EDITORIAL
A revolução francesa do século XXI
ANA SÁ LOPES
9 de Dezembro de 2018, 7:00
O Partido Socialista Europeu reuniu-se este fim-de-semana em
Lisboa, com António Costa como anfitrião e vencedor - afinal, conseguiu não só
não destruir o PS como até aumentar as esperanças nas próximas legislativas, depois
de em 2015 ter ficado atrás da coligação PSD/CDS.
Em reuniões do passado, aparecia também um senhor chamado
François Hollande, que ganhou a presidência de França em 2012, debaixo de um
vendaval de expectativas depois de derrotar Nicolas Sarkozy - infelizmente para
ele e para os socialistas europeus, elas saíram todas goradas.
Depois da implosão do socialismo francês, apareceu Emmanuel
Macron, jovem e belo e capaz de mobilizar as tropas descontentes com os
"políticos do sistema". Perante a imagem politicamente envelhecida de
Hollande, Macron - que fez parte do governo PSF sem ter sido salpicado pela
desgraça - era a luz. A criação do movimento En Marche, quando ainda fazia
parte do governo, galvanizou eleitores descontentes com o sistema. Sendo
obviamente um homem do sistema, Macron era a coisa mais moderna, desembaraçada
e anti-sistema para uma França onde os socialistas agonizavam e Marine Le Pen
se impunha como uma líder de massas.
Mas o dia de glória, como assinala um verso da Marselhesa,
não tinha chegado com a eleição de Macron. Há um mal-estar complexo que
atravessa a Europa (e as Américas) e para o qual as forças políticas
tradicionais não estão a encontrar resposta. Esse mal-estar é tão difuso como
os coletes amarelos, uma multidão sem rei nem direcção. A classe média está
esgotada e não tem porta-vozes. Em Itália, a implosão do sistema começou mais
cedo, com Berlusconni. Salvini é a continuação do mesmo filme.
Se o anteriormente fabuloso Macron sair derrotado da
revolução francesa dos coletes amarelos, abre-se a caixa de Pandora que até
agora os franceses tinham conseguido travar: a ascensão de Marine Le Pen ao
poder. Infelizmente, a caixa parece já razoavelmente aberta. E não há um
socialista francês que possa aparecer na reunião do Partido Socialista Europeu
com um programa para travar a emergência da extrema-direita no coração da
Europa. E essa falência socialista é um dos problemas mais graves do continente.
Pistas para perceber a “insurreição amarela”
O movimento “gilets jaunes” “inscreve-se mais no tipo de
sociedade que se desfaz do que no da que nasce”, frisa Behar.
JORGE ALMEIDA FERNANDES
8 de Dezembro de 2018, 20:15
O movimento “gilets jaunes”? é a fórmula francesa do
mal-estar de todo o Ocidente. Nascido da “França periférica”, não é uma réplica
directa dos populismos correntes na Europa ou na América. Mas nasce do mesmo
caldo de cultura. Assume-se como manifestação de cólera contra o establishment
francês. O seu alvo final é o Presidente Macron, enquanto cabeça do Estado
francês e do sistema político. Daí o grito unificador: “Macron, demissão!” Em
poucas semanas, transformou o quadro político francês.
É um movimento de carácter “defensivo”, ou seja, não quer
conquistar o futuro e “revela a história de uma França que desaparece”, na
expressão do geógrafo Daniel Behar. Exprime um retrocesso político e encerra um
desafio directo à democracia representativa. Sigamos algumas e incertas pistas
de análise, porque se trata de um movimento ainda opaco e resistente às
classificações.
Esqueçamos os antecedentes franceses, as grandes “emoções
populares”, desde as “jacqueries antifiscais” da Idade Média às ondas de
protesto mais recentes, como o movimento grevista de 1995 contra a reforma da
segurança social e do sistema de aposentações, ou ainda as greves e a violência
a propósito de outra reforma das aposentações, em 2010. Nestes dois movimentos
havia sindicatos, de trabalhadores e de estudantes, e o poder tinha
interlocutores. Hoje, por definição, não há interlocutor, logo não pode haver
negociação.
