(…) “E há
ainda, entre os parceiros do Ocidente, uma crítica mais ou menos
audível para a qual o correspondente do Guardian em Bruxelas, Ian
Trayner, chama atenção: a forma unilateral como Berlim toma as suas
decisões. Quando decidiu repor as fronteiras ou quando declarou
morta a Convenção de Dublin sem se dar ao trabalho de falar com os
seus vizinhos. Os próximos dias serão decisivos para ver se há ou
não há a capacidade para uma resposta europeia. Hoje, a paisagem
política alterou-se profundamente, com a presença cada vez mais
forte dos partidos nacionalistas e xenófobos.”
( …) “ Voltando
a Schengen, há o risco de matar de vez um dos pilares da identidade
europeia: a possibilidade de ir de Lisboa aos Bálticos sem ter de
parar numa só fronteira. Se a Europa não se entender sobre uma
política comum de asilo, se continuarem a prevalecer as respostas
nacionais, então as fronteiras acabarão por voltar. “
Santa
Merkel já não é santa?
TERESA DE SOUSA
16/09/2015 – PÚBLICO
1.Em menos de uma
semana Santa Merkel quase perdeu a santidade. No domingo, o seu
ministro do Interior anunciou a reposição provisória das
fronteiras, oferecendo mais munições aos que gostariam de acabar
com Schengen e esquecer as palavras da chanceler sobre os refugiados.
Outros países vizinhos, incluindo a Holanda, aproveitaram para fazer
o mesmo. O objectivo imediato da chanceler percebe-se. Não se trata
de mudar de política, mas de desacelerar o fluxo das últimas
semanas que esgotou boa parte do aparato logístico necessário. Mas
a questão não é assim tão simples.
A reposição das
fronteiras terá também servido à chanceler para enviar outras
mensagens. Em primeiro lugar, dissuadir os refugiados que, da Hungria
ao Afeganistão, empunham cartazes a louvar o seu nome e a sonhar com
uma vida na Alemanha. Merkel precisava também de responder às
crescentes pressões internas no seu próprio partido e, sobretudo,
na CSU da Baviera para adoptar uma política mais restritiva. Citado
pela Spiegel, o líder da CSU considera que a chanceler “cometeu um
erro grave que nos manterá ocupados durante muito tempo”. “As
críticas chegaram de todo o lado”, diz o Süddeutsche Zeitung.
Finalmente, era preciso colocar toda a pressão possível sobre os
seus parceiros europeus na véspera de uma reunião convocada para
debater a proposta de Jean-Claude Juncker para um mecanismo de quotas
fixas e automáticas.
Merkel teve o mérito
de colocar o problema na sua total dimensão. As migrações, sejam
quais foram os seus motivos, são um desafio de longo prazo que a
Europa tem de encarar estrategicamente. E disse mais. Disse que a
própria identidade alemã acabaria por mudar e que isso era uma
coisa boa. Lembrou que a política dos “trabalhadores convidados”
adoptada durante décadas não tinha funcionado da melhor forma. Os
imigrantes eram aceites enquanto fosse preciso, sem direito à
obtenção da nacionalidade, graças a uma lei que limitava a
cidadania aos alemães de sangue. Foi revista durante os governos
SPD-Verdes, abrindo as portas a uma dupla cidadania que continua a
ser controversa. Hoje, são os próprios empresários alemães que
precisam de gente de fora para trabalhar (há estudos que falam em
500 mil por ano) num país em que a taxa de natalidade é a mais
baixa do mundo. É também face à demografia que as propostas de
chanceler fazem sentido. Além disso, ela sabe o que é um Muro e tem
uma especial atenção, dizem os analistas alemães, a qualquer
manifestação que faça lembrar o terrível passado do seu país.
