OPINIÃO
Democracia e
globalização
É tempo de nos
interrogarmos se a Democracia é viável ou adequada num contexto de
globalização.
MARIA DE FÁTIMA BONIFÁCIO
5 de Março de
2020, 6:17
Nada do que é
humano é perene. Não há motivo para conceder à Democracia o privilégio único da
perenidade.
As democracias
implantaram-se e desenvolveram-se no contexto do Estado-nação. Mais precoces ou
mais tardias, dentro de um determinado território nacional elas impuseram-se e
afirmaram-se no dia em que o sufrágio universal triunfou: uma pessoa, um voto.
A eleição dos poderes, nomeadamente do Parlamento, tornou-se o critério máximo
da legitimidade política, que abrange tudo o que diz respeito à governação da
polis. Durante algumas décadas, a seguir ao fim da II Guerra Mundial, o regime
funcionou. Mas, hoje em dia, lemos a imprensa nacional e sobretudo
internacional e deparamos, tanto à esquerda como à direita, com uma desafeição,
senão rejeição, relativamente a esta forma de organização política que parecera
perfeita.
Há anos que duram
as queixas contra poderes democraticamente eleitos mas em que, uma vez eleitos,
os eleitores não se revêem – não se sentem representados. Eleições esdrúxulas
como a de Bolsonaro ou de Trump explicam-se alegadamente, entre possíveis
outras causas, pela distância cavada entre os políticos (o Poder) e o
eleitorado. Aqueles são vistos como uma oligarquia fechada sobre si mesma,
falando uma língua própria que o comum dos mortais não entende. De facto, a
realidade nunca diferiu muito desta percepção. Porém, era geralmente aceite
porque as décadas do pós-II Guerra, graças ao alívio proporcionado pelo muito
generoso Plano Marshall, por um lado, e, por outro, graças à NATO, cuja
protecção dispensava a Europa de investir em armamento, foram décadas de abundância
que concediam aos governos uma muito apreciável margem de magnanimidade. Nessa
época, a Democracia fazia sentir-se nos bolsos dos contribuintes.
António Costa
precisa aflitivamente de vencer as próximas legislativas, se possível com
maioria absoluta, a tão cobiçada cereja em cima do bolo. E já começou a
preparar-se para a batalha eleitoral. Lembrou-se do país e viu uma urna
gigantesca. Lançou-se à conquista do eleitorado. Como? Exibindo o seu desvelado
amor pelas “pessoas”, auscultando as suas necessidades e anseios e jurando que
as promessas eleitorais serão religiosamente cumpridas. Daí as variadas
tentativas, algumas caricatas, para “chegar ao povo”: visitas a autarquias,
festarolas com os indígenas (como diria VPV), corridas pelas feiras, consultações
para definir a quota-parte justa de cada concelho ou região na distribuição dos
fundos estruturais, etc.. Os ministros calcorreiam o país para se darem a
conhecer e se inteirarem do sentimento popular. Tudo para criar a impressão de
que em São Bento os anseios das populações são levados em conta, e de que o
Governo, emanado da Assembleia da República, pautará a sua actuação pelas
indicações que o périplo pelo país lhes fornece. Porém, ainda assim, apesar de
tanto zelo, as pessoas não estão satisfeitas. Porquê? Porque a Democracia não
se tem feito sentir nos seus bolsos. O fenómeno está longe de ser uma
originalidade portuguesa.
Bem pelo
contrário. Existe, no mundo ocidental, uma generalizada desconfiança e um
generalizado desencanto com a Democracia. O fundo, fundo background desse
desencanto é o desinteresse pela Liberdade individual e colectiva; a Liberdade
interessa a poucos, porque a grande maioria não sabe o que fazer dela e com
ela. Depois, e como já escrevi, uma democracia que não dá dinheiro a rodos não
presta; e uma democracia que gera multimilionários em vez de impor a igualdade
presta ainda menos: suscita ódios, alimenta vinganças. Ninguém quer saber se a
desindustrialização das grandes economias ocidentais, ao mesmo tempo que produz
desemprego e deprime os salários no nosso cantinho ocidental, tem servido para
retirar da absoluta miséria centenas de milhões de asiáticos. Não espanta: o
Homem não é generoso ou abnegado. A crença na bondade fundamental do Homem não
passa de uma consoladora ilusão que Rousseau se esforçou por fazer passar por
uma qualidade congénita da natureza humana.
Chegados aqui,
parece haver uma coincidência entre o menosprezo pelas oligarquias políticas, a
precariedade económica e a globalização. Os políticos – os governos – estão
cada vez mais condicionados pelas exigências da globalização; condicionamentos
inconfessáveis, pois prevalecem sobre a vontade dos eleitores expressa nas
urnas. Mesmo numa economia já largamente internacionalizada, e portanto
interdependente, o Estado-nação dispunha de uma considerável margem de
autonomia, que lhe permitia desenhar políticas pensadas para corresponder aos
desejos e necessidades dos eleitorados nacionais. Mas a partir da década de
1990, com o aprofundamento acelerado da globalização, o poder do Estado – a
liberdade de acção dos governos – passou a estar muito mais constrangido. Não
admira, portanto, que o descontentamento com a Democracia tenda a
generalizar-se. E tanto mais quanto, na Europa, o crescimento económico anémico
proíbe as liberalidades que outrora constituíram o principal motivo de atracção
da Democracia.
Esse
descontentamento, por ora, inunda as ruas parisienses com a violência e a fúria
devastadora dos “coletes amarelos”, ou desagua na imundície das redes sociais,
um escape nojento para quem entende que o protesto, justo ou injusto, deve
obedecer a regras de civilidade. Mas é tempo de nos interrogarmos se a
Democracia é viável ou adequada num contexto de globalização. Quer dizer, num
tempo em que entidades misteriosas e supra-terrestres decidem, ao fim e ao
cabo, do nosso futuro. Um futuro que dantes era largamente definido pelo voto
individual no quadro do Estado-nação. Ao que tudo indica, nada de
verdadeiramente importante é hoje em dia unilateralmente decidido pelos Estados
nacionais. Quem hoje em dia de facto governa o mundo (?) não carece de
legitimidade democrática. Esta fica para os governos, afadigados a administrar
e distribuir as sobras que o Sistema lhes concede. Enquanto vivermos na ilusão
de que temos um controle efectivo sobre o nosso destino colectivo, a Democracia
salva-se se a economia a salvar – até ao dia em que entre em choque com as
exigências da globalização.
Historiadora
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