As vidas pendulares de Cristina e João têm geografias e
sonhos sem fronteiras
No ano em que Cristina Botana chegou ao Porto, João Nuno
Brochado saiu. Ela deixou a Corunha para estudar modos de habitação informal.
Ele foi para Macau para dar aulas e lastro à criatividade de cineasta. Duas
histórias sobre cidades em movimento com o Porto em comum.
MARIANA CORREIA PINTO
21 de Dezembro de 2018, 7:48
Este é o primeiro de uma série de artigos sobre pessoas que
chegaram e saíram de cidades portuguesas durante o ano de 2018. Acompanhe o
dossier O que chega e o que vai.
No mapa mental de Cristina Botana, a fronteira entre a
Galiza e Portugal sempre foi invisível. A distância da sua cidade à raia era
abreviada por uma mesma história, cultura, modo de ser. E, talvez por isso,
desde cedo se imaginou a viver em terras lusas sem prever sentimentos de quem
se muda para lugar estranho. Com bagagem de turista, fez algumas vezes a viagem
entre a Corunha e o Porto. Enamorou-se de uma cidade cartão-postal. Mas quando
em Outubro se mudou para ficar, descobriu uma outra narrativa. Chegar, diz, foi
mais difícil do que partir. Tecer do zero uma rede de amparos, formar ninho
noutro território, construir rotinas em busca de segurança. Nas ruas do Porto,
a arquitecta já não se cruzou com João Nuno Brochado. Um mês antes, o cineasta
levantara voo rumo a Macau, com sentimento contrário ao da galega: “Foi muito
mais difícil partir. Seria mesmo que fosse para Coimbra ou Lisboa. Existe algo
no Porto que não se encontra em lado nenhum, esta coisa de sermos uma grande
família.”
Há qualquer coisa de errante na vida das cidades. Geografia
em contínua mudança, cais de partidas e chegadas, de alegrias e amarguras, de
sonhos e desistências. Um permanente movimento, gente que se cruza ou se perde.
João Nuno Brochado nunca tinha equacionado sair do Porto. Mesmo quando viveu em
Lisboa alguns meses, por causa de um estágio, sentiu como urgente o regresso ao
ponto de partida. Mas eis o ano 2018 e um dilema a moer-lhe o pensamento: na
sua cidade já tinha feito tudo o que queria – ou, melhor dito, os sonhos
profissionais por concretizar pareciam não caber, por agora, naquelas
coordenadas. O convite para dar aulas feito por um docente da Universidade de
Saint Joseph, em Macau, veio dar um empurrão. A 1 de Setembro, apanhava um
avião para percorrer mais de 10 mil quilómetros entre as nuvens. Assumia a
condição de emigrante.
Filho de mãe professora primária com a aspiração da
arquitectura por resolver e de pai arquitecto com desejos de ver o filho
seguir-lhe as pisadas, João Nuno teve sempre “claríssimo” qual era o seu
caminho. Em miúdo, fazia brincadeiras com a câmara de filmar do pai, resguardo
de memórias dos natais e outras festas de família. E cedo encontrou no cinema
uma “forma de expressão única”, junção da sua faceta de “nerd” com a de amante
das artes. Tinha uns 15 anos quando realizou o seu primeiro documentário, sobre
o Teatro Nacional de São João, cuja pintura do tecto tem dedo do seu tio-avô, o
pintor Acácio Lino. Foi uma coincidência feliz. Uma visita de estudos levou-o
ao imponente edifício e, em resposta ao trabalho da escola, que pedia um relato
do passeio, perguntou se podia fazê-lo com imagem em movimento. Poucos anos
depois, entrava na Escola de Artes da Universidade Católica. Seria cineasta.
