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OPINIÃO
Frágil, delicada,
vulnerável
Dia após dia se
vai vendo que a democracia é um regime delicado. Mesmo se amada pelo povo, sem
instituições não vai longe. E sem regras também não.
ANTÓNIO BARRETO
1 de Março de
2020, 7:54
Há quem pense que
é robusta e sólida. Que resiste a tudo ou quase. E que, sendo amada e defendida
pelo povo, nada a põe em risco. Estamos a falar da democracia, claro!
Dia após dia se
vai vendo que é um regime delicado. Mesmo se amada pelo povo, sem instituições
não vai longe. E sem regras também não. Demasiado rígida, morre por falta de
flexibilidade. Excessivamente plástica, peca por dissoluta. Sem atenção nem
cuidados, com poucas tradições e menos costumes, a democracia é frágil. Com
muitas regras e burocracia a mais, afasta-se dos cidadãos.
O governo de
assembleia é uma das modalidades políticas que fazem parte dos universos
utópicos e dos devaneios de juventude. Pensa-se em Atenas ou em Roma, em vários
senados e em assembleias populares, nos estados gerais e na convenção. Apesar
de terem dado mau resultado, há sempre quem espere que um dia um angélico
governo de assembleia realizará a esperança democrática de quem sonha. Mesmo
sabendo que alguns dos melhores exemplos de governo de assembleia redundaram no
terror francês e soviético. O nosso querido Parlamento, no quadro inédito da
relação de forças políticas actuais, procura o seu caminho de assembleia. Os
grupos parlamentares arrogam-se direitos que não têm e querem fazer história.
Uns querem administrar o sistema financeiro e, para já, fixar custos e
comissões dos bancos. Outros pretendem desempenhar papel importante na
determinação do futuro aeroporto de Lisboa que já não se sabe onde é. Outros
ainda decidiram impedir que as linhas de metropolitano de Lisboa sigam um
plano, a fim de determinar um novo traçado. Um deputado barulhento e desordeiro
pensou que o Parlamento poderia por si só rever a Constituição e instaurar o
princípio de Talião no Direito Penal. Mas o Presidente da Assembleia Ferro
Rodrigues também não percebeu muito bem o seu papel e, ajudado por alguns
partidos, fez o que pôde para evitar que o deputado exibicionista desse nas
vistas e não lhe conceder a palavra nem a iniciativa. Com evidentes resultados
contraproducentes.
Da Assembleia da
República vieram também as leis sobre a “morte assistida”, cuja aprovação
comoveu a opinião e deu origem a reflexões estranhas sobre o referendo e a
democracia parlamentar ou directa. A opção pela aprovação desta lei por via
legislativa ou por referendo foi discutida com muito calor, mas igualmente com
enorme desprezo pela opinião dos eleitores. Estes são inteligentes para uns,
estúpidos para outros. Cultos e capazes de decisões racionais para uns e
totalmente incapazes e desprovidos de sensatez para outros. O que se deve ou
não referendar, o que se pode ou não votar directamente, o que é ou não
susceptível de iniciativa popular depende do oportunismo de cada um.
Ainda na
Assembleia, este rico alfobre de democracia, mas também viveiro de tolices,
tivemos as decisões de Rui Rio e da direcção do PSD: a partir de agora, a
comunicação do partido vai passar a ser “gerida”. Isto é, os contactos entre
jornalistas e deputados, ou vice-versa, devem ser feitos através dos serviços
de imprensa do Grupo Parlamentar e do partido. Cinco dias depois, ainda não
havia reacção de qualquer espécie, os deputados visados não manifestaram
repugnância nem objecção de consciência. Os deputados dos outros partidos não
exprimiram solidariedade nem interesse, eventualmente por receio de que lhes
venha acontecer o mesmo. Que se saiba, os jornalistas parlamentares também não
reagiram nem recusaram ter de passar pelos serviços para falar com eleitos que
supunham livres. Se esta directiva não provoca reacções de repulsa, é permitido
concluir que os deputados não merecem a liberdade que deveriam ter. Os
jornalistas também não.
Verdadeiramente
hilariante foi a intervenção do ministro Pedro Nuno dos Santos a propósito do
aeroporto do Montijo. Uma lei demagógica e certamente estúpida estabelece a
unanimidade autárquica como necessidade para aprovar o novo aeroporto. Ora, não
há unanimidade. Uma ou duas câmaras não concordam e já manifestaram a sua
oposição. O ministro não se incomodou: então, diz ele, é necessário mudar a
lei. A história é absurda e mais parece um sketch de comédia “levanta-te e ri”.
Mas de uma coisa podemos estar certos: algo de parecido vai ser feito. Com
habilidades ou dinheiro. Ou os dois.
A Justiça é
fértil de incompetências, corrupção, burocracia, injustiças e eternidades de
atrasos. Tendo escapado à revolução, fintou a democracia e ludibriou a
liberdade. E espera enganar a Europa. Sem um princípio superior e exposta a
quezílias internas de poder, a Justiça dá regularmente más notícias. Esta
semana também. Uma, a questão dos sorteios aleatórios camuflados, neste caso na
Relação de Lisboa, é de uma gravidade tal que as palavras são curtas para a
classificar. Outra, a associação da Justiça a bandidos é uma peste a que nos
resignámos. A quase certeza de que só os tribunais europeus têm alguma isenta
firmeza deixa-nos o espírito alegre, repousa-nos de aflições, mas destrói a
esperança de ver que seremos capazes, um dia, de descansar na nossa Justiça!
A democracia é um
sistema de governo que depende essencialmente de convenções. Umas traduzidas na
lei, outras criadoras de costumes e tradições. Tais convenções são poucas e
simples, dizem respeito à capacidade eleitoral dos cidadãos (antigamente dizia-se
“um homem…”, hoje diz-se “uma pessoa, um voto”), à periodicidade das eleições
livres, aos governos de maioria, ao respeito pelas minorias, aos métodos de
governo e legislação e aos sistemas de informação e responsabilidade. O que se
atribui geralmente à democracia (igualdade, cultura, educação, saúde, emprego,
mercado e muito mais) não é realmente democracia: são políticas públicas e
opções sociais e económicas que combinam (ou não) com a democracia e que lhe
dão vida e sentido. Num caso, todavia, estamos perante um sistema que, não
fazendo parte do conceito clássico, é no entanto essencial à democracia: o
Estado de Direito e o sistema de justiça. Por isso, a democracia é tão frágil,
tão vulnerável e tão delicada. Depende de tudo e depende de tanto!
Por isso se exige
o respeito pelas leis e não se admite que sejam feitas à medida. Por isso se
pensa que o sistema de justiça deva ser íntegro. Por isso se espera que os
nossos eleitos sejam pessoas livres e responsáveis. Por isso se admite que o
melhor governo não é o de uma assembleia executiva e volúvel, mas sim o de um
governo responsável perante uma assembleia representativa.
Um só beliscão na
democracia é de mais, mas talvez não seja grave. Muitos e seguidos
merecem atenção e cuidado.
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