OPINIÃO
Estar à altura
O que se tem
vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do
país, é simplesmente aterrador.
ANTÓNIO BARRETO
8 de Março de
2020, 8:05
É bem provável
que nunca os portugueses tenham vivido um período igual na sua história. Não há
memória de uma convergência de processos judiciais desta importância, nem de
que um tal conjunto de crimes e infracções se tenha amontoado às portas dos
tribunais e nos corredores das polícias. Nem aquando das revoluções de 1910, de
1926 e de 1974, até porque as revoluções, por definição, fazem a economia da
justiça. Mas também é certo que, nos anos que antecederam e sucederam às
revoluções, os portugueses, eméritos juristas falhados, se dedicaram vorazmente
aos processos judiciais, tentando resolver nos tribunais o que à política, à
economia e aos costumes pertencia. Mas nem nessas alturas se viu uma tão
medonha coincidência de processos e de casos com fortes repercussões políticas
como aquela a que assistimos agora.
Sucedem-se os
raides de polícias, de inspectores, de agentes ou funcionários das Finanças,
dos Impostos, da Judiciária e dos Estrangeiros, em casa de poderosos, nos
bancos, nas empresas, nos clubes de futebol, nos escritórios de advogados, nas
sociedades de consultoria e auditoria e em departamentos governamentais. Já
quase não há semana sem rusga. De repente, pela manhã, brigadas de funcionários
fiscais batem às portas de empresas e de domicílios. Sucedem-se as pesquisas e
as contrafés. Deixaram de se fazer as velhas rusgas da ASAE, substituídas
agora, dada a sua impopularidade, pelas buscas fiscais e equiparadas.
É triste, mas a
verdade é que grande parte da actividade política, financeira, administrativa e
recreativa do país está sob suspeita. Um primeiro-ministro, ministros e
deputados são hoje nomes tóxicos. O maior grupo privado financeiro está nas
ruas da amargura e parece ter dado conta de milhares de milhões de euros.
Vários bancos de menor importância foram objecto de roubo e desvio e depois de
inquérito, resgate e falência, ficando quase sempre por punir os responsáveis e
por apurar o destino dos rendimentos. Todo o episódio dos interesses angolanos
em Portugal e portugueses em Angola deixou em aberto uma visão infernal de
promiscuidade e vulnerabilidade que parece sem remédio. Os famigerados roubos
de Tancos e subsequentes episódios de fraude, ocultação e mentira deixaram as
Forças Armadas com mácula e o Governo com culpa. Até as tragédias dos incêndios
florestais acabaram por desvendar uma teia de corrupção, dissimulação e roubo.
As melhores
empresas portuguesas da banca, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e
dos transportes foram destruídas ou vendidas sem critério, deixando quase sempre
suspeitas corrupção ainda por averiguar. Uma das maiores indústrias
portuguesas, a de jogadores e treinadores de futebol, está sob inspecção por
centenas de funcionários, polícias e técnicos, naquela que é seguramente a mais
porosa, para não dizer criminosa, das actividades económicas do país.
Sabe-se que, num
país pequeno como o nosso, o tecido de interesses ilegítimos e de crimes de
colarinho é tão denso que “isto anda tudo ligado”. Parece não haver casos
simples. Daí os “megaprocessos”, entidade original e contraproducente.
Processos com milhares de volumes, centenas de milhares de páginas, anos de
inquérito, centenas de funcionários, milhões de horas de trabalho e dezenas de
testemunhas são excelentes candidatos a nunca chegarem a conclusões, a prescreverem
e a ficar de tal modo confusos e intrincados que não seja possível levar a
julgamento. Pior ainda, são de tal modo complexos que se não podem investigar e
instruir decentemente. É muito fácil uma insuficiência de prova “poluir” os
restantes argumentos.
Durante muito
tempo, pensava-se que o problema da justiça era sobretudo de meios, de pessoal
e de processos legais. Assim como de passividade do universo legislativo e de
receio do poder político. Agora percebe-se que é muito mais do que isso. É
também de promiscuidade e corrupção. De luta entre profissões e corpos
judiciais. De fidelidades partidárias e idiossincráticas de muitos dos seus
agentes. De manipulação fraudulenta dos procedimentos legais. O que se tem
vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do
país, é simplesmente aterrador. Tudo parece estar a ser ali descoberto:
sorteios falsificados, sentenças pagas e veredictos manipulados…
Como sair do
atoleiro? É um dos mais aflitivos mistérios. Entregar a justiça à política é
totalmente ineficaz, todas as experiências conhecidas mostram que a emenda é
pior! Esperar pelos próprios magistrados? Já se percebeu que agora nem esse
meio é possível. Ter confiança na justiça popular? Seria absolutamente odioso.
Depositar esperança em formas populistas de justiça? O que se sabe é
detestável. Não há ditador nem justiceiro que resolva o problema. Não há
salvador nem virtuoso. Só podemos ter alguma esperança em sistemas de justiça,
nas liberdades e na informação livre. Por isso muitos se perguntam todos os
dias: estamos preparados para o que temos? Estamos prontos para lutar contra o
que aí vem?
Temos magistrados
em quantidade suficiente e com as competências técnicas adequadas para julgar
estes assuntos de dinheiros, contrabando, fuga ao fisco, branqueamento
internacional e corrupção organizada? Temos procuradores preparados para as
tarefas de inquérito, instrução e acusação em todas essas áreas? Temos
magistrados e procuradores honestos e disponíveis para garantir o cumprimento
dessas tarefas? Temos processos de sorteio, de investigação e de recurso
suficientemente isentos e à prova de intrusos? Temos leis adequadas para dar
conta de tão difíceis tarefas de apuramento da verdade, de julgamento de
criminosos e de castigo de infracções? Temos leis processuais que impeçam que
os poderosos, ricos e políticos manobrem as investigações e se aproveitem dos
sistemas de garantias, de recursos e de prescrições a seu favor? Temos a paz
entre magistrados e procuradores que permita a realização de processos sem a
intervenção do ciúme, da rivalidade, da vingança e da competição entre
sociedades políticas, religiosas e laicas? Temos a certeza de que o ordenamento
jurídico e o sistema judicial não constituem um monumental bodo de protecção
aos poderosos, aos milionários, aos políticos, aos famosos e aos corruptos?
Está a justiça
portuguesa à altura da tarefa? Às vezes, fazer a pergunta é dar a resposta.
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