Para Cristina Botana o futuro não era tão óbvio. Olhando
pelo retrovisor, recorda a menina a “fazer construções com as peças de madeira”
do pai carpinteiro. Mas o encanto pela arquitectura andava lado a lado com
outros. Tanto que na candidatura ao ensino superior juntou a essa primeira opção
coisas tão variadas como “Política, Biologia, História e Ciências do Mar”,
conta sorridente. “Podia ter sido muita coisa.” Entrou no curso de Arquitectura
na Corunha com fantasias de um ofício onde desenharia belas casas, encantada
com a ideia de urbanismo e construção de cidades. E só com o voluntariado na
ONG Arquitectura sem Fronteiras percebeu a possibilidade de abraçar outra
missão. “Demorei muito a entender o lado social da profissão, no curso não se
falava disso”, lamenta. E era assim mesmo numa cidade onde o direito à
habitação não era assunto resolvido. “Faz falta um código de ética para
arquitectos. Porque as consequências do que construímos devem ser cobradas.”
Cristina decidiu fazê-lo mesmo sem regulamentos decretados.
Na sua cidade começou a prestar atenção à habitação clandestina e informal e
descobriu uma longa matéria para tratar. A quantidade de barracos e casas muito
precárias era significativa. Tanto que, além do trabalho com os Arquitectos sem
Fronteiras, decidiu fazer do tema a sua tese de doutoramento. No terreno, em
contacto com quem habitava nesses lugares, deparou-se com algo inesperado:
“Muitas famílias eram de Portugal, sobretudo de Trás-os-Montes: Chaves,
Bragança, Vila Real”, relata. E à conta dessa descoberta mudou o foco do
estudo: “Queria perceber por que razão havia tantos portugueses a viver ali,
que políticas havia cá para enfrentar esta situação, se a incapacidade de agir
era semelhante à espanhola ou não.”
Em pouco tempo, estava em frente a um computador a mandar
emails para todas as pessoas que pudessem ter contactos na área. Do Centro de
Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto chegaram relatos importantes e a possibilidade de ali se
acomodar como investigadora externa. E então ela viajou. Tecendo uma rede outra
cidade.
Criar laços em Macau não foi tarefa complexa para João Nuno
Brochado. O portuense já lá tinha ido e estabelecido um “grande fascínio” pela
mistura das culturas portuguesa e oriental. Por vezes, por causa dessa
proximidade, quase pode fingir não estar longe: a comunidade lusa é grande e
unida, nos supermercados encontra várias marcas portuguesas e até já descobriu
três restaurantes onde comer francesinha e enganar as saudades. Do outro lado
do mundo, encontrou uma “positividade” que lhe fazia falta. Ao contrário do que
acontece em Portugal, “onde as relações entre as pessoas se concentram muito na
desgraça”, o foco a oriente soou-lhe menos pesado e mais colorido. “Voltei a
acreditar que podia ser diferente”, conta, numa conversa durante as férias de
Natal no Porto.
Esse é um dos aspectos positivos. Em Portugal, João Nuno
tinha conseguido “uma vida segura e estável” depois de um tempo difícil, quando
há coisa de dez anos decidiu assumir o risco de criar uma empresa. Por essa
altura a produção audiovisual no Porto era escassa, mas ele e três amigos queriam
“mostrar o talento e potencial” da cidade. À “ferramenta” chamaram Cimbalino
Filmes – prova mais do que suficiente da proximidade à urbe – e foram ganhando
espaço no mercado: fizeram documentários, publicidade, programas de televisão,
videoclipes. Em 2014, João Nuno lançava a sua primeira longa-metragem
documental, Uma Montanha do Tamanho do Homem, onde conta a segunda vida da
aldeia de Drave.
No Porto, Cristina Botana passou os últimos meses a fazer
trabalho no Lagarteiro, com a companhia de outra investigadora da Universidade
do Minho, o apoio do assistente social José António Pinto e a “general”
Bininha, habitante de Azevedo de Campanhã, como aliada fundamental para que as
portas se abrissem. Em breve, irá para o São João de Deus. Tem falado com famílias,
muitas delas ciganas, que foram realojadas em bairros depois de as suas
habitações clandestinas e informais, os barracos, serem destruídas. Faz
inquéritos, mapeia o problema. E entre a Corunha o Porto diagnosticou um
princípio comum: os habitantes dos barracos da cidade eram famílias sem
resposta habitacional que tinham, com os seus meios, improvisado um tecto. “Vi
muitas semelhanças”, conta: “Se o Estado não funciona estas pessoas substituem
o Estado.”
