"Não
há político que tenha coragem para falar a verdade e contar tudo
aos portugueses"
Aparece
todas as semanas na televisão e escreveu o romance português que
mais vendeu neste século. Numa entrevista tensa sobre a realidade do
país, critica a banca e os políticos que não cumprem as promessas
01 DE AGOSTO DE 2016
João Céu e Silva
"Estou a
caminho das férias..." Foi a primeira resposta de Miguel Sousa
Tavares ao pedido de entrevista. Depois, talvez por sentir vontade de
atirar umas boas achas para a fogueira de vaidades que vai por este
país, aceitou falar ao fim de uma tarde, lá para o Sul do país.
Pousa os pés sobre
a mesa em frente e procura a melhor posição para se encaixar. Fica
assim durante uma hora e só altera a posição para tirar um cigarro
do maço algumas vezes. De resto, só a boca mexe. Por onde esvazia a
irritação que tem perante um Portugal que se anda a (deixar)
enganar e as situações que não perdoa a uma sociedade adormecida.
Ainda conta duas anedotas para suavizar o ambiente, afinal o país
está fechado para férias e o jornalista, comentador e escritor quer
acreditar que há cura para o mal português.
Estamos a viver um
tempo em que somos campeões de tudo. Como é que convive com esta
realidade?
Os melhores em
tudo... Acha? Não subscrevo a afirmação. Se falarmos a nível de
desporto, ainda vá lá, mesmo que de todos os que foram campeões a
que tem mais valor para mim é a Patrícia Mamona. Porque ganhou uma
disciplina muito técnica como é a do triplo salto e isso não é
costume no atletismo português. Nesta modalidade ainda somos como os
etíopes e os quenianos - como os países subdesenvolvidos -, bons
para corridas de fundo. No entanto, não adiro a esta onda
patrioteira, como lhe chamo, porque sermos campeões do défice e o
país da Europa que menos cresce há anos é muito mais preocupante.
Até o Presidente se
tornou campeão de dar medalhas. Nunca se deram tantas em tão poucos
dias.
Nem o Marcelo
esperava dá-las, o problema é que começou por dar à seleção e
não podia parar. Alguém disse que isto faz todo sentido porque os
heróis do nosso tempo são os cantores de rock, os atores de novelas
ou os desportistas. Como é preciso que haja heróis, são estes.
No caso do Cristiano
Ronaldo, por exemplo, não é herói merecido?
Sim, é um grande
profissional e com muito esforço individual.
Que não é hábito
nos portugueses!
Nem nos portugueses
nem na maioria dos jogadores de futebol.
Destacou-se tanto
como o treinador Fernando Santos...
Ele também já foi
treinador do meu clube, o Futebol Clube do Porto, e gostava dele
embora o criticasse muito. Continuo na mesma, porque como quase todos
os treinadores modernos está a dar cabo do futebol com tantas
táticas defensivas e quase ninguém para atacar.
Mas a receita
resultou...
Claro, é uma
receita aplicada em todo lado praticamente. É como no meu clube,
onde não gosto de ver mau futebol nem quando a minha equipa está a
ganhar.
Aí temos o eterno
Pinto da Costa que não permite evoluções?
Bem, evoluções há
sempre. Esse tema não me interessa nada.
Acredito, mas não é
estranho estar lá há tantos anos e continuar?
Está quase a bater
o recorde do João Jardim e do Salazar... As pessoas devem sair
quando estão por cima, a deixar saudades e não cansaço.
Estamos a viver uma
situação política terrível. Após as férias, teremos o nosso
futuro esclarecido ou continua a confusão governativa?
Não vejo António
Costa senão a governar a uma semana à vista. Não tem nenhuma
projeção de médio prazo, menos ainda de longo prazo. E falta a
reflexão que ninguém faz em Portugal: de que vamos viver daqui a
cinco, dez, vinte, cinquenta anos? Creio que ele vive nesta corda
bamba eterna e, como não há milagres, estando em cima de gelo
estaladiço, basta o sol aquecer já neste verão para o gelo
rebentar.
No caso das sanções,
não fez um bom braço-de-ferro com a União Europeia?
