Raul
Lino, o arquitecto contemporâneo
Bernardo D'Orey
18/9/2015, 20:30 /
OBSERVADOR
A propósito da
inauguração da exposição "Casa (na) Amadora, de Roque
Gameiro a Raul Lino, Vivência e Pensamento”, este sábado, o
comissário Bernardo D'Orey escreve sobre a importância do
arquiteto.
Raul Lino pode hoje
ser entendido desde que sejam tidas em conta três questões que têm
condicionado sua imagem no nosso mundo cultural.
A primeira tem a ver
com a sua obra escrita e a questão da casa portuguesa, surgida numa
época em que o país punha em causa a sua sobrevivência com vocação
autónoma, quer económica, quer cultural. Acusam Raul Lino de ser o
inventor e instigador do que chamam impropriamente a casa à antiga
portuguesa. A verdade reside no facto de Raul Lino defender a
arquitectura como “manifestação cultural, expressão plástica
perfeita que reflecte o tempo histórico a que serve de moldura.”
Escreve estudos de raiz doutrinária e estratégica procurando
encontrar novas expressões para o que de novo inventou mas também
para o que persiste em constituir a essência do habitar. Trabalha
essa vida inconsciente que atravessa os tempos e nos identifica como
homens singulares e, ao mesmo tempo, como pertença de um povo.
A história da
arquitectura de Lino, e bem assim a da arquitectura portuguesa, é a
história de um processo evocativo, espécie de celebração da
memória. A arquitectura é um processo de conhecimento que permite
diferenciar, afirmando factores de identidade colectiva num processo
de diálogo constante. Há momentos de ruptura mas sistematicamente é
retomado o “fio”, o passado está lá. A sua produção pode ser
dividida em fases de desenvolvimento com inquietações diferentes e
assim respostas diferentes, mas há constantes que se mantêm e
afirmam o estilo de Raul Lino. Este facto está expresso nos cerca de
700 projectos e obras que constrói e desenha durante a sua longa
vida.
Há ainda quem o
identifique como censor da arquitectura modernista e de estar ao
serviço da política de propaganda do Estado Novo. Raul Lino
afasta-se claramente dos princípios do Movimento Moderno de sentido
positivista, maquinal e internacional mas não é seu censor. O lugar
e a conciliação entre a arquitectura erudita e a tradição popular
são os paradigmas dos seus projectos. O seu lado inconformista faz
com que o processo de estudo seja infinito na busca do fazer bem.
Defende como valores seguros da arquitectura portuguesa nomes como
Cristino da Silva, Carlos Ramos (que foi desenhador no atelier do
próprio Raul Lino) Cotinelli Telmo e Jorge Segurado, todos eles
claramente ligados ao Movimento Moderno em Portugal. É consigo no
júri do prémio Valmor, em 1931, que pela primeira vez é premiado
um projecto de base racionalista. O edifício situa-se na Rua
Infantaria 16 em Lisboa e é da autoria dos arquitectos Miguel
Jacobethy Rosa e António Reis Camelo.
Na sua relação com
o regime político do Estado Novo, constatámos que Raul Lino só com
68 anos, em 1947, vê reconhecido, com o cargo de Director dos
Monumentos Nacionais, o seu valor profissional.
A arquitectura de
Raul Lino é assim a tentativa coerente de um Homem situado no seu
tempo, que procura a autenticidade dos seus gestos com fundamento nas
suas próprias raízes. A sua actividade como designer, cenógrafo e
programador cultural é também tema de discórdia. A sua produção
artística não se limita a projectos de edifícios. Inclui o design,
particularmente o design de mobiliário e gráfico, e ainda a
cenografia nomeadamente no teatro São Carlos onde trabalha com
Almada Negreiros e a programação cultural, principalmente para o
cinema Tivoli onde passa entre outros Fritz Lang e Chaplin. Nestas
actividades consegue fugir aos constrangimentos próprios da
arquitectura, mantendo a expressão de conceitos como método e tem
ainda a oportunidade de conhecer vários países do Mundo (em 1911
passa 6 meses em Berlim onde nas suas próprias palavras “exercitei
as artes aplicadas” sendo inclusivamente actor nas encenações de
Max Reinhard.