É uma não-solução. “Tirar alguém de um barraco para a
colocar num bairro não é, por si só, uma resposta. Ajuda a dar dignidade às
pessoas, mas a exclusão é estrutural e mantém-se”, lamenta a arquitecta de 34
anos. Em Espanha, as respostas têm-se centrado nos “despejos”, afirma, numa
espécie de “chantagem” apresentada como hipótese única: “Ou renunciam ao seu
modo de viver ou não têm nada.” Por cá, há também muito por fazer.
Por causa da sua tese, Cristina Botana alargou horizontes.
Do Porto cidade turística, da Torre dos Clérigos e Casa da Música, foi até
Porto oriental. “À cidade real.” Quando olha para a doutoranda em início de
trabalhos vê ilusões sem fim: “A minha intenção era fazer uma proposta de
solução. Tinha ideias maravilhosas de como resolver as coisas”, recorda. Mas
entre a teoria e o terreno a distância revelou-se imensa: “O que falhava não
era tanto a política ou o programa de integração com o espaço, mas sim o
sistema”, analisa: “É a nossa forma de fazer cidade que está a afastar as
pessoas”.
A frustração revelou-se grande. Se havia várias políticas,
algumas bem-intencionadas, e mesmo assim tanta gente continuava sem habitação
digna, “o que estaria a condenar estas pessoas à exclusão?” Cristina Botana
esboça um leve sorriso, entre o inconformismo e a desilusão. A sua tese
apresentará conclusões apenas no próximo ano, mas a arquitecta já sabe que elas
terão raízes em várias áreas do saber. E serão sempre abstractas.
Ficará pelo Porto, pelo menos, até Fevereiro. Mas já foi
avisando a família da relação séria criada com Portugal, como quem antevê a
continuidade da ligação. Porque nunca se sentiu estrangeira na cidade. Porque
se encantou com o “espírito cidadão” mais apurado do que aquele que encontrava
na Galiza: “Não sei se foi por em Portugal ter sido a cidadania a derrotar a ditadura
enquanto em Espanha ela foi enterrada”, interroga-se.
João Nuno Brochado há-de regressar ao Porto um dia. Não faz
pontaria no calendário, avesso que é a previsões excessivas, mas a sensação de
casa ele sabe onde encontrará sempre. No ano da sua saída, que foi o da chegada
de Cristina Botana, ele viu projectos pessoais ganharem corpo (“às vezes os
anos parecem salas de espera, onde apenas aguardamos que algo aconteça. Neste
pude fazer o que quis”), ela arriscou trocar um emprego seguro por um futuro
interrogado e um sonho de satisfação (“mais do que dedicar toda a minha energia
a tentar encontrar um êxito laboral, tarefa ingrata nesta realidade, percebi
que me fazia mais feliz abrir caminho na área que realmente me motiva e onde
acho que posso fazer algo”). Para os dois, 2018 foi ano de “inquietação”. É que
se a viagem deles se fez em direcção aos sonhos, a do mundo parece mover-se no
sentido dos extremismos. E esse é o único movimento que não lhes interessa.
tp.ocilbup@otniP.anairaM
António voltou a uma nova Lisboa, a mesma que expulsou Luís
Um voltou a Lisboa depois de seis anos como estrangeiro na
Noruega. O outro teve de trocar a capital pela outra margem porque a cidade
deixou de ter casa para ele. Duas histórias sobre quem chega para estar e quem
vai mas quer ficar.
CRISTIANA FARIA MOREIRA
22 de Dezembro de 2018, 7:42
Este é o segundo de uma série de artigos sobre pessoas que
chegaram e saíram de cidades portuguesas durante o ano de 2018. Acompanhe o
dossier O que chega e o que vai.
