IMAGENS de OVOODOCORVO
O que deve nortear a política económica em Portugal na
próxima década? A descarbonização
Apenas um acordo de regime muito alargado poderá encurtar o
mundo que separa as boas intenções da atual realidade política.
ALFREDO MARVÃO PEREIRA
31 de Dezembro de 2018, 6:43
São cada vez mais frequentes as chamadas de atenção para a
urgência de encontrar soluções para as alterações climáticas. Em setembro, o
secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou-nos para o facto de que os
efeitos das alterações climáticas não só são perigosos, como se aproximam a um
ritmo cada vez mais rápido, apelando, assim, a uma ação concertada para
garantir um futuro sustentável para todos. “Precisamos de fazer mais, e
precisamos de o fazer mais depressa”, salientou. Em outubro, foi tornado
público o relatório do IPCC, o qual soou o alarme, assegurando que temos, o
mais tardar, até 2030 para limitar os efeitos catastróficos das alterações
climáticas. Apelou, ainda, à tomada de medidas urgentes e sem precedentes para
garantir que o aquecimento global não exceda 1,5 graus até 2030. Para tal, será
preciso reduzir, até essa data, as emissões de gases com efeito de estufa em
45%, quando comparados com os valores de 2010. Para lá chegar, garante o
relatório, serão necessárias grandes mudanças no uso da terra, no funcionamento
das cidades e, obviamente, nos setores da energia e da indústria.
Entretanto, e num universo paralelo, as emissões de CO2 no
mundo terão aumentado 2,7% em 2018. Neste âmbito, a conferência da COP 24,
reunida no início de dezembro em Katowice, Polónia, apenas veio tornar ainda
mais claro o crescente abismo que separa a comunidade científica da sua
congénere política no que toca ao reconhecimento da urgência em encontrar
rapidamente soluções para as alterações climáticas. Exemplo disso foi a
aprovação em Katowice, à última hora, de um conjunto de medidas de âmbito muito
restrito e de ambição ainda mais modesta, certamente bem longe dos desígnios do
relatório do IPCC.
Em Portugal, muitos dos objetivos, ideias e caminhos
preconizados no relatório do IPCC tiveram eco no Roteiro para a Neutralidade
Carbónica 2050, divulgado pelo Governo no início de dezembro. Este roteiro
apresentou um vasto conjunto de informação que pretende servir como suporte
técnico ao objetivo de atingir uma redução das ditas emissões até 2030, nos
termos propostos pelo IPCC e de atingir a neutralidade carbónica da economia
portuguesa até 2050.
Entretanto, e num universo paralelo, a vida política em
Portugal foi novamente capturada nos últimos meses pela discussão do Orçamento
do Estado para 2019. Foram inúmeros os debates, os confrontos de ideias, os
desacordos e os inevitáveis entendimentos de bastidores. O que esteve
totalmente ausente, contudo, foi a consideração do impacto ambiental das
medidas em discussão. Por incrível que possa parecer, isto é verdade, mesmo em
relação às questões que mais diretamente têm a ver com a questão das alterações
climáticas. Por exemplo, que atenção foi dada ao impacto ambiental das mudanças
no IVA que incide sobre a eletricidade? E das reduções no ISP? E o que dizer da
ideia de aplicar a CESE ao setor produtor de energias renováveis? Infelizmente,
a resposta é: zero. Assim, ficou demonstrado, também em Portugal, o enorme
hiato que separa as proclamações de boas intenções e a efetiva tomada de
medidas.
O mundo que separa as boas intenções dos atos é, em muito
boa parte, determinado pela dimensão colossal do problema das alterações
climáticas e pela inadequação das abordagens tipicamente preconizadas. Por um
lado, fazendo face a um problema cuja dimensão é civilizacional, a reação
individual de impotência e de inércia não nos deve surpreender. Por outro lado,
as soluções muitas vezes preconizadas são baseadas num estrito voluntarismo
(como por exemplo: “vamos comer menos carne, usar mais transportes públicos, ou
preferir usar o estendal para secar a roupa, em vez de usar a máquina de
secar”) e, por muito sentido que façam, em si mesmos, pecam ou por não serem
postos na prática, ou por estarem completamente desajustadas à formidável
dimensão do problema que juntos enfrentamos – seria como sugerir usar uma
colher de chá para retirar a água numa casa depois de uma inundação: ajuda, mas
de forma muito marginal. No outro extremo das soluções utilizadas, está a
abordagem de política económica baseada na força bruta de políticas avulsas, em
que os efeitos económicos e sociais adversos das políticas ambientais são assumidos
como um dado adquirido e inevitável. Em Portugal, temos como exemplo o caso do
fecho regulado até 2030 das centrais a carvão, cujos efeitos económicos
adversos se farão sentir mais cedo ou mais tarde. A nível internacional temos
como exemplo o aumento dos impostos sobre os combustíveis em França,
justificados por razões ambientais e que degeneraram no fenómeno dos “coletes
amarelos”. Em ambos os casos, não estão em causa os objetivos ambientais a
atingir, mas sim a natureza avulsa, descoordenada e nada estratégica das
medidas preconizadas. Ao não serem enquadradas numa política ambiental
abrangente, não permitem incluir mecanismos para neutralizar os seus efeitos
económicos e sociais adversos.
