“Por cada sobreiro que morre no Alentejo há um camelo que
entra pelo Algarve”
Nos últimos 20 anos foram gastos cerca de 350 milhões de
euros em florestação e reflorestação de 130 mil hectares de sobro e azinho,
investimento que não evitou a morte de milhares de árvores. O declínio do
montado é um facto, mas o Estado “continua a negligenciar” a recuperação dos
povoamentos de quercíneas.
CARLOS DIAS 30 de Dezembro de 2018, 8:55
Nos anos 50 do século XX, Joaquim Vieira da Natividade, o
primeiro estudioso do sobreiro (Quercus suber), identificava nas “pragas,
doenças e má técnica, a trilogia fatal dos montados.” E acrescentava um factor
que naquele tempo teria uma importância relativa: “omitimos o clima, porquanto
este actua em geral apenas como uma causa remota.” Mas o Alentejo está a
tornar-se num sítio impróprio para a árvore nacional de Portugal.
Decorridos que estão quase 70 anos da análise de Vieira da
Natividade, a trilogia continua a revelar a sua presença, mas, desta vez,
reforçada com as alterações climáticas que desde os anos 80 do século XX,
passaram a assumir um papel determinante no declínio do montado de sobro, não
tanto na azinheira (Quercus rotundifolia), espécie arbórea que apresenta maior
capacidade de resistir a longos períodos de seca, como as que ocorreram ao
longo dos últimos três anos.
Pedro Marques Sousa, representante do movimento “Iniciativa
Pro-Montado Alentejo - IPMA”, entidade que agrupa autarquias do Alentejo, Ongs
ambientais, especialistas e produtores florestais, para reclamar a intervenção
no Estado na salvaguarda do sobreiro e da azinheira, explicou ao PÚBLICO a
importância decisiva das alterações climáticas no declínio da floresta
mediterrânica: “Imagine que os sobreiros claudicavam se tivéssemos mais um ano
de seca a juntar às que ocorreram desde 2015, com meses sucessivos de calor. Eu
nem quero pensar o que acontecia à indústria corticeira. Seria um caso muito
sério” frisa Marques Sousa, revelando que cerca de 70% da actual mancha de
montado no Alentejo “está ameaçada se prosseguirem os dias de intenso calor, a
baixa humidade atmosférica e a escassez de água no solo.
Os alertas sobre o declínio das plantações de sobro e azinho
não são de agora. O Inventário Nacional de Mortalidade (INM) do sobreiro e
azinheira realizado entre 2004 e 2006, na Beira Interior Sul, Alto Alentejo,
Alentejo Central, Baixo Alentejo, Alentejo Litoral, Algarve, Península de
Setúbal, Lezíria do Tejo e Médio Tejo, contabilizou a morte de 305 438
azinheiras e 329 323 sobreiros que representa uma perda de produção de cortiça
de 7 409 767 quilos.
O fenómeno é mais evidente “sobretudo nos povoamentos
localizados nas serras de Santiago do Cacém, Grândola e Portel”, frisa o
representante do IPMA. E aponta, como principais causas directas, o “índice de
aridez do solo que é galopante”, e que ocorre ao longo das últimas décadas, “o
maior número de secas” com intervalos mais curtos entre cada uma, e que vierem
a ter um” grave impacto” em inúmeras manchas florestais que passaram a sofrer
de stress hídrico.
“Gradualmente, estamos a perder árvores”, confirma Francisco
Lopes, que integrou um grupo de especialistas que tinha por função estudar a
mortalidade do sobreiro e da azinheira. Apesar de já não exercer funções no
Ministério da Agricultura, por ter atingido a idade da reforma, critica os que
“procuram uma doença para justificar a morte do sobreiro”. Lembra tempos idos
em que “até se arranjou um tratamento baseado numa injecção que era dada no
tronco da árvore “e os tratamentos com DDT nos anos 60 do século passado,
através de pulverizações massivas feitas com meios aéreos.
Mas nem com estes procedimentos os povoamentos de sobreiro
se tornaram mais saudáveis. Com efeito, nos anos 90 os serviços florestais
foram alertados para o elevado número de árvores mortas ou decrépitas que
apareciam em grande parte do Alentejo, impondo a necessidade de se avançar para
a recuperação dos montados.
