Não queremos ser servos da China
O deslumbramento "pragmático" pelos bons negócios
pode ser o caminho mais curto para a servidão – e esse é um risco real nas
relações de Portugal com a China.
VICENTE JORGE SILVA
2 de Dezembro de 2018, 7:00
Portugal prepara-se para receber na próxima semana em visita
oficial o Presidente chinês, Xi Jinping, enquanto crescem os sinais de que
poderemos vir a ser a principal porta de entrada da China na Europa (apenas a
Finlândia nos ultrapassa neste momento). E, a propósito disso, multiplicam-se
as análises e projecções económicas, em geral muito optimistas, sobre o papel
que poderemos desempenhar como aliados da segunda maior potência económica à
escala global, com um ímpeto capaz de a colocar na liderança já em 2030.
Sintomaticamente, a secretária de Estado do Turismo lançou
um desafio sem rodeios ao maior grupo tecnológico chinês, Alibaba,
correspondendo à operação de charme encenada há dias por aquele grupo em
Portugal: "…por favor, usem-nos, como porta de entrada, como cobaias, para
testar a forma de entrarem na Europa". Não há aqui lugar para subtilezas
ou precauções que, pelo menos, nos salvem a face do desejo de querer ser, à
viva força, o cavalo de Tróia da China na União Europeia. Aliás, as considerações
de ordem meramente económica – em que assumimos o papel de pequeno e alegre
satélite do expansionismo chinês – predominam sobre quaisquer outras,
nomeadamente as de carácter político. De política é, de resto, o que não se
fala de todo nas duas páginas que o Expresso de ontem consagra ao investimento
chinês em Portugal. Entrevistado por aquele semanário, Peter Williamson,
professor de gestão em Cambridge, tem mesmo uma afirmação lapidar:
"Portugueses são pragmáticos como os chineses".
É esse pragmatismo que nos leva a varrer para debaixo do
tapete quaisquer considerações "irritantes" que possam comprometer a
auspiciosa lua-de-mel luso-chinesa. Ora a China não é um país qualquer e as
relações de força de um pequeno país como Portugal com a segunda (e, a breve
prazo, primeira) economia do globo são, desde logo, profundamente
desequilibradas e desiguais, condicionando de modo radical a soberania
portuguesa. Acresce ainda este factor decisivo: a China é uma implacável
ditadura de partido único, que se tem vindo a tornar cada vez mais repressiva
de quaisquer formas de dissidência sob o reinado (ou, mais precisamente, o
império) de Xi Jinping. Aliás, a grande "originalidade" chinesa é a
de mostrar a compatibilidade de um regime político totalitário com o mais
desbragado sistema capitalista (enquadrado, claro, pela hierarquia do Partido
Comunista).
Lembram-se de O Fim da História, de Francis Fukuyama? Aí se
preconizava, depois da queda do muro de Berlim, o inelutável casamento, em
todas as latitudes e para além dos regimes vigentes, entre o mercado livre
capitalista e a democracia liberal. Pois bem, foi o seu contrário que acabou
por triunfar, pelo menos na China. E quanto mais o capitalismo chinês se
expandiu e internacionalizou, mais a ordem política sob a tutela de um partido
único – e comunista! – se tornou monolítica e opressiva. Quer então isto dizer
que é impossível qualquer pragmatismo no plano dos negócios entre Portugal e a
China? Não, certamente, mas desde que se tenha a perfeita noção das relações de
força entre o gigantismo chinês e a pequenez portuguesa – ou que a tentação
traiçoeira dos bons negócios não subverta a liberdade e a soberania de quem se
encontra mais exposto à condição de "cobaia" ou de servo, como é o
nosso caso.
O deslumbramento "pragmático" pelos bons negócios
pode ser o caminho mais curto para a servidão – e esse é um risco real nas
relações de Portugal com a China. A expansão da rede desses negócios, já
implantados em áreas nucleares como a energia, a banca, os transportes, os
seguros ou a saúde, para outros domínios mais directamente expostos à
interferência política (como os media), tem de preservar o bem mais precioso
entre todos: a democracia.