A questão principal
não é bem essa. Não havia justificação política para as
sanções, mas jurídica há toda. Reconheço que existem precedentes
com a Alemanha e a França, a quem não foram aplicadas sanções,
mas o principal é que não precisamos de cumprir o défice para
ficarmos de bem com Bruxelas mas sim para termos futuro. Percebo
perfeitamente aquela frase do Sócrates, que foi tão criticada, mas
não podemos continuar a empurrar isto com a barriga. Nós perdemos
300 e tal mil miúdos que foram lá para fora - dos meus três
filhos, tenho dois assim - e que fazem parte da tal geração que se
ajudou a formar e que é brilhante. Será que algum dia vão querer
voltar para pagar a dívida que os pais deixaram? Não virão para
ganhar menos dinheiro e tapar o buraco que os pais deixaram. É isso
a que chamo pensar Portugal a médio prazo, que é já depois de
amanhã.
Até porque pela
primeira vez temos uma poupança negativa...
Porque ninguém
confia no sistema bancário. Vamos pôr dinheiro no banco, e se ele
rebenta? Então, mais vale gastá-lo.
Vamos à política.
Este governo aguentará mais seis meses?
A lógica diz-me que
não porque este governo vai ter de mudar de vida. Porque está a
empurrar a dívida para baixo do tapete, a adiar compromissos, a
cativar verbas dos ministérios e não tem um tostão de investimento
público. Ou seja, a fazer coisas que não são sustentáveis no
tempo a menos que quebre os compromissos que tem com o Bloco de
Esquerda e o PCP.
"O governo não
aguenta mais seis meses, está a empurrar a dívida para debaixo do
tapete"
E fica sem base de
sustentação?
É o problema.
Portanto, pela lógica o governo rebenta em seis meses.
E a solução será
Marcelo Rebelo de Sousa impor aquilo que Cavaco Silva tentou, um
bloco central com o PS e o PSD?
Não com Costa nem
com Passos Coelho. Vai ser parecido com a situação política em
Espanha, onde, se substituíssem Rajoy no PP e Pedro Sánchez no
PSOE, já teriam governo. Passos Coelho e António Costa têm uma
incompatibilidade absoluta e com problemas pessoais envolvidos. Não
sei se a solução será convocar novas eleições, pois o resultado
pode ser semelhante ao que temos e então, sim, não haveria outra
solução senão juntarem-se num bloco central ou num bloco central
alargado a quem mais quiser à esquerda ou à direita.
Antes justificou-se
isso com o interesse nacional. Agora como é?
A expressão mudou,
foi substituída pela patriotismo. Caso haja novas eleições, duvido
que o cenário eleitoral mude muito. Não vai haver maioria num lado
ou noutro.
Antevê um resultado
eleitoral?
Se e quando o
governo de Costa cair a situação económica for pior, o PS vai
pagar uma grande fatura eleitoral. Afinal de contas, não vou ao
ponto de dizer, como Passos Coelho, que Costa lhe roubou a
legislatura, mas inventou um truque que não estava na cabeça do
eleitores quando votaram. Ou seja, tem de provar que tinha um novo
plano económico baseado no crescimento. Se no fim disto tudo falhar,
o PS vai pagar uma fatura imensa e virar-se para Francisco Assis.
Aí o PS não terá
futuro governativo, só como parceiro de coligação.
Sim, só como
parceiro.
Passos Coelho já
disse que não estará num governo que vá ter um segundo resgate e o
que Schäuble disse disso não foi inocente. A dívida dos bancos
leva a novo resgate?
A questão bancária
é tramada. Não percebo como é que Maria Luís Albuquerque ainda
abre a boca. Ela, que deixou o Banif, a CGD e o Novo banco! Para onde
é que foi o dinheiro? E a senhora assistiu a tudo e ainda diz que
com ela estava tudo melhor. A crise bancária não é culpa deste
governo, embora esteja a gastar as botas claramente. É que as
pessoas andam a esmifrar-se, a pagar impostos, a perder postos de
trabalho e a emigrar por causa de um sistema financeiro que leva as
poupanças de toda gente.
Há solução para a
crise bancária?
Não faço ideia,
ultrapassa-me. E eu, que gosto muito de economia, que sigo e leio
tudo. Achava na minha santa ingenuidade que ter um banco era um
negócio extraordinário, mas se até o Deutsche Bank está aflito...
O relatório do FMI
colocou o grave problema bancário de Itália, mas não se esqueceu
do de Portugal. Não é um exagero compará-los?
É um absurdo dizer
que o nosso sistema bancário ameaça o sistema global. A Itália
sim, pois são 360 mil milhões de malparado na quarta economia da
União Europeia.
Voltemos à ameaça
do segundo resgate de Schäuble. Ele virá?
