terça-feira, 22 de setembro de 2015

Wolfsburg. Como vivem os portugueses na capital do império Volkswagen


Wolfsburg. Como vivem os portugueses na capital do império Volkswagen
JOSÉ CABRITA SARAIVA
22/09/2015 / Jornal i online

Partilham casas para quatro, encontram-se ao fim da tarde para beber uma cerveja e não dão “uma para a caixa” em alemão. Um português que está empregado em Wolfsburg conta ao i a sua vida na cidade e como é por dentro a casa-mãe do grupo VW.
Em Wolfsburg, todos os caminhos vão dar à Volkswagen. As icónicas chaminés da antiga fábrica, construída entre 1938 e 1939, constituem uma referência urbana equivalente aos antigos campanários das igrejas. Vêem-se de toda a parte e lembram-nos que a cidade nasceu e cresceu em função da fábrica.
De acordo com um levantamento recente, trabalham na casa-mãe da Volkswagen 58 mil pessoas – 3 mil das quais em regime temporário – provenientes dos mais diversos países. Além dos alemães, há checos, polacos, eslovenos, eslovacos, italianos, letões ou cazaques. Mas também há espanhóis e portugueses. A quase totalidade destes vem da Autoeuropa (a fábrica da Volkswagen em Palmela) e está na linha de montagem a substituir colegas que se encontram de férias. Em vez de contratarem pessoas a quem teria de ser dada formação, os responsáveis vão buscar funcionários a outras unidades da marca.
Quando chegam a Wolfsburg, os trabalhadores assinam um acordo de confidencialidade em que se comprometem a não revelar aquilo que viram no interior da fábrica. “Como todos os projectos da Volkswagen saem daqui, somos obrigados a assinar um documento em que prometemos sigilo completo, para evitar a espionagem industrial”, conta ao i Fernando Silva (nome fictício), um dos cerca de 160 portugueses que estão neste momento a trabalhar na fábrica alemã.
As fotografias no interior também estão proibidas. “As câmaras dos telemóveis, nas épocas de lançamentos, como agora, são tapadas com um selo”, explica o operário. Pode-se usar a câmara no exterior – o que implica quebrar o selo e tirar a cola que fica agarrada à objectiva – mas, antes do regresso ao trabalho, é obrigatório apresentar novamente o telemóvel para voltar a ser tapado. Ser apanhado com um telemóvel sem selo dá direito a um processo disciplinar.
A grande maioria dos portugueses que vão trabalhar para a fábrica de Wolfsburg ficam alojados num bairro da Volkswagen. Vivem em grupos de quatro por apartamento – cada um tem direito ao seu quarto e há uma cozinha, uma casa de banho e uma zona de estar comuns. “Algumas pessoas chateiam-se, outras não”, comenta Fernando. Aqueles que ficam por períodos mais prolongados ou querem trazer as famílias para junto de si, por vezes, alugam casas maiores, mas o preço dos arrendamentos “está inflacionado por causa da procura dos trabalhadores da fábrica”.
A cidade mais rica da Alemanha Situada no norte da Alemanha, a 230 km de Berlim, a cidade de Wolfsburg foi fundada a 1 de Julho de 1938. Destinava-se a albergar os trabalhadores da fábrica que iria produzir o “KdF-Wagen”, o “carro do povo” encomendado por Adolf Hitler ao designer Ferdinand Porsche. Mas estes planos seriam frustrados pelo advento da II Guerra: entre 1939 e 1945, a fábrica produziu exclusivamente material bélico. Só a partir de 1945, sob o controlo do Exército Britânico, se tornaria uma empresa comercial. Dez anos depois, em 1955, já tinham saído daquelas instalações um milhão de Carochas. O popular modelo foi produzido até 1974. Em 1976 nascia um novo caso de sucesso: o Golf.
Hoje, graças à fábrica da Volkswagen, Wolfsburg é a cidade com o mais elevado PIB per capita da Alemanha (cerca de 100 mil euros). E também – sem surpresa – a que tem um maior rácio de automóveis: 140 mil carros para 120 mil habitantes (dos quais 20 mil são menores e, por isso, não conduzem).
“É uma cidade com grandes parques, espaços amplos, bem arranjada. Tudo gira à volta da fábrica: as piscinas são da VW, o estádio é da VW, o planetário é da VW e há museus da VW. A própria fábrica tem duas centrais que geram a energia da cidade toda”, descreve Fernando. Wolfsburg conta ainda com um centro de ciência ultramoderno, da autoria da arquitecta britânica nascida no Iraque Zaha Hadid, e a Autostadt, uma espécie de parque temático dedicado ao mundo dos automóveis. Pessoas de toda a Europa deslocam-se ali para adquirirem automóveis da marca. Sejam quais forem as especificações desejadas, o cliente tem o modelo disponível para entrega imediata e pode testá-lo em pistas próprias para o efeito.