Ontem, esteve com o seu homólogo austríaco para convencerem Donald
Tusk a convocar um Conselho Europeu. Antes que o caos se instale na
Europa central, que a violência cresça na proporção do que está
em causa e que os europeus voltem a enterrar o sentimento de
solidariedade que manifestaram em larga escala, a partir do dia em
que uma simples foto fez abalar as consciências.
2. Merkel acreditou
que tinha a força e os aliados suficientes para levar os ministros
do Interior da União a aprovarem o plano Juncker. Não foi assim.
Pelo contrário, foi uma triste demonstração da divisão e da total
incapacidade da Europa perante desafios que não vão desaparecer.
Sem nada para dizer, os ministros aprovaram “entusiasticamente” o
envio de uma “invencível armada” para eliminar os traficantes,
como se isso fosse possível. Enquanto houver gente que está
disposta a arriscar tudo para chegar à Europa, o “negócio”
continuará. Tal como o nacionalismo e a xenofobia que foram tomando
conta dos países da Europa de Leste, os mesmos que, há vinte cinco
anos, também queriam uma fenda no arame farpado que os separava da
liberdade e da riqueza ocidentais. Há razões de cultura política.
Ao contrário das democracias ocidentais, que sempre se habituaram a
viver com a diferença, as sociedades de Leste são muito mais
homogéneas. Ninguém quereria imigrar para lá no passado, nem isso
seria permitido. Mas não são certamente os únicos. A Dinamarca
corta as vias de acesso à Suécia, o segundo país mais desejado,
sem prestar contas a ninguém, servindo-se apenas do seu “opt-out”
neste domínio. E há ainda, entre os parceiros do Ocidente, uma
crítica mais ou menos audível para a qual o correspondente do
Guardian em Bruxelas, Ian Trayner, chama atenção: a forma
unilateral como Berlim toma as suas decisões. Quando decidiu repor
as fronteiras ou quando declarou morta a Convenção de Dublin sem se
dar ao trabalho de falar com os seus vizinhos. Os próximos dias
serão decisivos para ver se há ou não há a capacidade para uma
resposta europeia. Hoje, a paisagem política alterou-se
profundamente, com a presença cada vez mais forte dos partidos
nacionalistas e xenófobos. Como também escreve o Guardian, “os
europeus têm pena dos imigrantes mas também têm medo”. Ontem, o
vice-chanceler Sigma Gabriel disse que a “Europa se cobriu de
vergonha” ao não conseguir decidir sobre um plano que é da
responsabilidade de todos. António Guterres, que foi a Bruxelas
falar aos ministros europeus, lamentou profundamente a incapacidade
de decidirem seja o que for. Há 10 dias, numa entrevista ao PÙBLICO,
disse que se considerava optimista com a forma como as sociedades
europeias estavam a reagir ao drama dos refugiados. Acreditava que
acabariam por influenciar os respectivos governos. Ontem declarou-se
“chocado”, e avisou para o caos que a situação pode gerar.
3.O que fará agora
a chanceler? Lutará pelos princípios que enunciou ou render-se-á à
pressão do seu partido? Tem o mérito de ter colocado a questão no
seu devido lugar, tal como liderou a resposta europeia a Putin com
mão firme. Mas não chega abrir as portas aos refugiados. É preciso
ir às causas que os põem em fuga. O Estado Islâmico tem de ser
combatido, como fazem americanos, franceses e britânicos, mesmo que
com resultados muito modestos. E tem de haver uma forma de parar o
regime de Damasco. Os desafios europeus são hoje outros, muito mais
complexos. Não vão desaparecer tão depressa e a segurança tem um
preço, que a Europa terá de pagar.
Voltando a
Schengen, há o risco de matar de vez um dos pilares da identidade
europeia: a possibilidade de ir de Lisboa aos Bálticos sem ter de
parar numa só fronteira. Se a Europa não se entender sobre uma
política comum de asilo, se continuarem a prevalecer as respostas
nacionais, então as fronteiras acabarão por voltar. Seria um golpe
profundo.
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