Nunca poderá ser
imposto, teremos de ser nós a pedi-lo. O grande problema vai-se dar
no final do ano se o Banco Central Europeu atingir o limite de dívida
publica portuguesa que pode comprar. Aí ficamos outra vez
desamparados. E se as taxas de juro forem por aí acima, a certa
altura repete-se o tempo do ex-ministro Teixeira dos Santos: "O
meu limite é 7,5%." Se tivermos de pedir um segundo resgate,
será por causa da banca.
Mário Centeno
repetirá o papel de Teixeira dos Santos, que fez cair Sócrates, a
António Costa?
O que se tem visto é
o contrário, António Costa a empurrar para baixo sistematicamente
Centeno e a dizer que está tudo bem.
Sócrates também
fazia isso.
Também fazia, mas
não estou a ver Centeno fazer cair Costa como Teixeira dos Santos
fez a Sócrates.
E será imaginável
que Passos Coelho aceite ser de novo primeiro-ministro em
circunstâncias financeiras complicadas?
Imaginável é, acho
até que está à espera disso. Não o vejo a querer um futuro de
deputado nos próximos seis ou sete anos.
Está à espera que
o governo caia?
Com certeza, isso é
o que faz a oposição em Portugal. Não há nenhum político
português que tenha a coragem de falar a verdade e de contar tudo
aos portugueses. Se o fizer, perde as eleições. A grande crítica
que faço ao governo de Passos Coelho é a de não ter feito nenhuma
das reformas que o país precisava e, em vez de mudar o Estado, pôs
toda a economia a pagar as contas do Estado e tirou dinheiro às
pessoas. Uma receita trágica.
É dessa ausência
de governação que vem o seu ódio de estimação a certos
políticos?
O meu ódio de
estimação a Cavaco vem desde que era primeiro-ministro, porque foi
sempre o menor denominador comum das qualidades portuguesas - se é
que temos algumas. Existem duas pessoas na política portuguesa por
quem não tenho nenhuma consideração: Cavaco Silva e Durão
Barroso. Portugal não lhes deve rigorosamente nada e, pior, eles
foram elementos de estagnação para este país.
A Goldman Sachs não
pensa isso!
Dizem que vão
contar com os conselhos de Durão Barroso, mas sobre o quê? Nunca
acertou em nada. Presidiu à decomposição da Europa, enganou-se na
Guerra do Iraque... Na idade em que ele era maoista estalinista já
eu era pai de filhos! Acredito que não soubesse o que era o maoismo
e o estalinismo nessa altura, estava, sim, a preparar-se para uma
carreira política. Os americanos adoram arrependidos e a Europa
adora convertidos. Não é necessariamente obrigatório que se seja
estúpido ou ignorante aos 22 anos, portanto, era um papel o que
representava.
O PCP começa a
fraquejar no apoio parlamentar ao governo. Acha que isto vai cair
pelo PCP?
O PCP conseguiu tudo
o que queria com o acordo, o problema é que já não manda na CGTP.
É ao contrário. Queria era defender o seu bastião, o dos
funcionários públicos, o dos trabalhadores das empresas públicas e
os reformados, e Costa deu-lhe isso. Quando o PCP obtiver aquilo que
queria, acabou.
O PCP não teve de
engolir um grande sapo para apoiar o PS?
Só o fez porque o
seu eleitorado o exigiu. Na campanha eleitoral via--se as pessoas a
interpelar Jerónimo de Sousa e este a dizer que nunca se juntaria a
Costa ou ao PS. Foi o próprio eleitorado que obrigou Jerónimo a
sentar-se à mesa com Costa. E sabe, se eu for jantar com António
Costa e me apetecer comer peixe e ele quiser comer carne, eu acabarei
por comer carne, porque quem se senta à mesa com o Costa é comido
pelo Costa. O Costa dá tudo, mas sai de lá com um acordo. Quando
diz que o PCP tem comido muitos sapos, eu acho que o governo de Costa
tem comido muito mais. Foi assim que conseguiu comprar a paz social.
António Costa não
se vai fartar de engolir sapos da esquerda?
Essa é a grande
questão que António Costa vai ter ou não de desmentir, se só quis
chegar ao poder e não tem outro objetivo ou se não tem nenhuma
ideia para os três anos e meio de mandato que ainda tem para fazer.
Uma coisa é evidente: quando começaram as negociações com os
partidos, Costa nunca quis chegar a acordo com o PSD.
