova Lei
de Bases diz que o património público deveria ser utilizado para dar resposta
aos mais vulneráveis. No entanto, o sorteio e também o PAA parecem passar ao
lado destas alíneas e encaixar-se na lógica neoliberal da financeirização da
habitação.
São bastantes as
questões que surgem à medida que desconstruímos o processo, mas, mais do que
uma enumeração de casos, interessa pôr em causa esta iniciativa pública na sua
génese. Dado o ritmo corrente destes processos, a linha de acção da Câmara
parece coerente com a marca que a cidade vende, é o Porto. que nos coloca a
todos à mercê da especulação imobiliária. O acesso das famílias a habitações
condignas está assim entregue au hasard, neste Porto sem sorte, sorteado.
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