Nos projectos de
arquitectura desenha tudo, desde a escala territorial até à escala
da mão. Do mobiliário aos puxadores das portas, dos tecidos aos
papéis de parede tudo é desenhado em função do todo, num caminho
de coerência na busca da surpresa admissível. Nas suas produções
cenográficas, do guarda-roupa aos cenários, tudo é pensado como um
todo de intencionalidade poética. A adesão aos princípios
românticos fica evidente neste pensar tudo e tudo estar em relação
a tudo. Nada se basta a si mesmo e tudo remete. Cada parte indica o
todo e o todo exibe-se nas partes.
A vida de Raul Lino
e a obra de Raul Lino, enraizadas numa hierarquia de valores, são
uma única realidade. Raul Lino teve a coragem de viver a vida que a
arquitectura lhe exigiu. Por isso a sua obra continua disponível
para dialogar connosco. Raul Lino é história no mundo, um fragmento
relacionável mas com autonomia. Sei que não “é possível
distinguir entre a sua vida e a sua arquitectura e que os infinitos
obstáculos que sempre encontrou e superou são também os traços
comuns da sua escrita.”
Assim consigamos
compreender o que Raul Lino continua a anunciar porque em síntese
escrever e desenhar manifestam a mesma realidade. Os fundamentos da
sua arquitectura revela-se na economia – As suas acções
territoriais têm um fundamento de sustentabilidade nomeadamente na
relação que estabelecem com a Natureza como tema fundador. Os
projectos constroem-se a partir das informações contidas no sítio,
usando o desenho como instrumento de pesquisa. Constroem-se assim
lugares de articulação que incorporam as escolhas do arquitecto.
Os edifícios
demarcam-se da Natureza mas emergem dela, fazem parte de um todo
sistemático. Raul Lino consegue preservar a relação indescritível
entre o gesto humano e a estrutura do Mundo. Elege a natureza como a
nossa casa verdadeira. Revelam-se ainda na beleza – Há de maneira
sistemática, a construção de uma narrativa espacial com jogos de
transições e articulações potenciadas pelos jogos de escala e
proporção, e pelo uso expressivo da luz. E por fim revelam-se na
solidez – O uso dos diferentes materiais como expressão de
intenções espaciais, ou seja, como instrumentos de comunicação
sensorial dos níveis de intimidade, na construção de mundos
familiares.
Hoje e a partir de
Raul Lino podemos enunciar como fundamentos operativos do processo de
fazer arquitectura a percepção na qual o espaço arquitectónico
vai caracterizar-se a partir da hierarquia de articulações que o
arquitecto, pela sua leitura particular do programa e do sítio, vai
incorporar no projecto. A arquitectura é assim uma arte. Acontece
com a obra de arte o que acontece com cada um dos homens. A
individualidade é vivida no interior do mundo humano. Cada homem é
fonte de sentido, berço da obra de arte. A história colocando cada
obra num determinado tempo e num determinado espaço. O fundamento é
o indivíduo porque é no seu corpo que se dá o mistério da
consciência, pelo desenvolvimento do sentir. É ai que nasce a
história, é ai que surge o sentido. E ainda a expressão porque uma
sociedade justa constrói-se com indivíduos livres atuando em função
das suas convicções. A defesa da liberdade é condição primeira,
fundada na educação e no rigor, como fundamentos da sua
possibilidade. A única lei verdadeira é a que nos permite ser
livres.
Todo o acto de
conhecer é um gesto de desvelamento. É o que acontece com o
aparecer de toda a obra de arte. A angústia do arquitecto está na
procura do fundamento do seu gesto, “na tentativa de mostrar como
as coisas nascem no seu corpo.” Num texto, seja ele escrito ou
desenhado, o leitor só lá consegue encontrar aquilo que da sua vida
ele próprio aí deposita. As pedras são mudas, mas objectivamente,
gritam, se houver um Homem que consiga decifrar a sua linguagem. E
toda a linguagem fecunda é sempre indirecta. É necessária empatia
para ouvir as vozes da Arquitectura de Raul Lino.
Arquitecto, Prof.
auxiliar na Faculdade de Arquitectura da Univ. Lusíada de Lisboa.
Comissário Geral da Exposição “Casa (na) Amadora, Vivência e
Pensamento, de Roque Gameiro a Raul Lino”
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