ANÁLISE
Há um outro vírus
a infectar a Europa
O que sabemos
hoje é que o que há de comum a todas as formas de anti-semitismo e de xenofobia
é o mesmo vírus do nacionalismo, que regressou à Europa para cumprir a profecia
de Mitterrand e de Kohl: “O nacionalismo é a guerra.”
TERESA DE SOUSA
1 de Março de
2020, 6:05
1. Preocupados
que estamos, e com razão, com o coronavírus, menos atenção teremos prestado a
um outro vírus que se dissemina na Europa e que foi particularmente notório
durante o Carnaval, talvez porque as pessoas se sintam mais à vontade para
tirar a máscara e revelar-se tal como são. Na Bélgica, esse país que vive há
nove meses sem governo, a cidade de Aalst (Flandres) resolveu reincidir numa
estranha demonstração de anti-semitismo, escolhendo como figura principal do
desfile de Carnaval a caricatura do velho usurário judeu, de longas barbas e
nariz adunco, suportada por um corpo de insecto. Reincidiu porque, no ano
passado, ao escolher o mesmo tema para as suas famosas festas de Carnaval, cuja
tradição remonta ao século XV, viu a UNESCO suspender a classificação de
Património Cultural Imaterial da Humanidade atribuída à cidade.
“É Carnaval, não nos ralamos, apenas queremos
divertir-nos”, disse um jovem de 24 anos, que participou na parada vestido a
rigor. O presidente da Câmara de Aalst justificou a escolha por ser a favor da
liberdade de expressão e do direito a gozar com toda a gente. É verdade que não
foram apenas os judeus. Crianças de rosto pintado de negro dançaram ao som da
música Hakuna matata, enquanto outras, pintadas de amarelo, imitavam chineses
portadores do coronavírus. Em Antuérpia, não houve corso dedicado aos judeus,
mas muita gente resolveu envergar o mesmo disfarce carnavalesco, alegadamente
para contestar a decisão da UNESCO. “É a resposta a quem se mete com Aalst.”
A controvérsia
aprofundou ainda mais a linha divisória entre os nacionalistas flamengos, que
dominam as eleições regionais, e os francófonos, dificultando as negociações
para formar um governo federal. A primeira-ministra em exercício, Sophie
Wilmès, cuja mãe é judia, acusou o líder do partido da direita nacionalista da
Flandres (N-VA) de manchar “os valores e a reputação” do país. Em 2013, o corso
de Carnaval incluiu representações dos SS nazis. O N-VA (New Flamish Alliance),
que governa a cidade em coligação com o partido de extrema-direita Vlaams
Belang, justifica-se com a tradição da cidade como “a capital do humor e da
sátira”. Uma sondagem recente realizada pela Anti-Defamation League (Nova
Iorque) revelava que 24% dos inquiridos belgas tinham “atitudes anti-semitas”.
2. O caso não é
único na Europa. Multiplicam-se em alguns países as acções violentas contra
judeus e há uma nova falta de pudor na sua estigmatização, muitas vezes vinda
de onde menos de esperaria. O Labour de Jeremy Corbyn foi acusado de atitudes
anti-semitas, que ele próprio reconheceu, recusando-se, no entanto, a pedir
desculpa. É uma espécie particular de anti-semitismo, própria de alguma
esquerda, que teima em atribuir aos judeus os actos cometidos pelo Governo de
Israel. Esta mistificação esteve, há já alguns anos, na base de um surto de
anti-semitismo de origem islâmica, que acabou por esmorecer quando os
imigrantes islâmicos perceberam que o anti-islamismo xenófobo era o perigo
maior que enfrentavam.
A Alemanha vive
uma profunda crise política desencadeada pela emergência de um partido de
extrema-direita nacionalista e xenófobo que é hoje a terceira força no
Bundestag. Ainda todos temos presente o ataque terrorista contra dois cafés de
Hanau, perto de Frankfurt, frequentados por muçulmanos, que provocou 11 mortos
e que foi atribuído a um alemão que professava abertamente a ideologia da AfD.
Em Outubro do ano passado, no dia do Yom Kipur, um homem com uma espingarda
automática só não provocou um massacre numa sinagoga em Halle porque a
segurança foi eficaz. Acabou por matar duas pessoas na rua. Em Junho, um
dirigente da CDU foi abatido a tiro, não se encontrando outra explicação a não
ser a sua defesa da política de abertura aos refugiados da chanceler. O ódio
racial é um veneno que alastra com enorme facilidade, como não se cansa de
avisar Angela Merkel.