A era dourada da China em Portugal
Portugal pretende permanecer um membro activo da UE e da
NATO ao mesmo tempo que se torna “o porta-aviões do investimento chinês na
Europa”?
PHILIPPE LE CORRE
4 de Dezembro de 2018, 6:57
Ao contrário da Rainha Isabel II em 2015, o Presidente da
República português não acolherá o seu homólogo chinês, Xi Jinping, a bordo de
uma carruagem dourada, quando este aterrar hoje em solo português para a sua
visita de Estado. Ainda assim, o país encontrou maneira de estender à China uma
passadeira (pincelada com tons de ouro) de acesso expedito à Europa.
Poucos dias depois de a União Europeia ter finalizado o
esboço de um mecanismo de escrutínio ao investimento de países terceiros nos
Estados-membros, Portugal recebe Xi Jinping para reforçar a cooperação entre os
dois países. Ao abrir as portas ao espaço Schengen a mais de 4000 cidadãos
chineses com a emissão de “vistos gold” como contrapartida de vários
investimentos em território nacional, Lisboa sabe que, sendo o quarto maior
recipiente de investimento chinês na UE, desempenha um papel central na
estratégia geoeconómica europeia da China e, como tal, está sob o olhar atento
de Bruxelas.
Ainda que Portugal não seja caso isolado, já que existem
iniciativas semelhantes ao programa luso de “vistos gold” noutros países
europeus, várias entidades, como a Transparência Internacional, já apelaram “à
suspensão do programa” até que “todos os efeitos sejam avaliados de forma
isenta” e “um debate real [tenha lugar] na opinião pública”.
Até agora, qualquer proposta legislativa em tal sentido foi
rejeitada, mas o actual contexto político português terá levado o Partido
Socialista a considerar novas medidas. A 16 de Novembro, a bancada socialista
apresentou uma proposta de alteração ao Orçamento do Estado de 2019, em que
sugere que qualquer requerente de um “visto gold” seja obrigado a providenciar
aos serviços competentes em Portugal o seu número de identificação fiscal e
residência fiscal na jurisdição de origem. Não há nada que me leve a crer que
esta iniciativa será rejeitada pelo Parlamento – mas será esta proposta
suficiente para assegurar a tão desejada transparência do mecanismo dos “vistos
gold”? Provavelmente não.
Aos olhos de Pequim, Portugal não é apenas um país europeu
de dimensão intermédia que acolhe o líder supremo chinês para uma visita de
Estado. Desde 2004, o país tem desenvolvido uma “parceria estratégica” com a
República Popular da China.
A crise financeira, que assolou o país entre 2008 e 2013,
serviu como catalisador para a ofensiva chinesa, já que Lisboa, sob condições
definidas pela troika, teve de privatizar diversos activos que até aí
pertenciam ao Estado português. À data de hoje, o investimento directo
estrangeiro da China atinge um total de 12 mil milhões de euros, abarcando
sectores desde a energia (Galp, REN, EDP) aos transportes (TAP), passando
também pela área dos seguros (Fidelidade), saúde (Grupo Luz Saúde), serviços
financeiros, imobiliário e meios de comunicação social – um investimento cujo
crescimento não parece abrandar.
Um exemplo disso é a oferta de compra da EDP pela empresa
detida pelo Estado chinês, China Three Gorges, que actualmente controla 23,3%
do capital – gradualmente adquirido desde o resgate financeiro ao país em 2011.
