PATRIMÓNIO
Plataforma do
património regressa para combater “mercantilização” e “falta de respeito” pelo
que é público
Quinze
associações reactivam a Plataforma pelo Património Cultural. Objectivo?
Inverter, com debate e propostas, a deriva das políticas públicas para o
sector, algumas feitas “à revelia da lei”.
Lucinda Canelas 2
de Março de 2020, 20:30
A estratégia para
confiar a gestão de património cultural público a privados, traduzida na
cedência de peças até aqui à guarda de um museu nacional a um grupo hoteleiro
ou de parte de um mosteiro a outro, levou à reactivação da Plataforma pelo
Património Cultural (PP-Cult), um grupo de associações que entre 2008 e 2014 promoveu
o debate e a reflexão sobre políticas patrimoniais.
Na altura, como
agora, os seus promotores pretendiam convocar associações cívicas e de
profissionais, organizações de carácter técnico e científico, mas também
empresas privadas e organismos públicos, para uma ampla troca de ideias sobre o
património cultural como valor estratégico para o desenvolvimento do país. Esta
reflexão deveria incluir, naturalmente, os políticos com responsabilidades no
Governo e no Parlamento.
O Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS, na sigla inglesa), o Fórum Cidadania
LX, a Federação dos Amigos dos Museus de Portugal, a Associação Portuguesa de
Museologia (Apom) e a de Arqueologia Industrial (APAI) estão entre as 15
entidades que consideraram ser agora oportuno relançar a plataforma.
No texto que as
associações subscritoras da PP-Cult farão circular a partir desta terça-feira,
e que serve de convite a que outras a ela se associem, justifica-se o regresso
deste agregador de estruturas pelo “novo ímpeto na direcção da mercantilização
do Património Cultural, pela cedência de colecções dos museus nacionais e bens
culturais a unidades hoteleiras privadas, para fins principalmente decorativos,
pela travagem dos processos de classificação por razões de interesse municipal
ou governativo, e ainda pela nomeação de uma nova direcção do organismo de
tutela – a Direcção-Geral do Património Cultural [DGPC]”.
A nomeação de
Bernardo Alabaça, um gestor cuja área de especialização é o imobiliário, para
encabeçar a DGPC, publicada esta segunda-feira em Diário da República, foi fortemente
contestada por entidades ligada ao património, entre elas o ICOM-Europa, o
braço europeu do Conselho Internacional de Museus, e pela Apom, liderada por
João Neto. O mesmo João Neto, director do Museu da Farmácia, espera agora que a
plataforma relance um debate alargado capaz de contestar “as políticas
concertadas” para a intrusão de privados na esfera do património cultural sem
que sejam acauteladas devidamente as condições da sua preservação.
As associações
subscritoras do documento que reactiva a PP-Cult centram parte das atenções no
“‘caso’ do empréstimo, quase se diria oferta”, dado o prazo de 25 anos
estipulado para a cedência de 42 peças da colecção Rainer Daehnhardt que estão
à guarda do Museu Nacional dos Coches ao grupo hoteleiro Vila Galé, ordenada
pela secretária de Estado adjunta e do Património Cultural, Ângela Ferreira, no
âmbito do Revive, programa destinado a manter e rentabilizar o património do
Estado através de concessões a privados, sobretudo para fins turísticos.
Reservas ou arrecadações?
O caso que
envolve um novo hotel na Coudelaria de Alter do Chão, cuja abertura está
marcada para o próximo dia 13, já por si seria grave, defendem, mas torna-se
ainda mais problemático, “roçando a irresponsabilidade”, por ser o primeiro de
vários empréstimos desta natureza que o Governo tem previstos.
“Preocupa-me a
falta de respeito com que o património cultural está a ser gerido, o facto de
ser cada vez mais invisível”, diz João Neto, que já solicitou a intervenção
“urgente” da provedora de Justiça relativamente ao despacho assinado por Ângela
Ferreira, entretanto contestado pela directora do Museu dos Coches, que o
considera “ilegal”. “É precisamente a perda de respeito pelo património que
leva a que uma secretária de Estado possa achar que aquelas peças [armaduras,
espadas, armas de fogo e outros objectos relacionados com o universo equestre]
estão melhor a decorar a recepção e os corredores de um hotel do que nas
reservas de um museu.”
As reservas,
sublinha, são um espaço importante porque ajudam o museu a contar uma história.
“Não sou contra a entrada dos privados no património, não sou contra centros
interpretativos em hotéis, mas não podem ser feitos de qualquer maneira. Têm de
se assegurar as condições de preservação das peças e de transmissão de
conhecimento. O que o Estado precisa de fazer é criar estratégias para
valorizar as reservas e para as abrir ao público. E o que está a fazer?
Trata-as como se fossem armazéns onde pode ir buscar coisas. Ora, a reserva de
um museu nacional não é uma arrecadação”, acrescenta o presidente da Apom.
Dizem ainda os
responsáveis das entidades signatárias que esta linha estratégica do executivo
para o património entra em “contradição” com o novo modelo de autonomia e
gestão de monumentos e museus que está ainda em fase de implantação.
Fazendo a ponte
para as mais de 100 obras desaparecidas da colecção de arte contemporânea do
Estado e reconhecendo que o depósito de peças de acervos públicos em pousadas
nacionais, ministérios e embaixadas é prática no país há décadas, o documento
aproveita para perguntar se há um inventário destes bens, “de que se perdeu em
grande parte o rasto”, assegura. “Bastaria o peso da realidade passada e a
necessidade urgente de lhe dar resposta, para que novas frentes potencialmente
conducentes a novos casos de polícia não fossem tão levianamente abertas”,
continuam os subscritores. Os “usos mercantis” devem ser excepções porque
condicionam o acesso universal aos monumentos — insistir neles será uma “deriva
inaceitável”.