O “caderno de queixas” é conhecido e as causas vão muito
para lá da tributação dos combustíveis: a estagnação do nível de vida desde
2008 e o crescente aumento de despesas e encargos das famílias. Foi uma mistura
explosiva. Mas avisa o economista Pierre-Yves Cossé, antigo comissário do
Plano: “Os comentadores procuram as causas da crise francesa nos erros e nas
faltas cometidas pelo Presidente da República desde a sua chegada ao Eliseu.
Elas existem certamente, em particular no terreno fiscal”, mas isto passa ao
lado do essencial.
“A doença é muito mais extensa, ultrapassa as nossas
fronteiras e inscreve-se na longa duração. A primeira fonte de mal-estar do
Ocidente é a recomposição do mundo. O aparecimento de novos ricos significa uma
transferência maciça de riquezas e de poder, principalmente em proveito da Ásia
e da China. (...) As elites falharam, foram incapazes de explicar aos cidadãos
o advento do novo mundo e as mudanças individuais e colectivas.” Todos as
frustrações que alimentam os populismos xenófobos e autoritários partem deste
mesmo terreno.
Potencial explosivo
O movimento “gilets jaunes”? “inscreve-se mais no tipo de
sociedade que se desfaz do que no da que nasce”, como frisa Behar. Observa o
sociólogo Michel Wieviorka: “Os ‘gilets jaunes’? encarnam sobretudo os que se
recusam a pagar o preço desta transformação, são o actor defensivo de um modelo
que se começou a decompor com o fim dos Trinta Gloriosos.” Travam uma “guerra
de atraso”.
Não falam da “entrada num mundo novo em que teriam um papel
criador”. Mas são um movimento novo “se considerarmos as formas de mobilização
que conjugam o recurso a tecnologias modernas de comunicação e a presença
física em múltiplos lugares que permitem a cobertura de todo o território
nacional”.
A violência não é inerente ao movimento dos que se definem
retoricamente como “os esquecidos e os invisíveis” da sociedade. A violência é
exercida por franjas radicais, de extrema-esquerda e extrema-direita, mas
desempenha um papel crucial: são os actos violentos que asseguram a intensidade
da cobertura mediática. De resto, ela tende a instalar-se quando um movimento
não se consegue traduzir numa acção concreta e se transforma em ruptura que
passa a opor inimigos. É um risco inerente ao fenómeno “gilets jaunes”?. A
vandalização de monumentos nacionais é uma poderosa mensagem.
Macron encostado à parede
“O ‘gilets jaunes’? exprime cólera, e também violência,
perante as instituições do país”, resume o americano Benjamin Haddad, que
investiga a Europa e acompanhou a campanha eleitoral de Macron. Qualifica o
movimento como “o próximo estágio do desafio populista às democracias
ocidentais.”
O politólogo Gérard Grunberg analisa a dimensão política do
conflito. Se nas democracias representativas é legítimo que os cidadãos se
manifestem contra os governos, “não é legítimo que os cidadãos, que por
definição têm o direito de voto e elegeram democraticamente há 18 meses um
Presidente e os seus representantes, considerem hoje o poder como um inimigo e procurem
derrubá-lo, eventualmente pela violência”.
Wieviorka sublinha três reivindicações difusas: um referendo
para a destituição de Macron, a dissolução da Assembleia Nacional e, até,
sinais de apelo a um novo primeiro-ministro de estilo autoritário. Tudo isto em
nome do “nós somos o povo” e de uma concepção referendária da democracia. Só
poderiam ser alcançadas “à custa de um espasmo social prolongado que
paralisasse o país”.
O sistema partidário francês está despedaçado. Laurent
Wauquiez, líder da direita, vestiu um colete amarelo. Interroga-se Grunberg:
“Que esperará recolher de um movimento de tendência insurrecional, (...) a
esperança de regressar enfim ao poder?”