Possuindo a EDP várias subsidiárias no sector das renováveis em Espanha, no
Brasil e nos Estados Unidos (para além de receber subsídios do Estado
português), não é surpresa para ninguém que esta OPA tenha gerado dúvidas quer
no contexto europeu, quer no contexto americano. Enquanto a autoridade da
concorrência brasileira já deu luz verde à operação, o actual embaixador dos
Estados Unidos em Portugal, George Glass, criticou o acordo, ao considerar que
“ter um outro país a controlar parte de infra-estrutura fundamental”
portuguesa, como a rede eléctrica, é “um caminho perigoso”.
Importa, por isso, perguntar: por que razão é que outros
países receiam a iniciativa chinesa em Portugal mais do que a própria opinião
pública e classe política portuguesas? O que é que impede um debate público
alargado sobre este tema, como sucede na Grécia, Polónia e República Checa,
indo para além das restritas e habituais elites portuguesas?
O facto de a ligação com Pequim ser sistematicamente
definida como um caso de sucesso, nos vários quadrantes, constitui certamente
um factor de especial importância. O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira,
referiu no mês passado que o “investimento Chinês tem sido significativo nos
últimos anos e é bem-vindo” – especialmente no quadro de crescimento económico
luso. Se tal não bastasse, em 2017, o executivo português flexibilizou um
artigo do Código de Valores Mobiliários, demovendo uma barreira relativa à
imputação conjunta de direitos de voto de accionistas de empresas que têm relações
entre si – facilitando assim o caminho à China Three Gorges e à congénere
chinesa CNIC (que detêm mais de 28% da EDP actualmente) num cenário de uma
eventual OPA.
Para além disso, e em preparação para a chegada do
Presidente Xi a Lisboa, um número de iniciativas bilaterais têm sido
apresentadas pelo Governo. O recente anúncio da construção do StarLab, um novo
laboratório tecnológico em Matosinhos e Peniche, financiado conjuntamente por
Portugal e pela China e a inaugurar antes de Março de 2019, com objectivo de
promover a construção de microssatélites e a observação dos oceanos, comprova
esse reforço das relações luso-chinesas.
Como indiciado em Outubro pelo ministro dos Negócios
Estrangeiros, Augusto Santos Silva, a elaboração de um memorando de entendimento
entre os dois países esteve também em curso, incluindo cinco novos projectos de
cooperação sobre os quais se esperam novos desenvolvimentos durante a visita.
Entre os vários activos estratégicos de Portugal, o porto de Sines – um de
muitos portos europeus que a China pretende adquirir – é uma potencial
plataforma de colaboração, já que permitiria a Pequim ligar a rota terrestre e
a rota marítima da sua iniciativa Belt and Road – um projecto que já recebeu
apoio inequívoco de vários ministros do executivo português.
Significará tudo isto que Portugal pretende permanecer um
membro activo da União Europeia e da NATO, ao mesmo tempo que se torna “o
porta-aviões do investimento chinês na Europa”? De acordo com um estudo da
Carnegie, 90% dos cidadãos vêem a UE como o vínculo institucional mais
importante para o país nos dias de hoje, mas a diferença entre a importância
relativa dos EUA e da China tem reduzido de forma bastante substancial em
comparação à última década.
Sob o argumento de que os dois países têm 500 anos de
conhecimento mútuo, incluindo uma transferência bem sucedida da soberania de
Macau, o executivo português acredita que a parceria com a China continuará a
prosperar, apesar do cepticismo internacional e da visão ocidental que Portugal
sempre advocou.
Num momento em que a UE necessita de maior coesão e
solidariedade do que nunca, estas duas dimensões pesam na balança dos decisores
políticos portugueses ao se ponderar um eventual apoio ou oposição a
iniciativas comunitárias que apertem o controlo ao investimento chinês. Aqueles
que têm, hoje, os olhos postos em Portugal questionam-se sobre em que medida
irá esta visita de Estado influenciar o futuro das relações bilaterais entre as
duas nações. Com sorte, não será aquele que possui o ouro que ditará as regras.
(revisão e adaptação para português por Carlos Teixeira,
estudante de Políticas Públicas na Universidade de Harvard)
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