Será um lugar-comum dizer-se que as cidades são um bocadinho
como as estações, onde vidas se repetem, cruzando-se os que chegam para ficar e
os que vão mas querem voltar. É assim há mais ou menos meio ano na vida de Luís
Oliveira, 27 anos, o para lá e para cá via ponte Vasco da Gama entre o trabalho
no Prior Velho, às portas da capital, e a casa na Quinta do Anjo, em Palmela.
Um algarvio apaixonado por Lisboa que acabou empurrado da capital para a outra
margem do Tejo porque a cidade deixou de ter casa para ele.
As horas das despedidas acabam por ser também as dos
encontros, de quem voltou, quem sabe, para sempre ficar. António Cartaxo, 38
anos, não ia à doca de Santo Amaro, “seguramente”, há quase 20 anos. Num dia
gélido de Dezembro, ao pé do rio, recua à loucura dos tempos de estudante do
Instituto Superior Técnico, quando ali esteve pela última vez.
Na sua cabeça, há uma pala sobre campos de padel e um
elevador instalado num pilar da ponte a mais. Depois de seis anos fora, em
Oslo, na Noruega, voltar a Lisboa é descobri-la outra vez. Voltou quando se
começou a sentir estrangeiro na outra cidade. “Deu muito medo ir, mas deu
também muito medo voltar”, diz.
António chegou. Luís partiu. Não se conhecem porque se
desencontraram numa Lisboa que lhes é hoje estranha. Acabaram, com pouco mais
de dez anos de diferença, por chegar à mesma cidade atrás dos sonhos e de um
canudo. António saiu de Tomar para estudar Engenharia Mecânica. Luís trocou o
Algarve pela capital por um curso em Administração Pública — "que acabou
por não correr muito bem" —, para depois se lançar à comunicação social.
Depressa perceberam que era ali, em Lisboa, que acabariam
por ficar. Havia emprego, casa e amor. Mas a cidade começou a não ser para
eles, o país não lhes dava o que precisavam.
A falta de reconhecimento, a instabilidade, mas também a
falta de desafio remoíam. António casara-se em 2007. As duas licenciaturas e o
mestrado da mulher não lhe garantiam um horário completo numa escola para dar
aulas de História. Era preciso andar de lado para lado, em três, quatro escolas,
para ter um salário decente.
Compraram uma casa no Alto de S. João. Uns dias depois, o
Lehman Brothers, um dos maiores bancos de investimento americanos, falia. A
crise, sorrateiramente, começou a estalar. Começava a ser altura de ponderar
ir.
António não pode dizer que quisesse ser emigrante. Aliás,
António já tinha tentado sê-lo em 2006, quando arranjou trabalho em Zurique, na
Suíça. “Viajei no dia 1 de Setembro de 2006 e voltei no mesmo dia”. Foi o
emigrante “mais curto da história”, como diz. Pensou que nunca mais saía do
país.
Ainda antes de chegar “o ferro quente” da crise decidiram
que era altura de sair. Foram a uma feira de emprego, onde estavam
representados vários países da Europa. Um deles era a Noruega. E António
conseguiu logo uma oferta. “Achava que era uma coisa excepcional”, diz.
Foi pensar um pouco, fazer as malas e ir. Os trabalhos não
lhes enchiam as medidas, eram mal recompensados. E era também preciso ganhar
mais mundo. Saíram de Lisboa num voo das sete da tarde e chegaram a Oslo já de
noite. Da primeira vez que foram ao supermercado, começaram a olhar aos preços.
“Onde é que eu me vim meter?”. Terá sido o primeiro momento em que se sentiu
realmente estrangeiro numa cidade. “Senti-me tão pequenino naquele momento. Se
calhar não fui feito para este mundo. Se calhar não vim preparado o suficiente
para levar com esse choque”. Às vezes ainda não entende como foi possível
passarem seis anos.
