Não são só as democracias que morrem devagar. O SNS também
Tal como as democracias, o SNS também pode morrer devagar.
Se pensarmos bem, muito tem ele resistido às mais ou menos subtis tentativas de
matá-lo devagarinho.
Teresa de Sousa
16 de Dezembro de 2018, 7:10
1. Temas não faltam, infelizmente, para escrever neste
sábado nebuloso em Lisboa, recém-chegada dos graus negativos de Viena, onde
descobri um debate mais intenso do que imaginaria sobre as consequências
(bastante negativas) da participação de um partido de extrema-direita no
governo de Sebastian Kurz. Theresa May veio de Bruxelas com muito pouco. É cada
dia mais penoso e incompreensível ver um país orgulhoso da sua liberdade e da
sua História mergulhado numa crise existencial profunda, sem saber para onde
vai, às voltas com uma decisão que terá implicações profundas no seu futuro e –
é bom insistir – no futuro da Europa. Talvez os líderes europeus já não possam
fazer grande coisa para ajudar May a encontrar uma solução que seja a menos má
possível. Talvez tenham razão quando dizem que qualquer sinal de boa vontade
terá reduzido efeito sobre um Parlamento onde são demasiados os que querem
chumbar o acordo de saída. Mesmo assim, é recomendável alguma humildade e
alguma contenção nos títulos dos jornais. Nem os 27 estão tão unidos como possa
parecer; nem a Europa respira saúde; nem o que vier a acontecer ao Reino Unido
será indiferente. Uma saída sem acordo será um choque profundo também na
economia europeia. A saída, a bem ou a mal, altera os equilíbrios políticos
europeus num sentido que ainda se está para ver que custos terá para a
integração. A União está, ela própria, a braços com uma crise profunda e, o que
é pior, sem que se vislumbre entre os seus governos mais influentes a coragem
de inverter o caminho. O último Conselho Europeu foi prova disso. A reforma da
zona euro, aprovada depois de um ano de longas negociações, está longe daquilo
que sabemos necessário para colocá-la à prova da próxima crise. Berlim apenas
cedeu o mínimo dos mínimos a Paris para poder dizer que fez alguma coisa. A
Alemanha continua a enfrentar o mesmo dilema: liderar mas sem pagar o custo da
sua liderança. E liderar tem custos, que acabam por transformar-se em
proveitos. Os EUA sempre pagaram um custo elevado, financeiro e humano, para
liderar o mundo ocidental e manter a ordem liberal que construíram. É
justamente porque Trump já não quer pagar esse custo que vivemos numa crescente
e perigosa desordem mundial. Os alemães querem liderar apenas com ganhos. É
impossível. Macron obteve uma pequena vitória com um pequeno “orçamento” da
zona euro. Enfrenta em casa uma profunda crise que todos esperamos que consiga
vencer a bem da França e a bem da Europa. O resultado é incerto. A Europa não
resistiria a uma França à deriva e, muito menos, a uma França nas mãos de
forças políticas extremistas. Marine Le Pen é a única que sobe nas sondagens
com a revolta dos “gilets jaunes”.
2. Mas nada disto me consegue afastar do que se passa neste
“santo” país, sobre o qual todos os europeus que encontro me pedem a explicação
para o duplo milagre de não termos um partido de extrema-direita e termos, pelo
contrário, um Partido Socialista que foge ao destino triste dos seus congéneres
europeus. Dou as explicações que todos nós sabemos, desde a vacina do fascismo
até à moderação dos socialistas portugueses, que lhe está nos genes, passando
pelo instinto de sobrevivência dos partidos à sua esquerda, que precisam de
mostrar aos seus eleitores que servem para alguma coisa, para além de “deitar
tudo abaixo”. Mas começo a pensar que este aparente mar de rosas pode não durar
eternamente. Perguntava-me a mim própria como é que os enfermeiros conseguiam
pagar as contas no fim do mês com tantos dias de greve. Uma greve que, de si
própria, é inumana e irresponsável. Um fundo sindical? Mas financiado por quem?
Só por quotizações? Finalmente, vejo uma notícia esclarecedora: “crowdfunding”.
Ora aí está, afinal Portugal não é tão atrasado como por vezes imaginamos. Tem
uma sociedade civil activa, que se associa e se mobiliza pelas boas causas, que
está disposta a verter dinheiro no sindicato dos enfermeiros para lhe financiar
uma greve com a qual se identifica. Não me parece. Não somos assim. E o
problema é que, tal como as democracias, o SNS também pode morrer devagar. Se
pensarmos bem, muito tem ele resistido às mais ou menos subtis tentativas de
matá-lo devagarinho.