Estas observações levam-me a postular dois princípios
estratégicos que julgo serem condições sine qua non para que haja alguma
esperança que a questão das alterações climáticas venha a ser abordada atempada
e adequadamente em Portugal.
O primeiro princípio é que a questão da descarbonização tem
de ser assumida como um dos principais fatores estruturantes da política
económica em Portugal para a próxima década. Nesse âmbito, todas as medidas de
política económica têm de ser analisadas à luz dos seus impactos ambientais,
i.e., é imprescindível tornar explícito como determinada medida de política
ajudará ou dificultará a resolução da questão das alterações climáticas em
Portugal. Para entender o que quero dizer, basta recordar a segunda metade dos
anos 90 e como a questão do Euro funcionou como fator estruturante das nossas
políticas económicas. Não houve medida de política económica que não fosse
analisada à lupa de objetivos e indicadores monetários específicos. Que impacto
teria no saldo orçamental? E nas taxas de juro? E na inflação? Do mesmo modo,
na década 2020, na qual brevemente entraremos, tem de ser absolutamente natural
filtrar os efeitos de políticas através dos seus impactos em termos dos
objetivos e indicadores ambientais específicos. Que impacto terá nas emissões
de gases de efeitos de estufa? E na eletrificação da economia? E no uso de
energias renováveis? E na eficiência energética?
O segundo princípio é que a questão das alterações
climáticas não pode ser abordada de forma avulsa. Só uma perspetiva abrangente
pode permitir o desenho de políticas que, num contexto da mais estrita
neutralidade orçamental, possam servir não apenas o ambiente, mas também o
cidadão comum, pensando em mitigar eventuais efeitos adversos, não apenas em
termos económicos, mas também em termos de justiça social. Só uma abordagem
abrangente pode garantir a neutralidade orçamental das políticas, evitando
assim a noção de que as políticas a favor do ambiente são apenas um agravamento
(mais ou menos encapotado) da carga fiscal. Por exemplo, transformar o ISP num
imposto sobre o CO2, num contexto de estrita neutralidade fiscal, é uma
política muito mais eficaz para o ambiente e muito menos penalizadora tanto
para a economia como para a justiça social do que simplesmente somar ao ISP
mais um imposto sobre o carbono. Finalmente, só uma poítica abrangente num
contexto de estrita neutralidade orçamental permite reduzir partes da carga
fiscal que são particularmente gravosas. Por exemplo, a redução do IRS e do
IRC, financiada pelas receitas de um imposto sobre o carbono, consistente com
os objetivos de descarbonização para 2030 e 2050, tem um potencial não só para
reduzir as emissões, mas também para melhorar o desempenho económico e o
emprego, bem como para reduzir as desigualdades sociais.
Para terminar, apresento um corolário político dos dois
princípios de política económica acima enunciados. A dimensão do problema das
alterações climáticas, a necessidade de tornar a descarbonização no principal
fator estruturante da política económica em Portugal e, ainda, a necessidade de
políticas abrangentes e de reformas profundas do sistema fiscal todas sugerem
que apenas um acordo de regime muito alargado entre os partidos políticos e a
sociedade civil poderá encurtar o mundo que neste momento separa as boas
intenções da atual realidade política. Os movimentos e as iniciativas que se
preocupam especialmente com a justiça social, assim como as que se preocupam
principalmente com questões de crescimento económico e de competitividade do
nosso país, e ainda as que se preocupam particularmente com as questões
ambientais, todas têm de ser ouvidas para juntas fazerem parte integrante do
processo de decisão para chegar a uma solução duradoura do problema. Só assim
seremos todos parte da solução do problema e não parte dos obstáculos a
encontrá-la e a implementá-la. Só assim haverá o compromisso intra e
intergeracional necessário para enfrentar este importante desafio que não se
resolve nem de um dia para o outro, nem de um ano para o outro, nem mesmo de
uma legislatura para outra. Vale a pena lembrar que, para encontrarmos
verdadeiras soluções para o problema das alterações climáticas já em curso, não
pode haver fraturas sociais – ou nos concertamos para consertar isto, ou
então... Ou então teremos todos de viver numa realidade alternativa que, por
ser tão inimaginável para nós neste momento, o melhor é ficarmos pelas
reticências. O tempo urge!
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