terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Não queremos ser servos da China / A era dourada da China em Portugal




Não queremos ser servos da China
O deslumbramento "pragmático" pelos bons negócios pode ser o caminho mais curto para a servidão – e esse é um risco real nas relações de Portugal com a China.

VICENTE JORGE SILVA
2 de Dezembro de 2018, 7:00

Portugal prepara-se para receber na próxima semana em visita oficial o Presidente chinês, Xi Jinping, enquanto crescem os sinais de que poderemos vir a ser a principal porta de entrada da China na Europa (apenas a Finlândia nos ultrapassa neste momento). E, a propósito disso, multiplicam-se as análises e projecções económicas, em geral muito optimistas, sobre o papel que poderemos desempenhar como aliados da segunda maior potência económica à escala global, com um ímpeto capaz de a colocar na liderança já em 2030.

Sintomaticamente, a secretária de Estado do Turismo lançou um desafio sem rodeios ao maior grupo tecnológico chinês, Alibaba, correspondendo à operação de charme encenada há dias por aquele grupo em Portugal: "…por favor, usem-nos, como porta de entrada, como cobaias, para testar a forma de entrarem na Europa". Não há aqui lugar para subtilezas ou precauções que, pelo menos, nos salvem a face do desejo de querer ser, à viva força, o cavalo de Tróia da China na União Europeia. Aliás, as considerações de ordem meramente económica – em que assumimos o papel de pequeno e alegre satélite do expansionismo chinês – predominam sobre quaisquer outras, nomeadamente as de carácter político. De política é, de resto, o que não se fala de todo nas duas páginas que o Expresso de ontem consagra ao investimento chinês em Portugal. Entrevistado por aquele semanário, Peter Williamson, professor de gestão em Cambridge, tem mesmo uma afirmação lapidar: "Portugueses são pragmáticos como os chineses".

É esse pragmatismo que nos leva a varrer para debaixo do tapete quaisquer considerações "irritantes" que possam comprometer a auspiciosa lua-de-mel luso-chinesa. Ora a China não é um país qualquer e as relações de força de um pequeno país como Portugal com a segunda (e, a breve prazo, primeira) economia do globo são, desde logo, profundamente desequilibradas e desiguais, condicionando de modo radical a soberania portuguesa. Acresce ainda este factor decisivo: a China é uma implacável ditadura de partido único, que se tem vindo a tornar cada vez mais repressiva de quaisquer formas de dissidência sob o reinado (ou, mais precisamente, o império) de Xi Jinping. Aliás, a grande "originalidade" chinesa é a de mostrar a compatibilidade de um regime político totalitário com o mais desbragado sistema capitalista (enquadrado, claro, pela hierarquia do Partido Comunista).

Lembram-se de O Fim da História, de Francis Fukuyama? Aí se preconizava, depois da queda do muro de Berlim, o inelutável casamento, em todas as latitudes e para além dos regimes vigentes, entre o mercado livre capitalista e a democracia liberal. Pois bem, foi o seu contrário que acabou por triunfar, pelo menos na China. E quanto mais o capitalismo chinês se expandiu e internacionalizou, mais a ordem política sob a tutela de um partido único – e comunista! – se tornou monolítica e opressiva. Quer então isto dizer que é impossível qualquer pragmatismo no plano dos negócios entre Portugal e a China? Não, certamente, mas desde que se tenha a perfeita noção das relações de força entre o gigantismo chinês e a pequenez portuguesa – ou que a tentação traiçoeira dos bons negócios não subverta a liberdade e a soberania de quem se encontra mais exposto à condição de "cobaia" ou de servo, como é o nosso caso.

O deslumbramento "pragmático" pelos bons negócios pode ser o caminho mais curto para a servidão – e esse é um risco real nas relações de Portugal com a China. A expansão da rede desses negócios, já implantados em áreas nucleares como a energia, a banca, os transportes, os seguros ou a saúde, para outros domínios mais directamente expostos à interferência política (como os media), tem de preservar o bem mais precioso entre todos: a democracia.


A era dourada da China em Portugal
Portugal pretende permanecer um membro activo da UE e da NATO ao mesmo tempo que se torna “o porta-aviões do investimento chinês na Europa”?

PHILIPPE LE CORRE
4 de Dezembro de 2018, 6:57

Ao contrário da Rainha Isabel II em 2015, o Presidente da República português não acolherá o seu homólogo chinês, Xi Jinping, a bordo de uma carruagem dourada, quando este aterrar hoje em solo português para a sua visita de Estado. Ainda assim, o país encontrou maneira de estender à China uma passadeira (pincelada com tons de ouro) de acesso expedito à Europa.

Poucos dias depois de a União Europeia ter finalizado o esboço de um mecanismo de escrutínio ao investimento de países terceiros nos Estados-membros, Portugal recebe Xi Jinping para reforçar a cooperação entre os dois países. Ao abrir as portas ao espaço Schengen a mais de 4000 cidadãos chineses com a emissão de “vistos gold” como contrapartida de vários investimentos em território nacional, Lisboa sabe que, sendo o quarto maior recipiente de investimento chinês na UE, desempenha um papel central na estratégia geoeconómica europeia da China e, como tal, está sob o olhar atento de Bruxelas.

Ainda que Portugal não seja caso isolado, já que existem iniciativas semelhantes ao programa luso de “vistos gold” noutros países europeus, várias entidades, como a Transparência Internacional, já apelaram “à suspensão do programa” até que “todos os efeitos sejam avaliados de forma isenta” e “um debate real [tenha lugar] na opinião pública”.