3. Durante anos assistimos a um intenso debate, aqui e nas
outras democracias europeias, sobre a impossibilidade de sustentarem o seu
modelo social. A ideia de um serviço nacional de saúde “para os mais pobres”
foi debatida até à exaustão, animada pelas mentes neoliberais que viam nos
mercados e na sua sabedoria na repartição dos recursos a resposta ao problema.
Houve reformas, naturalmente. Nos sistemas de pensões, nas leis laborais, na
saúde e na educação. Por exemplo, no Reino Unido, entre a saúde e a educação
gratuitas, a opção foi feita pela manutenção da universalidade do NHS e pelo
pagamento de propinas nas universidades. O que está certo. Se há um pilar
estruturante do princípio da igualdade de oportunidades e da garantia de uma
vida decente para todos os cidadãos numa democracia, ele é justamente um serviço
de saúde gratuito e universal. Felizmente, esse debate já passou. Em Portugal
deixou marcas: o florescimento do sector privado da saúde, o que em si mesmo
não seria um mal, desde que não ponha em casa o SNS. Convém, no entanto,
lembrar que, na Europa, quanto mais rico é um país mais a medicina privada é
residual e não o contrário. Além disso, sempre que estou na fila de atendimento
de um hospital privado, o cartão da ADSE ainda bate o dos seguros privados.
4. Agora, a via para a destruição do SNS parece ser fomentar
o seu descrédito. Por via da greve de longa duração dos enfermeiros (que fazem
greve no público mas continuam a trabalhar no privado, onde os seus salários
não são superiores), por via das constantes críticas aos serviços que não
funcionam (às vezes justas, mas muitas vezes parcelares). Os enfermeiros querem
ganhar mais. Muito bem. O que não consigo entender é que não reivindiquem um
sistema mais próximo do britânico (falo dele porque o conheço razoavelmente) em
que as funções exercidas por eles são muito mais vastas e de maior
responsabilidade. Ora, nos casos em que os médicos querem os enfermeiros a
desempenhar novas funções, o que dizem os sindicatos? Escravatura. Vá lá
perceber-se o que querem. Depois, há o outro lado da questão, que é a realidade
do país. Quando uma doença como o cancro atinge uma pessoa de rendimentos
médios (a designada classe média, largamente maioritária), ela aguenta até ao
segundo ou terceiro tratamento de quimioterapia. Ao quarto tem de passar para o
público, que a recebe sem perguntas. Porquê? Porque os tratamentos inovadores
são de tal modo caros que os 10 ou 20 por cento que é preciso pagar para
completar o seguro de saúde não são, pura e simplesmente, comportáveis. Convém
acrescentar que o SNS tem ao seu dispor o que de mais avançado e inovador
existe nos países mais desenvolvidos e não regateia a sua aplicação.
5. Talvez valesse a pena parar para pensar no crowdfunding
dos enfermeiros ou nas eternas reivindicações dos professores. Eles, como nós,
mereciam melhor do que ver, há décadas, o mesmo Mário Nogueira na televisão a
bradar contra o Governo da altura sobre tudo e coisa nenhuma (curiosamente,
talvez por distracção minha, nunca o ouvi reclamar melhor ensino para os
alunos) ou o mesmo Marta Soares (na sua versão de bombeiro) ameaçar o Governo
de “incendiar” o país se houver alguma beliscadela no statu quo dos bombeiros
voluntários. Os bombeiros voluntários são dignos do maior respeito. O problema
é quando as pequenas estruturas de poder montadas em cima deles por esse país
fora querem, em primeiro lugar, preservar esse seu pequeno poder, e só depois
cuidar das condições de resposta mais eficaz aos incêndios.
6. Fui recentemente falar a um grupo de pessoas que queriam
debater os riscos que as democracias hoje estão a enfrentar. Havia muita gente
nova. Depois de uma intervenção um pouco pessimista e de um debate muito
interessante, uma das jovens perguntou-me: “o que podemos fazer?” Por breves
segundos, fiquei sem fala. Depois, disse o que me veio à ideia. Devíamos
comportar-nos mais como cidadãos e menos como enfermeiros, professores,
magistrados, etc., etc.. Só depois comecei a pensar naquilo que tinha dito.
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