domingo, 1 de março de 2020

Há um outro vírus a infectar a Europa



ANÁLISE
Há um outro vírus a infectar a Europa

O que sabemos hoje é que o que há de comum a todas as formas de anti-semitismo e de xenofobia é o mesmo vírus do nacionalismo, que regressou à Europa para cumprir a profecia de Mitterrand e de Kohl: “O nacionalismo é a guerra.”

TERESA DE SOUSA
1 de Março de 2020, 6:05

1. Preocupados que estamos, e com razão, com o coronavírus, menos atenção teremos prestado a um outro vírus que se dissemina na Europa e que foi particularmente notório durante o Carnaval, talvez porque as pessoas se sintam mais à vontade para tirar a máscara e revelar-se tal como são. Na Bélgica, esse país que vive há nove meses sem governo, a cidade de Aalst (Flandres) resolveu reincidir numa estranha demonstração de anti-semitismo, escolhendo como figura principal do desfile de Carnaval a caricatura do velho usurário judeu, de longas barbas e nariz adunco, suportada por um corpo de insecto. Reincidiu porque, no ano passado, ao escolher o mesmo tema para as suas famosas festas de Carnaval, cuja tradição remonta ao século XV, viu a UNESCO suspender a classificação de Património Cultural Imaterial da Humanidade atribuída à cidade.

 “É Carnaval, não nos ralamos, apenas queremos divertir-nos”, disse um jovem de 24 anos, que participou na parada vestido a rigor. O presidente da Câmara de Aalst justificou a escolha por ser a favor da liberdade de expressão e do direito a gozar com toda a gente. É verdade que não foram apenas os judeus. Crianças de rosto pintado de negro dançaram ao som da música Hakuna matata, enquanto outras, pintadas de amarelo, imitavam chineses portadores do coronavírus. Em Antuérpia, não houve corso dedicado aos judeus, mas muita gente resolveu envergar o mesmo disfarce carnavalesco, alegadamente para contestar a decisão da UNESCO. “É a resposta a quem se mete com Aalst.”

A controvérsia aprofundou ainda mais a linha divisória entre os nacionalistas flamengos, que dominam as eleições regionais, e os francófonos, dificultando as negociações para formar um governo federal. A primeira-ministra em exercício, Sophie Wilmès, cuja mãe é judia, acusou o líder do partido da direita nacionalista da Flandres (N-VA) de manchar “os valores e a reputação” do país. Em 2013, o corso de Carnaval incluiu representações dos SS nazis. O N-VA (New Flamish Alliance), que governa a cidade em coligação com o partido de extrema-direita Vlaams Belang, justifica-se com a tradição da cidade como “a capital do humor e da sátira”. Uma sondagem recente realizada pela Anti-Defamation League (Nova Iorque) revelava que 24% dos inquiridos belgas tinham “atitudes anti-semitas”.

2. O caso não é único na Europa. Multiplicam-se em alguns países as acções violentas contra judeus e há uma nova falta de pudor na sua estigmatização, muitas vezes vinda de onde menos de esperaria. O Labour de Jeremy Corbyn foi acusado de atitudes anti-semitas, que ele próprio reconheceu, recusando-se, no entanto, a pedir desculpa. É uma espécie particular de anti-semitismo, própria de alguma esquerda, que teima em atribuir aos judeus os actos cometidos pelo Governo de Israel. Esta mistificação esteve, há já alguns anos, na base de um surto de anti-semitismo de origem islâmica, que acabou por esmorecer quando os imigrantes islâmicos perceberam que o anti-islamismo xenófobo era o perigo maior que enfrentavam.

A Alemanha vive uma profunda crise política desencadeada pela emergência de um partido de extrema-direita nacionalista e xenófobo que é hoje a terceira força no Bundestag. Ainda todos temos presente o ataque terrorista contra dois cafés de Hanau, perto de Frankfurt, frequentados por muçulmanos, que provocou 11 mortos e que foi atribuído a um alemão que professava abertamente a ideologia da AfD. Em Outubro do ano passado, no dia do Yom Kipur, um homem com uma espingarda automática só não provocou um massacre numa sinagoga em Halle porque a segurança foi eficaz. Acabou por matar duas pessoas na rua. Em Junho, um dirigente da CDU foi abatido a tiro, não se encontrando outra explicação a não ser a sua defesa da política de abertura aos refugiados da chanceler. O ódio racial é um veneno que alastra com enorme facilidade, como não se cansa de avisar Angela Merkel.