Macron é objecto de “um ódio inédito, maciço, mais violento
do que o que perseguiu Sarkozy e Hollande”, anota o Libération. “O ódio é um
amor decepcionado” pelo Presidente jupiteriano, diz uma personagem do Eliseu.
Macron tem mantido o silêncio para não lançar mais achas na
fogueira. Parece condenado a um recuo para apaziguar a opinião pública que
simpatiza com o “gilets jaunes”?. Avisam os observadores que há duas coisas que
ele não pode fazer: a primeira seria convocar eleições antecipadas que, no
actual quadro e sem alternativas, poderiam resultar no caos institucional; a
segunda seria fazer a mínima cedência perante os motins.
Se a França cair
A revolta francesa nasce sobretudo numa “pequena classe
média” branca, que se viu afectada pelas consequências sociais da globalização.
TERESA DE SOUSA
9 de Dezembro de 2018, 7:00
1. É um clássico: os franceses não fazem reformas, apenas
revoluções. É também um exagero, que serve apenas para descrever a particular
identidade de um país com uma História que olha como gloriosa, que se vê, em
momentos de euforia, como sendo ainda o centro do universo. Que alterna cada
vez mais com uma profunda “malaise”, sempre pronta a explodir numa fúria
incontida que normalmente derruba governos, desfaz reformas, mas raramente
despede o ocupante do Palácio do Eliseu. É esta a história da V República,
moldada pela personalidade do General De Gaulle e pela sua visão do poder – “La
France c’est moi” -, onde a figura do Presidente da República Francesa funciona
com o centro da vida política da França em redor do qual se organiza o poder,
reservando ao primeiro-ministro o custo e a impopularidade da governação, um
lugar secundário que pode ser sacrificado em caso de crise económica e social.
Jaques Chirac, apesar do seu estilo caloroso e afável, ainda cumpriu este
figurino. Alain Juppé, o seu primeiro-ministro, foi sacrificado quando a
reforma das pensões levou milhões de franceses às ruas. Lionel Jospin,
primeiro-ministro socialista que governou com Chirac em coabitação, tentou
enfrentá-lo sem grande resultado. Quando resolveu desafiá-lo nas presidenciais
de 2002, sofreu a tremenda humilhação de não passar à segunda volta, abrindo
espaço a um confronto dramático entre o Presidente e o líder da Frente
Nacional, Jean-Marie Le Pen. O resultado mostrou ainda uma França firme perante
o desafio do nacionalismo e do extremismo. A disciplina republicana funcionou
em pleno dando a Chirac uma vitória de 82% dos votos e anulando qualquer
ambiguidade perante a ascensão da Frente Nacional.
2. Nicolas Sarkozy quis quebrar o molde, com uma presidência
combativa e irreverente e um estilo que se afastava da figura que tinha o dever
de encarnar a grandeza da França. Foi um Presidente de um só mandato. Acabou
derrotado por um candidato socialista sem brilho e sem carisma, que chegou ao
Eliseu com o propósito expresso de ser um “Presidente normal”. Mudou o estilo,
mudaram os rituais, não mudou a sorte. François Hollande cumpriu apenas um
mandato, com alguns actos simbólicos para agradar à esquerda mas de muito pouca
substância. Não conseguiu reequilibrar a aliança franco-alemã, que está na base
da integração europeia. Não conseguiu reformar. O seu “ministro-prodígio”
haveria de impedir a sua recandidatura, fundar um partido a partir do zero,
avançar para o Eliseu prometendo um “centrismo radical”, sem qualquer cedência
à extrema-direita de Marine Le Pen ou à extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon,
destruindo pelo caminho o Partido Socialista e abanando fortemente a direita de
Os Republicanos. Tudo em menos de um ano. Macron foi eleito numa onda de
euforia. Prometeu uma revolução em França e uma refundação da Europa. Animou os
governos europeístas da União Europeia. Berlim saudou-o como a oportunidade de
ter finalmente o parceiro que tanto desejava: reformista, aberto e europeu. A
boa e velha Europa, amarfanhada pela ascensão dos populismos e dos
nacionalismos, dividida pela crise do euro e sobre o seu destino, rejubilou.
