“O
PARADIGMA DA PRIMAZIA ABSOLUTA DOS DIREITOS HUMANOS ESTÁ A
DESFAZER-SE”
Christos
Yannaras O filósofo grego considera que estamos numa fase de final
de ciclo: “O paradigma da primazia absoluta dos direitos do
indivíduo está a desfazer-se”
“Quando
a economia se autonomiza em relação à sociedade, quando a política
se autonomiza, isto significa que a sociedade não pode ir mais além.
É uma crise de vida ou morte”
“O
Norte calvinista contra o Sul católico.”
Maria João
Guimarães, em Atenas / 19-9-2015 / PÚBLICO
Christos Yannaras,
filósofo e colunista do diário Kathimerini (conservador),
recebe-nos no seu gabinete em Atenas para descrever a situação
política da Grécia, que é um “pesadelo”. Os partidos com
hipótese de vencer as eleições amanhã estão presos ao mesmo
programa. Exigências que, sublinha, com as sobrancelhas antes
afáveis a marcar agora uma expressão grave, são “impossíveis de
cumprir a priori”. Como vê a situação política actual na
Grécia? Tenho a sensação de que Alexis Tsipras [antigo
primeiro-ministro e líder do Syriza] tem talento. Não só pela
palavra mas por pensamento político. Por outro lado, é uma pessoa
que não tem maturidade social, e pertence a um domínio ideológico
e político que sempre foi muito estreito. Mas é preciso ver que foi
alvo de uma agressividade da parte da União Europeia verdadeiramente
extraordinária. Foi a primeira vez que um político no Governo no
quadro da União Europeia sofreu deste modo tanta agressividade. É
um escândalo. Isso foi evidente com a assinatura do terceiro
empréstimo? Os outros países poderiam ter reagido perante esta
situação que foi verdadeiramente uma provocação. Quer dizer que
cada povo não tem o direito de decidir qual será o seu governo. É
um totalitarismo terrível. Depois da queda da União Soviética,
vivemos agora um totalitarismo capitalista que não tem limites. Para
muitos cidadãos gregos, esta situação é reveladora: revela a
realidade da Europa de hoje. E há a ideia da moral de trabalho do
Norte contra o Sul, que dá prioridade às alegrias da vida. Um
artigo do ministro da Economia de França, [Emmanuel] Macron, tinha
como título: “O Norte calvinista contra o Sul católico.” É um
artigo de um ministro da Economia de França! Como lidar com uma
situação em que um modelo económico não funciona? [interrompe] É
um falhanço total. Pedem-nos coisas impossíveis, a priori. Porque a
economia deste país está em catástrofe. Exigem isto, suponho, para
apagar este perigo, entre aspas, de um governo de esquerda na União
Europeia. Os pormenores desta história são terríveis. Não sei o
que vai acontecer. E com estas eleições não há esperança: de uma
parte, todos os partidos estão submetidos à vontade de factores que
dirigem a política europeia, a priori, e por outro temos os
extremistas, de direita e esquerda, em quem não se pode confiar. Não
se pode prever o que vai acontecer e a angústia é muito grande.
Como se vota quando tudo muda a cada vez? Quando votar Syriza num ano
quer dizer uma coisa e noutro outra, o mesmo para a Nova Democracia,
o Pasok. [risos] É muito, muito difícil. É preciso ter uma
maturidade e informação muito completa, para votar em alguém que
há dois anos dizia uma coisa diferente do que diz hoje. Digo
maturidade porque é preciso compreender o que se passou na União
Europeia, todas estas noites de conversações entre a Grécia e a
Europa, como houve um presidium de desconhecidos na Europa Ocidental
que decidiu que partidos poderiam ser aceites na União Europeia e
que partidos não. Isto é um pesadelo. Nas eleições de 2012 tinha
esperança nas forças pró-europeias. E agora? A única esperança é
que uma parte da população acorde com uma outra consciência
política, e não só política, histórica e cultural. O que
significa o que nos pede a Europa? Hoje vivemos a realidade europeia
com uma hegemonia absoluta da Alemanha. O que significa a Europa, a
cultura da Europa? A Europa não é apenas uma possibilidade de
produção. São as suas universidades, as culturas diferentes de
cada país — o uniformismo não pode representar a Europa. A este
nível, a única esperança é ver a realidade de outro modo. Mas
isto não é realista, isto pressupõe tempo. Neste momento há quem
diga que, se os políticos não podem fazer nada, caberá aos
indivíduos fazer. Como? A população está na miséria. Isso é
muito visível. Desculpe mencionar aqui o meu próprio caso pessoal —
estive na universidade 30 anos e a minha reforma foi cortada em 60%.
Mesmo o que nós chamamos a classe burguesa passa por uma miséria...
somos profundamente infelizes, não podemos ter a dignidade
necessária para sermos cidadãos. Tudo isto deita por terra a teoria
de que os ciclos políticos se sucedem trazendo progresso? Penso que
estamos numa fase decisiva que nos levará ao fim de um ciclo
político. Tenho mesmo a sensação de que — e sei que é uma
grande palavra — o paradigma actual está em vias de se desfazer.
Quando a economia se autonomiza em relação à sociedade, quando a
política se autonomiza, isto significa que a sociedade não pode ir
mais além. É uma crise de vida ou morte. E isto leva, creio, ao
desaparecimento do nosso paradigma actual — quando digo paradigma,
refiro-me àquele formado pela filosofia das luzes, à primazia
absoluta dos direitos do indivíduo, tudo isso. Ninguém nos pode
dizer quando esta desorganização será completa, e que espécie de
paradigma virá. Muitas pessoas têm evocado a História, por exemplo
na questão dos refugiados.
Esquecemos a História?
Sem dúvida. Já
vimos na história da Europa casos
parecidos, de chegada de um grande número de pessoas. Mas desta vez
tem um carácter especial, porque o que se passa resulta de falhas
políticas muito grandes. Isso provoca reacções psicológicas que
não sabemos como irão acabar. Qual poderá ser o papel de um
filósofo grego neste momento difícil? Há um dever, uma
necessidade, de testemunhar a realidade, de perceber que os nossos
problemas, a nossa crise, da Europa, não é uma crise económica. É
uma crise do sentido da vida, da qualidade. Hoje, na Grécia, não há
outra possibilidade, nenhuma outra qualidade de vida, que não seja o
consumo. A amizade, o amor, a cultura, a expressão artística, tudo
isto é uma construção sobre a realidade, e a realidade é apenas
económica. Um filósofo pode testemunhar que a vida não acaba na
economia. Há outras possibilidades.
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