terça-feira, 11 de dezembro de 2018



A alimentação é o que mais pesa na pegada ecológica de Portugal / Por detrás da “máscara” da indústria pecuária, esconde-se A Vaca que Não Ri /Alterações climáticas: ninguém repara nas vacas a pastar


Um quilo de bife emite tanto CO2 como andar 150 km de carro

08.12.2018 às 8h00
https://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-12-08-Um-quilo-de-bife-emite-tanto-CO2-como-andar-150-km-de-carro

Reduzir o número de vacas e alterar a dieta alimentar fará bem à saúde e ao ambiente. Governo propõe reduzir o número de cabeças de gado bovino para metade
CARLA TOMÁS

Já se sabia que comer carne vermelha em excesso faz mal à saúde. O que muitos não sabiam é que o seu consumo excessivo também é prejudicial para o ambiente, seja ao nível dos gastos e da contaminação de água e de solos, seja nas emissões de gases de efeito de estufa, como o metano ou o dióxido de carbono. Globalmente, o sector agrícola — com particular peso do sistema de produção de carne e de produtos lácteos — é responsável por um quinto das emissões de dióxido de carbono e gases equivalentes (CO2eq). E em Portugal por 10%.

Globalmente, o sector agrícola — com particular peso do sistema de produção de carne e de produtos lácteos — é responsável por um quinto das emissões de dióxido de carbono e gases equivalentes (CO2eq), segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). E multiplicam-se os estudos internacionais a alertar para a necessidade de se mudar radicalmente a dieta alimentar, com cortes substanciais no consumo de carne, sobretudo nos países mais ricos, onde em média se ultrapassam as 2500 calorias de carne e gordura diária recomendadas.

É nesta linha que surge a proposta do Governo de reduzir para metade o número de bovinos até 2050, incluída no Roteiro para a Neutralidade Carbónica — apresentado terça-feira em Lisboa e que será levado à Cimeira do Clima da ONU na Polónia (COP24), na próxima semana. O documento (que estará em consulta pública até fevereiro e pode sofrer alterações) indica que a agricultura contribui para cerca de 10% das emissões de CO2eq nacionais e que mais de dois terços destas emissões têm origem na produção pecuária, com o gado bovino à cabeça. Segundo vários estudos, por cada quilo de bife produzido em sistema semi-intensivo em Portugal são emitidos até 27 kg de CO2eq, resultantes da digestão dos ruminantes e da aplicação de fertilizantes nas pastagens — é o equivalente a uma viagem de carro de 146 quilómetros.

O anúncio caiu como uma bomba no sector agrícola, sobretudo porque o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, assumiu publicamente que “tudo isto vem num quadro de maior liberalização do comércio mundial” e que “a carne de vaca vai chegar a Portugal a preços mais competitivos”. Portugal importa cerca de metade da carne que consome, e exporta animais vivos, o que eleva a pegada carbónica, tendo em conta os custos de produção, transporte e distribuição.

A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) manifestou “surpresa e oposição” ao anunciado, argumentando que a medida pode “comprometer o crescimento económico”. O presidente da CAP defende que o país “tem é de reduzir o que importa e não o que produz”. E sustenta que “se as pastagens biodiversas fixarem 500 toneladas de CO2 e emitirem 140, há um balanço positivo”.

Em socorro dos agricultores, o secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, sublinha que “a componente animal é absolutamente essencial no sistema agrossilvopastoril” nacional, que o assunto deve ser “debatido em profundidade” e que as metas agora apresentadas “são um ponto de partida e não de chegada”.

Matos Fernandes assume que este é o sector que menos controla, já que “depende muito da Política Agrícola Comum (PAC)”, mas acredita que a União Europeia “vai ser coerente com os compromissos com a neutralidade carbónica” apresentados recentemente, e que “definirá uma PAC que garanta mais apoios e medidas agroambientais mais eficazes”.

A nova PAC “dá muito mais flexibilidade aos Estados-membros para definirem os instrumentos que vão utilizar para fazer face às alterações climáticas”, afirma Francisco Avillez, que coordenou o sector agrícola deste roteiro. O economista agrário admite que Portugal consiga atingir a neutralidade carbónica “sem uma redução tão significativa do efetivo bovino”, mas afirma que haverá instrumentos de política que passam pelo fim de subsídios que levarão naturalmente à redução do número de vacas. Para o especialista, é necessário também apostar nos sistemas extensivos e na agricultura biológica e de precisão.

É tudo uma questão de comunicação e só agora o tema está a entrar na agenda em Portugal. “A carne de vaca está para a agricultura como o carvão e o petróleo estão para a energia”, sublinha Júlia Seixas, especialista na área da Energia e Alterações Climáticas, lembrando que no sector da energia e dos transportes já se está a trabalhar há mais tempo. “Temos que reduzir o consumo de carne”, afirma, salientando que este debate começa agora em Portugal, mas já tem caminho feito noutros países. Um inquérito recente no Reino Unido indica que 35% dos britânicos são vegan, vegetarianos ou reduziram drasticamente o consumo de carne por razões de saúde, de ética perante os animais e de sustentabilidade ambiental.

“A questão do clima e das emissões de carbono é absolutamente prioritária e os cidadãos têm que perceber que temos mesmo de impedir que as temperaturas subam mais de 1,5°C”, reforça Alfredo Cunhal Sendim, que se dedica à produção agroecológica no Alentejo. “A soberania alimentar portuguesa só é possível com uma alimentação baseada na dieta mediterrânica, que exige muito menos carne”, diz.

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