“O organismo tem de estar sempre a adaptar-se” O dia-a-dia dos portugueses na cidade da Volkswagen depende muito do turno que calha em sorte a cada um. A casa-mãe labora 24 horas por dia. “Esta fábrica é muito flexível em termos de horários. Há tempos fizeram um levantamento do número de turnos: são mais de 130 diferentes”, revela Fernando, que no dia da nossa conversa entrou ao serviço às 6 da manhã. “Basta-me acordar às 5h10”, explica. “Já tenho tudo preparado – no dia anterior tomo o banho e preparo um lanchinho. É só dar um jeito ao cabelo, vestir a farda e arrancar.”
A linha de montagem pára de duas em duas horas: às oito, para uma pausa de 15 minutos, e às dez para a pausa de meia hora. “É a pausa para o meu almoço, mas obviamente não vou almoçar às dez. #O meu almoço é ir comendo ao longo do dia. Passo numa das cantinas e como uma salsicha ou um hambúrguer. Nem vem no pão, é só a carne.” O arroz ou a salada pagam-se à parte. “Eles não têm tradição de comer um prato, como nós.”
Mas o mais difícil, para Fernando, é fazer o primeiro turno da noite, entre as 22h00 e as cinco e meia da manhã. “Nesses dias chego a casa às seis da manhã e como qualquer coisa. Depois fecho os cortinados para fingir que é de noite, só que lá fora está o dia a começar e eu fico sem sono. Muitas vezes só adormeço às dez. O corpo tem de estar sempre a adaptar-se a um novo horário e isso é muito desgastante para o nosso organismo.”
Em circunstâncias normais, quando lhe calha o turno de dia, Fernando reúne-se ao fim da tarde com os colegas portugueses. “Encontramo-nos para beber uma cervejinha. Depois combinamos e vamos em grupos mais pequenos ao supermercado. Outras vezes jantamos fora, só homens, mas fazemos alguma algazarra e os alemães não gostam disso”, confessa. Os dias de folga podem ser passados numa das piscinas públicas da cidade. “Há três grandes piscinas, uma delas com ondas. Por três ou quatro euros ficamos lá o dia todo e divertimo-nos imenso.” Mas só no Verão, claro – pois em Janeiro e Fevereiro a temperatura média ronda os zero graus.
Curiosamente, os portugueses que estão a trabalhar temporariamente em Wolfsburg não falam alemão. Fernando diz que só sabe “umas palavrinhas”, enquanto os seus colegas que ali se encontram há mais tempo (dois ou três anos) “não dão uma para a caixa”. Normalmente é o colega que fala melhor inglês que faz de porta-voz do grupo.
“Na Autoeuropa há mais rigor” E como é o ambiente no interior da maior fábrica de automóveis do mundo? Impera o rigor alemão? Nem por isso. “O ritmo aqui não é muito intenso”, descreve Fernando. “Eles estão muito descontraídos no trabalho. Na Autoeuropa há mais pressão. Aqui, o chefe não nos diz nada.” #E isso reflecte-se na qualidade dos carros que saem da fábrica? “Obviamente. Em termos de acabamento e de rigor, esta fábrica deixa muito a desejar.”
Outro dado curioso é que, enquanto na fábrica de Palmela todos cumprem o uniforme à risca (calças azuis, pólo branco e botas de biqueira de aço), na Alemanha há mais liberdade. “Aqui é um bocado bandalheira”, comenta Fernando. “Uns vestem de vermelho, outros de branco, outros vêm com a camisola da abelha maia, outros vêm de ténis Nike. Até há quem ande com as calças arregaçadas até ao joelho, como se fossem para a praia.”
O espírito alemão emerge à superfície sobretudo nos momentos de pausa. “Enquanto nós ficamos a conversar, eles pegam num livro e passam os 15 minutos a ler, descansados. E não gostam de ser interrompidos. Eles falam uns com os outros é durante o trabalho.”
Também há quem aproveite as pausas para se dedicar a outros pequenos prazeres. Ou vícios. “Existem casinhas de fumo, dentro dos pavilhões onde se trabalha, mas aquilo não tem condições nenhumas: cinzeiros cheios, paredes amarelas, o exaustor não funciona. A pessoa nem precisa de fumar, basta respirar. Parece uma câmara de extermínio [risos].”

Um destes dias, Fernando reparou que estava a ser ultimada uma dessas casinhas. Mas algo não batia certo: já havia naquela ala da fábrica uma sala de fumo. Intrigado, foi falar com os funcionários que estavam a acabar de pintar a obra para saber qual o seria o seu uso. A resposta surpreendeu-o. “Disseram-me que aquilo é uma sala para os muçulmanos rezarem. Segundo o que se ouve por aí, havia pessoal que chegava a uma certa hora, trazia o tapete para o chão, virava--se para Meca e começava a rezar.” Estas paragens súbitas comprometiam o trabalho colectivo e deixavam os outros colegas na linha de montagem furiosos. “Para que estes confrontos não se repitam”, explica Fernando, “os responsáveis mandaram construir aquela salinha para eles rezarem. É como uma pequena mesquita para os operários muçulmanos.”

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