Aí, o papel
principal foi de Catarina Martins?
Sim.
É a grande política
desta fornada?
Sim.
Não é produto da
conjuntura?
Não, tem valor
indiscutivelmente, comete poucos erros e deslizes e é capaz de os
reconhecer. Marcou toda a agenda parlamentar com o fungagá dos temas
fraturantes e nunca ameaçou bater com a porta como o Jerónimo passa
a vida a fazer.
Ela é o garante
deste governo?
De certa forma é,
mas também é preciso que o PCP permaneça.
O PCP vai ter um
congresso. Será que Jerónimo vai ter sucessor?
Ele tem uma
qualidade: é um comunista simpático, simples e humano, e as pessoas
simpatizam com ele. Não vale a pena renovar o PCP se não for pelas
ideias, e isso não é possível. É uma excrescência portuguesa,
que não existe em lado nenhum do mundo. É o último partido
comunista com expressão eleitoral.
Há duas semanas,
uma sondagem revelava que 67,8% dos portugueses admitiam uma união
ibérica. É a reação ao desgoverno sucessivo?
E depois como é que
festejaríamos os Europeus? Como é que o patrioteirismo se coaduna
com isso? Custa-me a acreditar nessa sondagem. O meu pai dizia uma
frase engraçada: Portugal tinha morrido todo em Alcácer-Quibir.
E não é verdade?
Não sei. Há uma
anedota em que dois tipos estão à conversa e um diz para o outro:
"Como é que nós somos descendentes daqueles tipos que partiram
mundo fora sem saberem o que é que havia do lado de lá. Que tipos
extraordinários!" E o outro responde: "Nós não somos
descendentes desses, mas dos que ficaram aqui."
E a sentença de
Alcácer-Quibir...
Na altura deve ter
representado a morte do Estado. Como é que o Brasil se impôs?
Porque D. João VI leva para lá a corte, leva o Estado, e dá origem
ao nascimento do Brasil moderno. Com Alcácer-Quibir terá acontecido
o contrário. O meu pai tinha essa tese e eu alertava-o: "Pai,
mas isso foi há 400 anos." Respondia: "Ainda não
recuperámos."
Em 2009, esteve
tentado a emigrar para o Brasil. Arrependeu-se de não ter ido?
De certa forma,
arrependi-me de não ter ido viver para o Brasil. Até cheguei a ter
casa já alugada! A intenção era viver lá seis meses e outros seis
meses cá. Arrependi-me de não ter ido, mas também aconteceram
muitas coisas no Brasil que me dececionaram bastante. Nada que não
antevisse num Brasil que é um país eternamente adiado. Nos últimos
dois anos conheci tantos amigos brasileiros que se mudaram para
Portugal que alguma coisa deve estar mal.
Se tivesse ido para
o Brasil ter-se--ia dedicado mais à literatura?
Com certeza, porque
lá não podia fazer outra coisa. Essa era a ideia.
E arrepende-se de
não se ter dedicado 100% à literatura?
Já chegava 15%...
De qualquer modo, nunca me arrependo muito das coisas que deixei de
fazer, talvez lamente mais aquilo que não fiz. Todas as coisas têm
o seu tempo, tanto assim que comecei a escrever um romance há dois
anos e escrevi três capítulos. Depois parei. Se valer a pena ser
escrito, hei de voltar lá; senão, para quê estar a esforçar-me?
Também não quer dizer que me ponha à sombra da bananeira, à
espera que chegue a inspiração. No entanto, como faço outras
coisas, não preciso de ter um livro a seguir às férias ou para o
Natal. Não sinto esse desespero nem essa necessidade de publicar.
Equador foi um livro
que marcou e já lá vão 13 anos. Os leitores não quererão mais?
Pois, também eu
queria mais, só que o bom romance é fruto de uma grande ideia. Se
houvesse aí uma loja que vendesse ideias a escritores, ia já lá
comprar uma. Porque com uma grande ideia consigo escrever um livro
bom. Sem ela, por melhor que escreva e por mais cuidado que se tenha
com a história, é difícil escrever um grande livro.
"Existem muitos
escritores novos em Portugal, mas nunca escreveram um grande livro"
A nova geração de
escritores portugueses vai buscar muita inspiração à história de
Portugal. Não há um acontecimento que sirva de gatilho a um novo
Equador?
Até agora, os
factos dizem que não.
