domingo, 8 de março de 2020

Estar à altura



OPINIÃO
Estar à altura

O que se tem vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do país, é simplesmente aterrador.

ANTÓNIO BARRETO
8 de Março de 2020, 8:05

É bem provável que nunca os portugueses tenham vivido um período igual na sua história. Não há memória de uma convergência de processos judiciais desta importância, nem de que um tal conjunto de crimes e infracções se tenha amontoado às portas dos tribunais e nos corredores das polícias. Nem aquando das revoluções de 1910, de 1926 e de 1974, até porque as revoluções, por definição, fazem a economia da justiça. Mas também é certo que, nos anos que antecederam e sucederam às revoluções, os portugueses, eméritos juristas falhados, se dedicaram vorazmente aos processos judiciais, tentando resolver nos tribunais o que à política, à economia e aos costumes pertencia. Mas nem nessas alturas se viu uma tão medonha coincidência de processos e de casos com fortes repercussões políticas como aquela a que assistimos agora.

Sucedem-se os raides de polícias, de inspectores, de agentes ou funcionários das Finanças, dos Impostos, da Judiciária e dos Estrangeiros, em casa de poderosos, nos bancos, nas empresas, nos clubes de futebol, nos escritórios de advogados, nas sociedades de consultoria e auditoria e em departamentos governamentais. Já quase não há semana sem rusga. De repente, pela manhã, brigadas de funcionários fiscais batem às portas de empresas e de domicílios. Sucedem-se as pesquisas e as contrafés. Deixaram de se fazer as velhas rusgas da ASAE, substituídas agora, dada a sua impopularidade, pelas buscas fiscais e equiparadas.


É triste, mas a verdade é que grande parte da actividade política, financeira, administrativa e recreativa do país está sob suspeita. Um primeiro-ministro, ministros e deputados são hoje nomes tóxicos. O maior grupo privado financeiro está nas ruas da amargura e parece ter dado conta de milhares de milhões de euros. Vários bancos de menor importância foram objecto de roubo e desvio e depois de inquérito, resgate e falência, ficando quase sempre por punir os responsáveis e por apurar o destino dos rendimentos. Todo o episódio dos interesses angolanos em Portugal e portugueses em Angola deixou em aberto uma visão infernal de promiscuidade e vulnerabilidade que parece sem remédio. Os famigerados roubos de Tancos e subsequentes episódios de fraude, ocultação e mentira deixaram as Forças Armadas com mácula e o Governo com culpa. Até as tragédias dos incêndios florestais acabaram por desvendar uma teia de corrupção, dissimulação e roubo.

As melhores empresas portuguesas da banca, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos transportes foram destruídas ou vendidas sem critério, deixando quase sempre suspeitas corrupção ainda por averiguar. Uma das maiores indústrias portuguesas, a de jogadores e treinadores de futebol, está sob inspecção por centenas de funcionários, polícias e técnicos, naquela que é seguramente a mais porosa, para não dizer criminosa, das actividades económicas do país.

Sabe-se que, num país pequeno como o nosso, o tecido de interesses ilegítimos e de crimes de colarinho é tão denso que “isto anda tudo ligado”. Parece não haver casos simples. Daí os “megaprocessos”, entidade original e contraproducente. Processos com milhares de volumes, centenas de milhares de páginas, anos de inquérito, centenas de funcionários, milhões de horas de trabalho e dezenas de testemunhas são excelentes candidatos a nunca chegarem a conclusões, a prescreverem e a ficar de tal modo confusos e intrincados que não seja possível levar a julgamento. Pior ainda, são de tal modo complexos que se não podem investigar e instruir decentemente. É muito fácil uma insuficiência de prova “poluir” os restantes argumentos.

Durante muito tempo, pensava-se que o problema da justiça era sobretudo de meios, de pessoal e de processos legais. Assim como de passividade do universo legislativo e de receio do poder político. Agora percebe-se que é muito mais do que isso. É também de promiscuidade e corrupção. De luta entre profissões e corpos judiciais. De fidelidades partidárias e idiossincráticas de muitos dos seus agentes. De manipulação fraudulenta dos procedimentos legais. O que se tem vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do país, é simplesmente aterrador. Tudo parece estar a ser ali descoberto: sorteios falsificados, sentenças pagas e veredictos manipulados…

Como sair do atoleiro? É um dos mais aflitivos mistérios. Entregar a justiça à política é totalmente ineficaz, todas as experiências conhecidas mostram que a emenda é pior! Esperar pelos próprios magistrados? Já se percebeu que agora nem esse meio é possível. Ter confiança na justiça popular? Seria absolutamente odioso. Depositar esperança em formas populistas de justiça? O que se sabe é detestável. Não há ditador nem justiceiro que resolva o problema. Não há salvador nem virtuoso. Só podemos ter alguma esperança em sistemas de justiça, nas liberdades e na informação livre. Por isso muitos se perguntam todos os dias: estamos preparados para o que temos? Estamos prontos para lutar contra o que aí vem?

Temos magistrados em quantidade suficiente e com as competências técnicas adequadas para julgar estes assuntos de dinheiros, contrabando, fuga ao fisco, branqueamento internacional e corrupção organizada? Temos procuradores preparados para as tarefas de inquérito, instrução e acusação em todas essas áreas? Temos magistrados e procuradores honestos e disponíveis para garantir o cumprimento dessas tarefas? Temos processos de sorteio, de investigação e de recurso suficientemente isentos e à prova de intrusos? Temos leis adequadas para dar conta de tão difíceis tarefas de apuramento da verdade, de julgamento de criminosos e de castigo de infracções? Temos leis processuais que impeçam que os poderosos, ricos e políticos manobrem as investigações e se aproveitem dos sistemas de garantias, de recursos e de prescrições a seu favor? Temos a paz entre magistrados e procuradores que permita a realização de processos sem a intervenção do ciúme, da rivalidade, da vingança e da competição entre sociedades políticas, religiosas e laicas? Temos a certeza de que o ordenamento jurídico e o sistema judicial não constituem um monumental bodo de protecção aos poderosos, aos milionários, aos políticos, aos famosos e aos corruptos?

Está a justiça portuguesa à altura da tarefa? Às vezes, fazer a pergunta é dar a resposta.

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