A casa da outra margem
Luís sempre morou em Lisboa. Primeiro a partilhar casa,
depois com uma antiga namorada num tempo em que um T1 novo na rua Alexandre
Herculano — uma perpendicular à Avenida da Liberdade — custava 400 euros.
Acabou por ter de sair daquela casa. O trabalho estava
complicado e viu-se obrigado a voltar, em 2015, para o Algarve e para a casa
dos pais. “Foi muito estranho, depois de seis, sete anos a viver sozinho,
praticamente independente, voltar novamente para casa dos pais”, conta.
Regressou à capital, um amigo cedeu-lhe o quarto porque
também ele estava numa situação complicada perante a falta de emprego. Arranjou
um T2 em Chelas, Marvila, por 600 euros, “um completo achado”, diz, onde ficou
por um ano e meio. O senhorio acabou por querer renegociar a renda e Luís saiu.
A namorada, Filipa, estava, na altura, também a dividir casa
e apetecia-lhe sair da loucura de Lisboa. Fizeram as malas e atravessaram a
ponte para ir viver para um anexo da casa dos pais da namorada, na Quinta do
Anjo, em Palmela.
“Começamos a pensar que, se calhar, arrendar casa já não
vale a pena porque o arrendamento está altíssimo. E para não termos uma casa
que não tenha 30 metros quadrados teríamos de despender mais de metade dos
nossos ordenados”, conta Luís. “Para duas pessoas em início de vida darem 10%
de uma entrada de uma casa é completamente impossível. Se não tens alguém que
possa chegar à frente com o dinheiro não tens solução”, lamenta.
Nunca teve carro em Lisboa e nunca sentiu falta dele. “Era
menos um custo que tinha, menos uma despesa, menos uma preocupação”, nota. Hoje
é impossível movimentar-se sem ser de carro. Ele trabalha no Prior Velho,
Filipa em Miraflores. São obrigados a ter dois carros. Demoram entre 35 a 45
minutos a chegar a Lisboa, sempre pela auto-estrada.
Luís faz 90 quilómetros diários. Quando acontece ficar sem
carro, demora quase três horas a chegar ao trabalho. É uma maratona, dada a
quantidade de transportes que tem de apanhar: De casa apanha um autocarro até
Palmela. Depois um de Palmela a Pinhal Novo e outro para Lisboa até ao Oriente,
onde apanha Carris para o Prior Velho. No total, gasta 10 euros, praticamente o
que gasta em combustível.
Luís e Filipa mudaram-se no início do Verão. A ideia era que
fosse por um período temporário, de “um, dois, três meses no máximo”. Não pagam
renda. E o temporário está a tornar-se cada vez mais definitivo. A cada semana,
a indecisão sobre o que fazer consome-os: ora voltar a Lisboa, ora continuar na
margem Sul. Comprar casa ou arrendar. Já se torna difícil suportar o trânsito.
Hoje a vida deles tem de ser muito mais planeada. Ir a Lisboa é um projecto muito
bem desenhado: sair com tempo, a uma hora que dê para evitar trânsito, tanto
para a ida como para a vinda, pensando já onde se pode estacionar o carro na
congestionada capital.
“Sentimos falta das nossas raízes”
António acabou por ir ficando em Oslo. O trabalho era bom e
certo, numa empresa reconhecida. O filho nasceu há dois anos e meio. Compraram
um apartamento. “Isto é para ficar aqui para a vida”, pensou.
Mas aquela ideia de ser emigrante, a vontade de voltar, o
sentir-se cada vez mais estrangeiro na cidade começaram a matutar-lhe a cabeça.
Ao mesmo tempo, sentia que os portugueses que também lá estavam “queriam era
esquecer-se disto e não se envolver mais com o país”. “Aquilo não é o melhor
dos mundos. Não posso dizer apenas que aquilo é fantástico, mas também não
posso dizer que aquilo é o pior dos mundos”, nota.