A cedência das
peças da colecção Rainer Daehnhardt ao Vila Galé de Alter do Chão, um hotel
criado no contexto do Revive, ainda não está formalizada porque faltam os
pareceres técnicos finais – e já houve vários negativos ao longo do processo.
Também não é claro em que local do hotel serão expostas uma vez que, de acordo
com documentos a que o PÚBLICO teve acesso, a empresa está a criar um núcleo
interpretativo, prevendo ao mesmo tempo espalhar algumas peças pelos espaços
comuns do edifício.
O que tem faltado
ao Governo na relação entre o que é público e o que é privado é “pensamento e
capacidade de gestão”, defende, por seu lado, Jorge Custódio, presidente da
Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial e investigador da Universidade
Nova de Lisboa. E é porque ao Governo falta “ideia” que a concessão de
património a privados é “uma trapalhada”. Desconhecem-se os “critérios que
levam à escolha de uns imóveis e não de outros” e fica por apurar que
importância o executivo atribui a estes bens, móveis ou imóveis, diz ainda este
arqueólogo especializado em património industrial que já dirigiu o Convento de
Cristo: “Estão a perpetuar práticas patrimoniais do passado, com a agravante de
que em Portugal sempre houve um problema de inventário. Já o [historiador
Alexandre] Herculano dizia que os ministros não sabiam qual era o valor
económico dos Jerónimos. Continuam a não saber. O valor destes bens não é o seu
potencial turístico, mas a capacidade que têm de estimular o pensamento e as
emoções desta e das gerações seguintes. Só as pessoas inteligentes podem criar
riqueza. Olhar para o património cultural como um bem transaccionável é a
maneira errada de olhar para ele.”
Uma das muitas
perguntas que o documento da plataforma deixa no final diz precisamente
respeito ao “inventário e monitorização pelo Estado dos bens móveis e imóveis
integrantes do património cultural”. Tem havido “um atropelo claro do
património”, conclui Custódio, com decisões tomadas “à revelia da Lei-Quadro
dos Museus, por governantes nomeados para a respeitar”, acrescenta João Neto.
Alcobaça e os
outros
É também de
“desrespeito completo pelo património histórico do país” que fala Soraya Genin,
presidente do ICOMOS –Portugal, quando acusa o Governo de dar o seu aval a
projectos de intervenção que “não passam de fachadismo”, quer em edifícios
públicos, quer privados, nos centros históricos ou fora deles.
Para esta
arquitecta especializada em conservação e reabilitação urbanas, iniciativas
como o Revive têm por vezes sido postas em prática sem estudar convenientemente
os futuros usos propostos para os imóveis. Exemplo desta prática lesiva fora
deste programa, defende, é o projecto para a conversão em hotel de cinco
estrelas do Claustro do Rachadouro do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, sem
utilização há 15 anos, desde que dali saiu um lar de idosos. Um projecto da
autoria do arquitecto Eduardo Souto de Moura e promovido pelo Grupo Visabeira,
que prevê a cedência do referido claustro por meio século para que nele seja
criada uma unidade hoteleira de três pisos com 80 quartos, piscina interior,
SPA, ginásio e espaços para congressos, o que exige um investimento de 15
milhões de euros.
“Cabe a quem faz
a gestão do património avaliar as possibilidades de uso e, quando elas alteram
substancialmente as características arquitectónicas do edifício, rejeitá-las”,
diz a presidente do ICOMOS. “Não estou a pôr em causa a qualidade do arquitecto
nem os benefícios de dar uso a um espaço que estava vazio há muito tempo e, por
isso, a degradar-se, estou apenas a dizer que o tipo de uso tem de se adequar à
arquitectura. Um lar de idosos pode fazer-se sem o luxo de alterar
compartimentos pequenos, para uso dos frades, porque não precisa de uma casa de
banho em cada quarto, já um hotel de cinco estrelas não”, explica Soraya Genin.
“Quando esta falta de estratégia de salvaguarda atinge o património mundial,
não pode ser mais grave, não pode subir mais alto.” Alcobaça, uma abadia de
fundação cisterciense, é património da humanidade há 30 anos.
Seja num mosteiro
património mundial, seja noutro que é património nacional — o de São Salvador
de Travanca, beneditino, fundado no século XII, em Amarante, imóvel que o
empresário francês Jean-Claude Frederic Frajmund deverá transformar num hotel
com 40 quartos —, o que está em causa é a preservação da integridade dos
conjuntos classificados, argumenta a arquitecta.
Graça Fonseca,
ministra da Cultura, defendeu esta segunda-feira em visita à Fábrica de
Azulejos Viúva Lamego a escolha de Bernardo Alabaça para o cargo de
director-geral do Património, considerando “extraordinário” que o gestor tenha
sido considerado “incapaz” antes mesmo de ter tido a oportunidade de mostrar o
que pode fazer numa área, a da gestão de património público, em que tem
experiência e já revelou ser muito competente.
A ministra da
Cultura está entre os políticos a quem a plataforma vai pedir audiência. As
associações querem ainda ser ouvidas pelo Presidente da República, o
primeiro-ministro, o director-geral do Património e os partidos políticos com
representação parlamentar.
tp.ocilbup@salenacl
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