A passagem do
75.º aniversário da libertação de Auschwitz foi um momento para reflexão, num
país que continua às voltas com o seu passado. Há, no entanto, duas correntes
distintas sobre a forma como deve ser encarado, que se prolongam no tempo com
maior ou menor expressão. Para parte da elite, o Holocausto deve continuar a
marcar a sociedade alemã e a forma como se relaciona com o mundo. Não no
sentido do pacifismo tradicional, mas no sentido da responsabilidade perante os
outros, nomeadamente na Europa. Foi a linha defendida intransigentemente por
Joschka Fischer na senda da herança de Kohl. E há outra, que põe a tónica na
“normalização” e que emergiu depois da reunificação, quando Gerhard Schroeder,
contrariando o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, declarou a Alemanha “um
país normal”. Obviamente, ninguém aprova o Holocausto, como explica ao PÚBLICO
a historiadora alemã Stefanie Schüler-Springorum (“O novo e o velho
anti-semitismo na Alemanha”, 8/9/19). O que as pessoas dizem é que “os judeus
têm demasiado poder ou dinheiro” ou que “não são alemães”. A mesma historiadora
refere que o que é novo é que as pessoas começam a falar mais alto porque o
discurso global da sociedade “virou à direita, numa direcção nacionalista”. Já
não existe um tabu. A ideia da Alemanha também como vítima ganha terreno, como
se viu recentemente no aniversário dos bombardeamentos de Dresden pela aviação
aliada.
Em França, onde a
comunidade judaica é pequena em comparação com a que existia antes da guerra,
mesmo que Marine Le Pen tenha tentado apagar os traços mais violentamente
anti-semitas que herdou do pai, o fundador da Frente Nacional, o anti-semitismo
manifesta-se das mais variadas maneiras – o que é praticado pelos radicais
islâmicos ou pelos detractores do Estado de Israel, e o anti-semitismo
histórico, esse sentimento incompreensível que fazia facilmente de um judeu
francês o alvo do ódio irracional dos seus pares, como é magnificamente
descrito no J’accuse de Polanski, mesmo quando professado por pessoas que nos
parecem decentes.
3. Há uma
distinção entre o anti-semitismo islâmico, que quer varrer o Estado de Israel
da face da terra, e o anti-semitismo europeu, profundamente enraizado na
história da Europa, desde a Inquisição aos progroms que marcaram as sociedades
europeias (sobretudo a Leste) no século XIX e na primeira metade do século XX,
passando pelo mal absoluto do Holocausto e pela “colaboração” com a ocupação
nazi. Foi preciso esperar por Jacques Chirac para ouvir um Presidente francês
pedir perdão em nome da França pela perseguição aos judeus e o seu envio para
os campos de extermínio. A Polónia, onde o nacionalismo do PiS se instalou no
poder desde 2015, debate-se intensamente sobre o papel dos polacos na perseguição
e no extermínio dos judeus. O Governo quer fazer da Polónia uma vítima dos
nazis, sem qualquer responsabilidade pela morte de milhares e milhares de
judeus polacos durante a ocupação. A História e os factos que a sustentam
mostram o contrário.
4. Os velhos
demónios estão de regresso à Europa? Não vale a pena tirar demasiadas
conclusões, mas também não vale a pena ignorar os factos. As manifestações de
racismo e de intolerância ainda se manifestam principalmente contra as
comunidades islâmicas. Em muitos países, como na Áustria, a xenofobia latente
parte de mitos que não se sabe exactamente como surgem (as redes sociais são
uma boa explicação), mas que ganham vida própria, tal como acontecia com os
judeus. Uma maioria de austríacos pensa que os imigrantes representam cerca de
um terço da população do seu país, quando são apenas 8%.
O que sabemos
hoje é que o que há de comum a todas as formas de anti-semitismo e de xenofobia
é o mesmo vírus do nacionalismo, que regressou à Europa para cumprir a profecia
de Mitterrand e de Kohl: “O nacionalismo é a guerra.” Ou seja, a violência, a
intolerância, o racismo. Alimentados pela ignorância e pelo medo. A Europa
prepara-se para enfrentar um novo teste, medido pela sua capacidade de
enfrentar esta nova epidemia mundial que não respeita fronteiras ou etnias e
que reclama, pelo contrário, solidariedade e compreensão.
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