O que podia mantê-los lá, o filho, que teria acesso a um
sistema de saúde e de educação dos melhores do mundo, acabou por ser também o
motivo do regresso. “Há uma grande diferenciação entre as pessoas que são
nativas e os que não são. Se eu tivesse ido hoje para lá, teria tido uma
atitude completamente diferente. Fui para lá com uma atitude extremamente
humilde”, diz.
Era preciso ser mais pragmático, mais duro, no fundo. Essas
diferenças nunca o incomodaram muito, até que começou a sentir uma distinção
por causa do filho “não ser nativo norueguês”. A par disso, o miúdo falava
constantemente nos primos e nos avós. Desde que ele nasceu, as malas estavam
sempre feitas, Vinham oito, nove vezes a Portugal. “Sentimos falta das nossas
raízes”. Até do Sol. “Para um português que está habituado a ir para a Costa da
Caparica ao fim-de-semana passear no Inverno é complicado”, diz. A neve
fechava-os muito tempo em casa.
Por tudo isto decidiram voltar. Aterraram os três em Agosto
e a vida, hoje, “é muito mais leve”. Arrepiou-se quando voltou para ficar. O
plano não era ficar pela capital, mas sim em Tomar, onde já estavam a recuperar
uma casa. Mas a mulher, professora de História, acabou por ficar colocada numa
escola em Lisboa, depois de tantos anos fora do ensino e mudaram-se novamente
para Lisboa.
Hoje é tudo novo. Há ruas novas e outras onde o carro agora
não entra, ou se circula ao contrário. O metro expandiu-se, o Terreiro do Paço
tem uma cara lavada, o Saldanha tem mais espaço verde, e a Avenida da República
tem árvores no meio, só para dar alguns exemplos.
A cidade está mais bonita, diz, mas andar de um lado para o
outro é mais difícil. Assim como o estacionamento: há menos e é mas caro. E é
difícil ignorar a quantidade de pessoas que anda nas ruas. “Acho muito bem que
se venda a cidade para fora, que se ganhem prémios”, só que ainda assim, diz
António, é preciso evitar “erros políticos” e continuar a assegurar que as
pessoas “podem continuar a viver [na cidade]”.
PÚBLICO -
1.
"Tenho esperança de voltar"
2.
Luís sente isso na pele, como se não houvesse
lugar para ele numa cidade que está “definitivamente na moda”.
Para António, as coisas têm estado a correr bem. O filho já
não fica agarrado em casa ao tablet e brinca na rua sem serem precisos aqueles
casacos todos, gorros e cachecóis. No ano passado, António lançou-se a abrir
uma empresa de engenharia em Portugal. Em Março, começou a ter os primeiros
projectos e isso também pesou na decisão pelo regresso.
“Estou muito feliz”, confessa. Estar emigrado, diz, “obriga
a fazer grandes sacrifícios”. E voltar não é fácil. Esses anos fora de casa
deram-lhe parte do mundo que procurava. “Olho para trás e emociono-me porque
vejo que a pessoa que foi não é a mesma que voltou. Éramos dois parolos,
vínhamos da província. E agora olho para trás e vejo a pessoa em que me
tornei…”, diz com os olhos cheios de Tejo.
Se lhe deu muito medo ir embora, também deu medo voltar.
Quando se despediu dos colegas escreveu-lhes uma carta com uns versos dos Pink
Floyd:
And then, one day, you find
Ten years have got behind you
No one told you when to run
You missed the starting gun
“Quando dás conta,
passaram-se dez anos por ti e ninguém disse quando é que te devias mexer.
Ninguém te vai dizer quando vais ter de tomar a decisão se não fores tu próprio
a tomá-la”, diz.
Se para António este regresso foi uma escolha, para Luís a
ida foi uma imposição. “Eu sou completamente apaixonado por esta cidade. Sempre
quis morar aqui. Tenho esperança de voltar”. Enquanto isso, espera que a cidade
volte a dar-lhe o seu lugar.
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