Quando olha para um
exemplar do Equador na estante não sente que tem de fazer alguma
coisa?
Não.
O primeiro livro que
publicou foi em 1983, o Sara, a República da Areia...
Não era bem um
livro, era uma reportagem escrita sobre uma reportagem de televisão.
Era tão mau que saiu do mercado e nunca mais quis ouvir falar dele.
Houve um gatilho
para o fazer, tal como os livros posteriores...
Houve, sim senhor.
Então, é um
bloqueio de escritor?
São várias coisas.
Há um bloqueio pessoal, um bloqueio criativo e um bloqueio de
escrita. Digamos que é uma calmaria, que é o contrário de uma
tempestade perfeita. Nada mexe no meu horizonte e não há vento a
empurrar-me, nem de través nem de bolina. Mas tudo muda um dia.
A nossa literatura
tem vindo a melhorar nos últimos anos?
Sabe o que é que
ando a ler desde há meses para cá?
Anna Karenina.
Como é que sabe?
Vi o livro por aí...
Certo. Ando a ler os
livros que gostei muito: a biografia do Estaline, de Simon Sebag
Montefiore; o Anna Karenina, que está quase no fim, e a seguir vou
para A Margarita e o Mestre, de Bulgakov (ler texto final).
Quanto a outras
leituras também vou ser sincero: não tenho lido tudo, longe disso,
porque houve uma época até há uns cinco, seis anos em que lia tudo
por curiosidade. Ultimamente, não é assim.
Portanto, não há
um autor eleito?
Há muitos autores.
Continuo a gostar mais dos antigos, como a Luísa Costa Gomes, do que
dos novos. Embora ache que existem muitos escritores novos que
escrevem bem, só que, na minha opinião, nunca escreveram um grande
livro. Utilizando uma imagem futebolística, é como os grandes
jogadores: têm de aparecer nos grandes jogos. Podem jogar bem contra
o Farense, mas se não jogam bem contra o Real de Madrid não servem.
Fazerem como o Éder
na final!
Sim. Sou capaz de
enumerar vários livros de novos autores portugueses que achei bons,
mas não consigo referir um grande livro, que é aquele do qual me
lembro várias vezes da história e das suas personagens.
Não é normal que
num país com tanta gente dedicada à literatura não haja uma grande
obra que se destaque das outras?
Não, não é
normal, mas também se facilitou ao afirmar-se que eles são
escritores e, rapidamente, definidos como consagrados. Têm umas
críticas muito entusiásticas e acham que não dá assim tanto
trabalho ser-se escritor. Pode ser que esteja a ser injusto...
No entanto, os
escritores "clássicos" estão a ser completamente
erradicados da crítica?
Não concordo, mas
falar de clássicos é um exagero... Há quanto tempo não se escreve
um livro como o Delfim, do José Cardoso Pires, ou Os Sinais de Fogo,
do Jorge de Sena? Não temos referência nas novas gerações de
livros tão fortes como aqueles.
Nem teve curiosidade
no primeiro romance de Clara Ferreira Alves?
O Pai Nosso está na
minha lista. Tenho curiosidade e vou lê-lo.
Entre os livros
recentes está a coletânea de crónicas de Vasco Pulido Valente. Não
despertou interesse?
Não, leio-as quase
sempre. Já as conheço.
Em tempos disse que
escrever um romance era serviço público. Acha o mesmo em relação
ao jornalismo?
Se ambas forem bem
feitas é um serviço público. São duas atividades que se faz para
o público, enquanto houver público para elas. Em relação à
literatura e ao jornalismo escrito, creio ser cada vez mais é um
serviço público, porque é uma atitude de resistência e também de
sobrevivência. Se não houver quem queira editar jornais e quem os
queira escrever, ou quem queira escrever livros, o que acontecerá é
que dentro de uma geração não haverá palavras. Escreve-se num
iPhone ou no computador e pouco mais.
E tem reflexos na
vida prática?
Há dias estava a
ler um artigo sobre os exames de Português do 12.º ano, que referia
a incapacidade generalizada dos alunos de pensar a língua
portuguesa. São capazes de escrever frases sem perceber o contexto
em que estão a fazê-lo. Não são capazes de ir à etimologia da
palavra nem de se exprimirem por palavras. Estamos a chegar a esse
ponto. Hoje dominam as abreviaturas, palavras meio em inglês e meio
em português, o que representa um retrocesso na forma de
comunicação. Até ao momento em que será quase simiesca -
falaremos por grunhidos e gestos uns com os outros.