Até agora, qualquer proposta legislativa em tal sentido foi rejeitada, mas o actual contexto político português terá levado o Partido Socialista a considerar novas medidas. A 16 de Novembro, a bancada socialista apresentou uma proposta de alteração ao Orçamento do Estado de 2019, em que sugere que qualquer requerente de um “visto gold” seja obrigado a providenciar aos serviços competentes em Portugal o seu número de identificação fiscal e residência fiscal na jurisdição de origem. Não há nada que me leve a crer que esta iniciativa será rejeitada pelo Parlamento – mas será esta proposta suficiente para assegurar a tão desejada transparência do mecanismo dos “vistos gold”? Provavelmente não.

Aos olhos de Pequim, Portugal não é apenas um país europeu de dimensão intermédia que acolhe o líder supremo chinês para uma visita de Estado. Desde 2004, o país tem desenvolvido uma “parceria estratégica” com a República Popular da China.

A crise financeira, que assolou o país entre 2008 e 2013, serviu como catalisador para a ofensiva chinesa, já que Lisboa, sob condições definidas pela troika, teve de privatizar diversos activos que até aí pertenciam ao Estado português. À data de hoje, o investimento directo estrangeiro da China atinge um total de 12 mil milhões de euros, abarcando sectores desde a energia (Galp, REN, EDP) aos transportes (TAP), passando também pela área dos seguros (Fidelidade), saúde (Grupo Luz Saúde), serviços financeiros, imobiliário e meios de comunicação social – um investimento cujo crescimento não parece abrandar.

Um exemplo disso é a oferta de compra da EDP pela empresa detida pelo Estado chinês, China Three Gorges, que actualmente controla 23,3% do capital – gradualmente adquirido desde o resgate financeiro ao país em 2011. Possuindo a EDP várias subsidiárias no sector das renováveis em Espanha, no Brasil e nos Estados Unidos (para além de receber subsídios do Estado português), não é surpresa para ninguém que esta OPA tenha gerado dúvidas quer no contexto europeu, quer no contexto americano. Enquanto a autoridade da concorrência brasileira já deu luz verde à operação, o actual embaixador dos Estados Unidos em Portugal, George Glass, criticou o acordo, ao considerar que “ter um outro país a controlar parte de infra-estrutura fundamental” portuguesa, como a rede eléctrica, é “um caminho perigoso”.

Importa, por isso, perguntar: por que razão é que outros países receiam a iniciativa chinesa em Portugal mais do que a própria opinião pública e classe política portuguesas? O que é que impede um debate público alargado sobre este tema, como sucede na Grécia, Polónia e República Checa, indo para além das restritas e habituais elites portuguesas?

O facto de a ligação com Pequim ser sistematicamente definida como um caso de sucesso, nos vários quadrantes, constitui certamente um factor de especial importância. O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, referiu no mês passado que o “investimento Chinês tem sido significativo nos últimos anos e é bem-vindo” – especialmente no quadro de crescimento económico luso. Se tal não bastasse, em 2017, o executivo português flexibilizou um artigo do Código de Valores Mobiliários, demovendo uma barreira relativa à imputação conjunta de direitos de voto de accionistas de empresas que têm relações entre si – facilitando assim o caminho à China Three Gorges e à congénere chinesa CNIC (que detêm mais de 28% da EDP actualmente) num cenário de uma eventual OPA.

Para além disso, e em preparação para a chegada do Presidente Xi a Lisboa, um número de iniciativas bilaterais têm sido apresentadas pelo Governo. O recente anúncio da construção do StarLab, um novo laboratório tecnológico em Matosinhos e Peniche, financiado conjuntamente por Portugal e pela China e a inaugurar antes de Março de 2019, com objectivo de promover a construção de microssatélites e a observação dos oceanos, comprova esse reforço das relações luso-chinesas.

Como indiciado em Outubro pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, a elaboração de um memorando de entendimento entre os dois países esteve também em curso, incluindo cinco novos projectos de cooperação sobre os quais se esperam novos desenvolvimentos durante a visita. Entre os vários activos estratégicos de Portugal, o porto de Sines – um de muitos portos europeus que a China pretende adquirir – é uma potencial plataforma de colaboração, já que permitiria a Pequim ligar a rota terrestre e a rota marítima da sua iniciativa Belt and Road – um projecto que já recebeu apoio inequívoco de vários ministros do executivo português.

Significará tudo isto que Portugal pretende permanecer um membro activo da União Europeia e da NATO, ao mesmo tempo que se torna “o porta-aviões do investimento chinês na Europa”? De acordo com um estudo da Carnegie, 90% dos cidadãos vêem a UE como o vínculo institucional mais importante para o país nos dias de hoje, mas a diferença entre a importância relativa dos EUA e da China tem reduzido de forma bastante substancial em comparação à última década.

Sob o argumento de que os dois países têm 500 anos de conhecimento mútuo, incluindo uma transferência bem sucedida da soberania de Macau, o executivo português acredita que a parceria com a China continuará a prosperar, apesar do cepticismo internacional e da visão ocidental que Portugal sempre advocou.

Num momento em que a UE necessita de maior coesão e solidariedade do que nunca, estas duas dimensões pesam na balança dos decisores políticos portugueses ao se ponderar um eventual apoio ou oposição a iniciativas comunitárias que apertem o controlo ao investimento chinês. Aqueles que têm, hoje, os olhos postos em Portugal questionam-se sobre em que medida irá esta visita de Estado influenciar o futuro das relações bilaterais entre as duas nações. Com sorte, não será aquele que possui o ouro que ditará as regras.

(revisão e adaptação para português por Carlos Teixeira, estudante de Políticas Públicas na Universidade de Harvard)

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