OPINIÃO
O conflito de
interesses de Nuno Artur Silva
O equilibrismo
que Nuno Artur Silva anda a tentar fazer desde 2015 entre cargos públicos e
negócios privados não tem defesa possível.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
3 de Março de
2020, 6:36
Nuno Artur Silva
concedeu uma entrevista ao PÚBLICO no último sábado, que deveria ter sido
aproveitada para esclarecer as suspeitas de conflito de interesses após a venda
da sua antiga empresa (as Produções Fictícias) a um sobrinho. Infelizmente, o
que precisava de ser esclarecido não foi, e o que foi esclarecido não é, de
todo, favorável ao actual secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media.
O conflito de
interesses denunciado pelo jornal Sol existe e é grave. Esse conflito de
interesses já existia quando Nuno Artur Silva foi administrador da RTP e
manteve a propriedade das Produções Fictícias (PF) e do Canal Q. E o conflito
de interesses continua a existir – em certa medida, até se agravou – no momento
em que vendeu as Produções Fictícias ao sobrinho; em que o sobrinho, via PF,
começou a fazer negócios com a RTP; e em que Nuno Artur Silva não só tutela a
RTP, como lucra com o negócio das Produções Fictícias, por haver 20 mil euros
que lhe serão adicionalmente pagos se o ano de 2020 correr bem à sua antiga
empresa.
O único aspecto
que ainda está por esclarecer, e que a entrevista ao PÚBLICO não aprofunda
porque a pergunta não lhe foi directamente colocada, é este: é ou não verdade
que Nuno Artur Silva ainda não recebeu, até este momento, um único cêntimo pela
venda das Produções Fictícias? Segundo o contrato de cessão de quotas revelado
pelo Sol, Nuno Artur Silva ofereceu um prazo de dois anos às duas pessoas que
já geriam a sua empresa e que compraram as PF (entre as quais o sobrinho) para
pagar o valor acordado. Na entrevista ao PÚBLICO, ele acaba por confirmar isso
mesmo no meio de uma resposta: “Têm dois anos para me pagar.” A afirmação
passou por perfeitamente normal – mas ela é tudo menos normal, e deveria ter
sido desconstruída.
É que se o
conflito de interesses já é mais do que evidente por o sobrinho do secretário
de Estado que tutela a RTP estar a apresentar projectos ao canal público (e a
RTP a comprá-los) e Nuno Artur Silva poder lucrar com esses negócios em 2020, o
caso assume ainda maior gravidade se o valor acordado pela venda das PF não
tiver sido pago. De facto, se as PF tiverem sido vendidas sem dinheiro à
frente, a consequência é uma de duas: 1) No prazo de dois anos nada é pago, e
então Nuno Artur Silva pode reaver a empresa; 2) As Produções Fictícias
conseguem vender séries, facturar e sair da situação financeira em que se
encontram (o próprio contrato descreve uma “difícil situação de tesouraria”), e
então são os negócios com a RTP que estão a ajudar Nuno Artur Silva a receber o
valor acordado pela venda. Qualquer das situações é inaceitável.
As Produções
Fictícias têm um merecido lugar na história do humor em Portugal. Tiveram duas
gerações de ouro, a primeira ligada a nomes como Rui Cardoso Martins, José de
Pina ou o jovem Nuno Markl, que fizeram do Contra Informação um sucesso
nacional e estancaram a perda de energia criativa de Herman José nos anos 90; e
depois uma segunda geração de ouro, encimada por Ricardo Araújo Pereira, que
domina o humor até hoje. Com o tempo, todos eles se autonomizaram das PF, e a
decadência da empresa tornou-se inevitável. Ninguém tira a Nuno Artur Silva o
mérito de ter criado as Produções Fictícias e de ter gerido tantos talentos e
tantos egos. Mas virtudes passadas não apagam vícios presentes. O equilibrismo
que anda a tentar fazer desde 2015 entre cargos públicos e negócios privados
não tem defesa possível.
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