Até que ponto o
jornalismo está a ser vítima da simplificação das redes sociais e
das novas tecnologias?
Está a ser vítima
de muitas coisas. Leio nos jornais erros ortográficos que me deixam
de cabelos em pé. Outra situação problemática é a pobreza do
discurso político, que é constrangedor não só na substância como
na forma. Os responsáveis políticos dizem sistematicamente "tá".
Será que não têm consciência de que falam para milhões de
pessoas e que estas os imitam? Custará muito dizer a palavra toda?
Em tempos disse que,
quando começou a profissão, gostava de ser um fotojornalista como
os do Paris-Match. Foi um projeto que ficou pelo caminho?
Não, porque fui o
equivalente enquanto repórter. Não fui fotojornalista, mas fui
jornalista, que foi dos sonhos mais cumpridos da minha vida. No
primeiro dia que me enviaram ao estrangeiro em reportagem, na RTP,
para as primeiras eleições espanholas em democracia, lembro-me
perfeitamente de estar a levantar voo de Lisboa e a pensar: "Cumpri
o sonho da minha vida: ser enviado especial." Eram duas palavras
mágicas para mim, portanto acho que trabalhei para coisas melhores
do que o Paris-Match.
Estamos a viver um
período com constantes ameaças de terrorismo e a Interpol já
alertou para a hipóteses de atentados na Península Ibérica.
Deve-se dar-lhe crédito?
Não sei, acho que o
terrorismo islâmico tem servido de muleta para muita coisa. Por
exemplo, estou perfeitamente convicto de que este franco-tunisino do
atentado de Nice nada tinha de muçulmano, qualquer ligação ao
Daesh, nem nenhuma motivação islâmica. Era simplesmente um louco,
desequilibrado e de mal com a vida e consigo mesmo. Quem tenta
encontrar uma causa de autojustificação quando vai fazer uma coisa
daquelas e a causa é o Estado Islâmico, não é uma pessoa normal.
Não haverá outras
causas?
Quem me ouve há
muito tempo sabe que eu penso que nada disto existiria sem as redes
sociais. Onde essa gente se exibe, mostra as armas e faz as suas
ameaças. Esse confessionário aberto e o imediatismo das reações
de quem por lá anda, que os empurra a ir em frente, é altamente
perigoso. Nas redes sociais, quando têm seguidores, até o maior
anormal do mundo se considera a pessoa mais importante. Pode dizer os
maiores disparates, que não deixará de ter seguidores daqui até ao
Nepal. Acredita que vai passar à história quando matar 80 pessoas.
Esses tipos, os lobos solitários como lhes chamam as forças de
segurança, são uma ameaça para a qual não sei se existe solução.
Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior francês, fez uma
declaração muito lúcida: "Temos de nos habituar a viver com
isto." De facto, o que é que há para contrariar esta situação?
Se as redes sociais
têm culpa na situação, também não deixa de existir um papel por
parte dos políticos que abriram caminho à instabilidade no Médio
Oriente, na Síria, na Líbia...
... E no Iraque, que
foi uma coisa fatal. Aliás, não sei como é que os responsáveis
pelo Iraque dormem em paz com a sua consciência. Nem era preciso
ter-se conhecimento do recente relatório inglês, porque já se
sabia que tudo fora forjado e falsificado. Um milhão e muitos
milhares de iraquianos morreram depois da invasão em guerras civis,
bombas e conflitos entre eles. Foi em nome de quê aquilo que se fez?
Como é que Tony Blair tem lata para dizer "não estou
arrependido porque, apesar de tudo, derrubámos o Saddam Hussein"?
Foi um preço muito alto.
Qual a perceção
que tem do golpe na Turquia. Foi real ou artificial?
Aquilo foi
claramente preparado por Erdogan. Ele não é flor que se cheire, é
um tipo perigosíssimo porque não tem uma estratégia linear. A
única estratégia linear que se lhe conhece é a de ser um homem de
uma imensa vaidade, como mostra o palácio que fez para si próprio
em Istambul. Politicamente não é linear e está sempre a aldrabar.
À conta de combater o Estado Islâmico, o que fez foi dizimar os
curdos. Obviamente, não há nenhum golpe no mundo que três horas
depois de ter fracassado já tem 6500 pessoas presas. Tinha as listas
todas preparadas. Não passa de uma limpeza total e o que vamos ter é
uma ditadura pura, dura e feia.