Entre 1986 e 2000, dados do Ministério da Agricultura referem
que foram plantados cerca de 118 000 hectares de novos povoamentos de sobreiro
e 23 000 hectares de azinheira. Num posterior balanço que a Associação
Portuguesa de Cortiça (APCOR) efectuou ao período que decorreu entre o ano 2000
e 2015, as novas plantações superaram “os 130 000 hectares de sobreiros
plantados em Portugal e Espanha”. Tudo somado, perfaz 271 000 hectares de novas
florestações.
O investimento concretizado na renovação do montado de sobro
foi de quase 350 milhões de euros. “Temos de admitir que o resultado final é um
imenso falhanço” dos programas de florestação financiados pelo Estado, referiu
ao PÚBLICO Nuno de Almeida Ribeiro, professor na Universidade de Évora. Estas
plantações já tinham antecedidas de uma outra campanha que decorreu entre os
anos 40 e 60 do século passado e colocou nos campos do Alentejo, sobretudo no
vale do Sado e do Tejo quase 100 mil sobreiros.
Grande taxa de mortalidade
Apesar de tudo, e decorridas mais de duas décadas das
primeiras campanhas de plantação, alguns dos povoamentos que resistiram às
ondas de calor e ao prolongado tempo seco “estão prestes a fornecer cortiça”
realça Francisco Lopes, enquanto o Ministério da Agricultura reconhece que
apesar do aumento no número de árvores plantadas, persistem “grandes taxas de
mortalidade e um excessivo número de árvores debilitadas.
Com efeito, a plantação de novas árvores no Alentejo,
“regista uma taxa de sobrevivência que não é muito elevada” salienta Domingos
Patacho, coordenador do grupo de trabalho das florestas da Quercus. E explica
porquê: “Plantar sobreiros para aguentarem os verões que estão a fustigar o
Alentejo, torna difícil a sobrevivência das pequenas árvores”. Nas actuais
circunstâncias, “é importante manter algum ensombramento para reduzir também a temperatura
do solo, criando assim condições de desenvolvimento das novas árvores por
beneficiarem da cobertura dos exemplares maiores, que garantem protecção
durante o Verão e das geadas no Inverno.
Francisco Lopes diz que “continua a verificar-se o aparecimento
de clareiras nos povoamentos de montado” e a consequente redução de árvores por
hectare que causam o desaparecimento do ambiente suberícola. E recorda o que
Vieira Natividade dizia nos anos 50: “o sobreiro vive bem em ambiente
suberícola”, mas este ecossistema está ameaçado. Marques Sousa revela que os
adensamentos com sobreiros e azinheiras, plantados em 2005, “foram varridos
pela seca.”
Os montados que há alguns anos tinham entre 100 a 120
árvores por hectare, apresentam agora metade ou até menos. Sabe-se que a perda
de árvores debilita um ecossistema porque deixa de ter condições para resistir
às alterações climáticas, com secas mais recorrentes e alterações nos períodos
em que ocorre a precipitação atmosférica. É neste contexto que “surgem as
pragas e doenças, e o inevitável declínio das áreas afectadas”, acentua o
docente da Universidade de Évora. “Deixar as clareiras abertas é fomentar a
mortandade” sintetiza Marques Sousa.
O risco da desertificação
Acresce ainda um outro constrangimento: a legislação que
protege o sobreiro e a azinheira “está constantemente a criar situações de
excepção” que permitem os “abates, por vezes ilegais, de árvores, para serem
substituídas por culturas superintensivas de olival ou amendoal”, argumenta o
dirigente da Quercus.
A experiência e o conhecimento que Almeida Ribeiro colheu ao
longo de décadas de estudo sobre os ecossistemas mediterrânicos permitem-lhe
concluir que “não há nada de novo para justificar a mortandade do sobreiro”. As
causas dos males que afectam as árvores “estão no tratamento dos solos com
grades de disco, na perda de matéria orgânica e na dificuldade em manter
reserva hídrica” a trilogia de que já falava Vieira Natividade.