A passagem do 75.º aniversário da libertação de Auschwitz foi um momento para reflexão, num país que continua às voltas com o seu passado. Há, no entanto, duas correntes distintas sobre a forma como deve ser encarado, que se prolongam no tempo com maior ou menor expressão. Para parte da elite, o Holocausto deve continuar a marcar a sociedade alemã e a forma como se relaciona com o mundo. Não no sentido do pacifismo tradicional, mas no sentido da responsabilidade perante os outros, nomeadamente na Europa. Foi a linha defendida intransigentemente por Joschka Fischer na senda da herança de Kohl. E há outra, que põe a tónica na “normalização” e que emergiu depois da reunificação, quando Gerhard Schroeder, contrariando o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, declarou a Alemanha “um país normal”. Obviamente, ninguém aprova o Holocausto, como explica ao PÚBLICO a historiadora alemã Stefanie Schüler-Springorum (“O novo e o velho anti-semitismo na Alemanha”, 8/9/19). O que as pessoas dizem é que “os judeus têm demasiado poder ou dinheiro” ou que “não são alemães”. A mesma historiadora refere que o que é novo é que as pessoas começam a falar mais alto porque o discurso global da sociedade “virou à direita, numa direcção nacionalista”. Já não existe um tabu. A ideia da Alemanha também como vítima ganha terreno, como se viu recentemente no aniversário dos bombardeamentos de Dresden pela aviação aliada.

Em França, onde a comunidade judaica é pequena em comparação com a que existia antes da guerra, mesmo que Marine Le Pen tenha tentado apagar os traços mais violentamente anti-semitas que herdou do pai, o fundador da Frente Nacional, o anti-semitismo manifesta-se das mais variadas maneiras – o que é praticado pelos radicais islâmicos ou pelos detractores do Estado de Israel, e o anti-semitismo histórico, esse sentimento incompreensível que fazia facilmente de um judeu francês o alvo do ódio irracional dos seus pares, como é magnificamente descrito no J’accuse de Polanski, mesmo quando professado por pessoas que nos parecem decentes.

3. Há uma distinção entre o anti-semitismo islâmico, que quer varrer o Estado de Israel da face da terra, e o anti-semitismo europeu, profundamente enraizado na história da Europa, desde a Inquisição aos progroms que marcaram as sociedades europeias (sobretudo a Leste) no século XIX e na primeira metade do século XX, passando pelo mal absoluto do Holocausto e pela “colaboração” com a ocupação nazi. Foi preciso esperar por Jacques Chirac para ouvir um Presidente francês pedir perdão em nome da França pela perseguição aos judeus e o seu envio para os campos de extermínio. A Polónia, onde o nacionalismo do PiS se instalou no poder desde 2015, debate-se intensamente sobre o papel dos polacos na perseguição e no extermínio dos judeus. O Governo quer fazer da Polónia uma vítima dos nazis, sem qualquer responsabilidade pela morte de milhares e milhares de judeus polacos durante a ocupação. A História e os factos que a sustentam mostram o contrário.

4. Os velhos demónios estão de regresso à Europa? Não vale a pena tirar demasiadas conclusões, mas também não vale a pena ignorar os factos. As manifestações de racismo e de intolerância ainda se manifestam principalmente contra as comunidades islâmicas. Em muitos países, como na Áustria, a xenofobia latente parte de mitos que não se sabe exactamente como surgem (as redes sociais são uma boa explicação), mas que ganham vida própria, tal como acontecia com os judeus. Uma maioria de austríacos pensa que os imigrantes representam cerca de um terço da população do seu país, quando são apenas 8%.

O que sabemos hoje é que o que há de comum a todas as formas de anti-semitismo e de xenofobia é o mesmo vírus do nacionalismo, que regressou à Europa para cumprir a profecia de Mitterrand e de Kohl: “O nacionalismo é a guerra.” Ou seja, a violência, a intolerância, o racismo. Alimentados pela ignorância e pelo medo. A Europa prepara-se para enfrentar um novo teste, medido pela sua capacidade de enfrentar esta nova epidemia mundial que não respeita fronteiras ou etnias e que reclama, pelo contrário, solidariedade e compreensão.

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