Putin
emerge do seu isolamento como mediador inevitável para a paz na
Síria
O
Presidente da Rússia vai falar nas Nações Unidas pela primeira vez
em dez anos. Com tropas no terreno, qualquer solução tem agora de
passar por ele
Para
Putin não há alternativa a Assad, sob pena de a Síria cair na
mesma situação da Líbia, “onde todas as instituições do Estado
estão desintegradas”
Félix Ribeiro / 28-9-205 /
PÚBLICO
Quando Vladimir
Putin tomar hoje o palco da Assembleia Geral das Nações Unidas, não
o fará como o pária da diplomacia internacional ou o agressor
mais-ou-menos oculto do Leste da Europa, como até há pouco tempo
era encarado pelos líderes ocidentais. O Presidente russo saiu do
isolamento internacional em que foi posto depois da anexação da
Crimeia e da sua intervenção na Ucrânia. É agora uma figura
incontornável nos destinos da sangrenta guerra na Síria e uma peça
fundamental para um seu fim. E será encarado como tal por um
Ocidente que pouco fez, e pouco sabe o que fazer, para solucionar um
conflito que matou à volta de 240 mil pessoas, fez quatro milhões
de refugiados e seis milhões de deslocados.
Kobani, no Norte, é
um dos poucos casos de sucesso da coligação. Apoiou os curdos
contra o Estado Islâmico, mas a cidade ficou devastada
A Rússia entrou com
estrondo no palco da diplomacia internacional ao posicionar-se
militarmente na Síria, no início do mês. Para surpresa dos Estados
Unidos e da Europa, o Kremlin começou a reconstruir a sua base aérea
em Latakia, na costa do Mediterrâneo, e a preparar a “primeira
fase” da sua intervenção. Em poucas semanas, a Rússia enviou
centenas de militares para apoiar Assad — em breve serão 2000 —,
tem já dezenas de caças, tanques modernos e sistemas antiaéreos.
Moscovo faz mais do
que sair do isolamento ao enviar tropas para a Síria. Assume-se
também como intermediário de poder na região, reforçando o papel
do aliado Irão e colocando-se ao mesmo nível que os Estados Unidos.
É algo que se torna evidente na transformação do diálogo
internacional que causou. Barack Obama, que quis isolar Putin desde a
anexação da Crimeia e que desde então só teve um contacto
telefónico com ele, aceitou encontrar-se hoje com o líder russo. Os
dois exércitos, também em silêncio desde 2014, retomaram contactos
para garantirem que não se enfrentam acidentalmente no espaço aéreo
sírio.
Mas na Síria, é o
Irão, e não a Rússia, quem mais sustenta militarmente o regime de
Assad. Qualquer solução para o conflito teria de passar sempre por
Teerão e a intervenção de Putin está sublinhá-lo. O secretário
de Estado norte-americano, John Kerry, tinha ontem encontro marcado
com os homólogos da Rússia e Irão, especificamente para discutir a
estratégia para a Síria. Um avanço importante, já que Washington
afastou no passado a possibilidade de o Irão fazer parte de um fim
negociado do conflito. Parece ser inevitável. Ontem, o Governo
iraquiano anunciou a criação de um gabinete de guerra contra o
Estado Islâmico coordenado por Bagdad, Moscovo e Teerão. Vão
partilhar informações sobre os extremistas.
Falhanço do
Ocidente
Foi o Ocidente quem
estendeu a passadeira para a iniciativa russa e iraniana. A resposta
dos Estados Unidos e Europa à guerra na Síria tem sido, no melhor
dos casos, ineficaz. Os bombardeamentos da coligação ao Estado
Islâmico na Síria e Iraque não conseguiram evitar alguns avanços
do grupo extremista — sobre Palmira, por exemplo —, embora
pareçam ter evitado uma expansão mais agressiva. As bombas
ocidentais mataram à volta de 8000 jihadistas, em pouco mais de um
ano. Mas não sem consequências graves. Morreram entre 150 a 460
civis nestes bombardeamentos, segundo estimativas de grupos que
monitorizam o conflito.
Só os curdos no
Norte da Síria têm conseguido avanços importantes contra os
jihadistas. Mas estes têm uma aliança tácita com a administração
de Assad e estão mais interessados em preservar os seus projectos de
autonomia do que em participar num futuro político em Damasco. Os
grupos rebeldes moderados, que os Estados Unidos esperavam armar e
treinar na Síria contra o Estado Islâmico, são uma ilusão. Quem
tem mais poder no terreno são os extremistas, que absorveram parte
da oposição moderada.
A Divisão 30, nome
dado ao primeiro grupo de rebeldes treinados e equipados pelos
americanos a custo de 500 milhões de dólares, foi capturada ou
transformada em rede jihadista. Há duas semanas havia apenas “quatro
ou cinco” deles em combate na Síria, segundo admitiu o próprio
Pentágono, embora já tenham entrado mais algumas dezenas de
paramilitares no país desde então. Mas mesmo estes últimos
sofreram um revés, na semana passada, ao terem de oferecer um quarto
do seu armamento norte-americano à poderosa célula da Al-Qaeda na
Síria, a Frente al-Nusra, a troco de não serem capturados.
E Assad?
A chegada de dezenas
de milhares de refugiados sírios às costas europeias está a
destruir a ilusão de que o mundo ocidental pode decidir o conflito
sírio à distância. Mas nem por isso Washington se prepara para
abandonar a linha de acção: no início do mês, o New
York Times noticiava
que estava em calha um novo plano de treino de rebeldes, em maior
número, “melhor equipados e mais motivados”.
A entrada em força
da Rússia no conflito sírio está a acelerar a transformação de
Assad aos olhos do Ocidente. É uma mudança gradual, mas evidente.
Os governos que antes exigiam a saída imediata do ditador sírio,
antes de qualquer processo de negociação de paz, admitem agora que
Assad faça parte de uma plataforma de transição. Segundo a BBC, o
primeiro-ministro britânico, David Cameron, vai a Nova Iorque dizer
isso mesmo. A Alemanha partilha a mesma ideia e até os Estados
Unidos já são menos severos. A França apelará sozinha durante a
Assembleia Geral para que o Presidente sírio saia imediatamente do
poder. Mas até o Presidente turco, e velho rival de Assad, Recep
Tayyip Erdogan, admitiu ontem que Assad pode fazer parte da transição
de poder.
O objectivo do
discurso de Putin é mudar o compasso para o Estado Islâmico e
desviá-lo da imagem do ditador sírio. Continua a ser Assad,
com os seus
repetidos ataques indiscriminados a zonas residenciais, armas
químicas e bombas-barril, o principal responsável pela mortandade
da guerra na Síria. Rússia e Irão podem abrir mão do ditador no
futuro, mas, por enquanto, não admitem perder o seu foco de poder na
região. Putin deve dizer nas Nações Unidas o que afirmou numa
entrevista a televisões norte-americanas, emitida ontem: não há
alternativa à administração de Assad, sob pena de o país cair na
mesma situação da Líbia, “onde todas as instituições do Estado
estão desintegradas”.
É a primeira vez
que o Presidente russo fala na Assembleia Geral em dez anos. Antes
dele, ainda durante a manhã, será Obama quem tomará o palco. Terá
sobre si o convite do Presidente russo para criar uma “frente
coordenada” contra o Estado Islâmico na Síria. É um convite que
implica aceitar que, pelo menos num futuro próximo, Assad é uma
inevitabilidade.
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