Estes factores somados às alterações climáticas, passaram a
alimentar uma opção radical: como o Alentejo deixou de ter condições para a
manutenção dos ecossistemas baseados nos montados de sobro e azinho, vários
empresários agrícolas e alguns investigadores, advogam a sua transferência mais
para norte, sobretudo para a Beira Baixa, alegando-se que, no sul do país, as
temperaturas são cada vez mais elevadas e os períodos de seca mais frequentes e
prolongados.
O presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal
(CAP) Eduardo Oliveira e Sousa já assumiu, publicamente, a necessidade de mudar
o montado, alegando que o Alentejo está a transformar-se num “cemitério de
sobreiros” devido ao excesso de calor que só possibilita a plantação de
oliveiras, certamente com o suporte de rega.
Francisco Lopes reage à proposta que defende a transferência
de sobreiros e azinheiras para fora do Alentejo, com uma frase que atribui a
Gonçalo Ribeiro Teles: “Por cada sobreiro que morre no Alentejo há um camelo
que entra pelo Algarve”. O IPMA repudia o abandono dos montados do sul do país.
Significaria “expor mais de 30% do território nacional à desertificação física
e humana”. O caminho que esta organização preconiza é outro: erguer no Alentejo
uma barreira florestal, solução que “aumentaria a probabilidade de precipitação
e uma maior infiltração de água no solo” factor determinante que iria obstar ao
stress hídrico.
Almeida Ribeiro aponta o dedo ao Estado português. E deixa
um aviso: “Se as entidades públicas não fizerem uma planificação sobre o modo
de intervir e rapidamente, na recuperação do montado, dificilmente teremos
sobreiros dentro de alguns anos”. O docente da Universidade de Évora explica:
“é óbvio que o aumento da temperatura ambiente tornou a Beira Baixa mais quente
e consequentemente mais propícia ao montado. Mas esta realidade não diz que o
Alentejo deixou de ter condições”.
A solução passa pela expansão e adensamento das manchas de
montado no sul do país. Mas tem custos. E estes, superam e muito, os 13,2
milhões de euros que o Governo destinou ao sector no Orçamento de Estado para
2019. O IPMA reclama uma verba de 60 milhões de euros.
Nos últimos surgiu uma nova metodologia baseada no regadio.
Mas para Almeida Ribeiro que tem em mãos precisamente o projecto que está a ser
dinamizado pela Corticeira Amorim, deixa uma advertência: “O projecto de regar
sobreiros só pode ser encarado como uma alternativa de carácter pontual. Não
faz sentido, transformar uma floresta de sequeiro numa floresta de regadio.
Marques Sousa apresenta uma solução alternativa:
“Necessitamos de sombras para proteger o solo o mais depressa possível e isto
só se consegue com o crescimento rápido de sobreiros, que passa pela rega
gota-a-gota, que se tornou indispensável”
O representante do IPMA admite que a revitalização do
montado “não está na agenda diária do Governo” quando se sabe que “ninguém tem
hipótese de pedir dinheiro ao banco para plantar azinheiras”. Garantir dinheiro
por cinco anos, nos apoios à plantação de sobreiros “não garante as árvores
plantadas” refere Marques Sousa, um argumento que é reforçado por Francisco
Lopes :”Temos de ter prémio (apoio) para instalação do sobreiro, para a sua
manutenção e para a perda de rendimento” lembrando que o montado “é um sistema
lento”, pois só ao fim de 25 anos é que se recolha a primeira cortiça da
árvore.
Os dados da APCOR são reveladores: uma das principais
ameaças à sustentabilidade da indústria corticeira encontra-se na
disponibilidade de matéria-prima. Numa campanha normal, o montado português é
capaz de produzir em média 100 mil toneladas de cortiça (75 400 toneladas em
2017), quando na década de 1960 podia disponibilizar 221 mil. Para suprir essa
redução da oferta, as empresas viram-se forçadas a aumentar as suas importações
de 41 mil toneladas em 2009 para 87 mil no ano passado, o que se explica também
pelo forte aumento da procura mundial de produtos de cortiça na última década.
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