Emmanuel Macron, 40 anos, intelectual brilhante, Júpiter de regresso ao Eliseu
para restaurar o prestígio da França, acaba de descer à Terra. A esperança
durou um ano. Não há a menor razão para regozijo. Quando Paris se incendeia, a
Europa sofre um abalo profundo. Um desastre político e social em França seria,
porventura, um golpe mortal.
3. O alcance europeu da crise francesa é evidente. Macron é
o inimigo jurado dos movimentos e dos governos populistas, de Viktor Orbán a
Matteo Salvini. Aliás, o próprio nunca enjeitou esse papel. “Macron deixou de
ser meu adversário. Deixou de ser um problema meu. É um problema para os
franceses”, disse Salvini. A popularidade do líder da Liga e
vice-primeiro-ministro de Roma está em alta. A do Presidente francês em queda.
Há um ano, a sua juventude e o seu dinamismo eram saudados por banhos de multidão
na Europa. Trump é, ele próprio, a voz dos populistas, incluindo de muitos
“coletes amarelos”. Disse ele: “Os contribuintes americanos [ao contrário dos
franceses] não têm de pagar para limpar a poluição dos outros.” Antes tinha
tweetado que o seu “amigo Macron” já tinha percebido “as razões pelas quais ele
se tinha oposto ao Acordo de Paris [sobre o clima].” De Moscovo e de Ancara,
suprema ironia, chegam os apelos para que a França “se abstenha de qualquer
tipo de recurso excessivo à força”.
4. A revolta francesa não vem, como em 2005, dos banlieues
das grandes cidades onde vivem várias gerações de imigrantes, muitos de origem
magrebina. Não é a revolta dos excluídos ou dos desempregados, como diz o
historiador francês Pierre Ronsavallon ao Le Monde. É a dos assalariados de
salários modestos, pequenos empreendedores, artesãos e pequenos comerciantes. E
de muitas mulheres. Nasce sobretudo numa “pequena classe média” branca, que se
viu afectada pelas consequências sociais da globalização, que não vê a imigração
com bom olhos, não por uma razão étnica ou religiosa, mas porque teme que ela a
substitua nos empregos da indústria, do comércio ou de proximidade. Coincide,
em boa parte, com os movimentos populistas que emergiram por quase toda a
Europa. São os que ficam para trás, mesmo que vivam razoavelmente, que têm medo
do futuro que já tiveram por certo e que hoje têm por incerto.
Sarkozy prometeu melhorar o nível de vida dos “franceses que
trabalham”. Hollande prometeu a penalização dos ricos para uma melhor distribuição
da riqueza. O imposto sobre as fortunas que decretou não enchia os cofres do
Estado, mas tinha um efeito psicológico. Macron aboliu-o, justamente porque era
apenas simbólico e afastava o investimento. Não basta dizer que o Presidente
francês é arrogante, distante das pessoas, indiferente à realidade em que
vivem. A arrogância pode alimentar momentaneamente a cólera e unificar os
protestos. Mas há uma diferença: os manifestantes exigem a sua demissão. No
primeiro ano de mandato, Macron fez aprovar todas as reformas que prometeu,
depois de as negociar com patrões e com sindicatos. A sua ideia era libertar a
economia e a sociedade francesa de espartilhos que cerceavam o crescimento e
mantinham o desemprego elevado. A contestação nas ruas foi menor do que a que
enfrentaram alguns dos seus antecessores quando quiseram mudar alguma coisa.
Mas as percepções passaram a contar cada vez mais. De repente, o que muitos
franceses viram foi um Presidente que “governa para os ricos”. As redes sociais
desempenham o seu papel: dispensam a comunicação social, os partidos políticos,
os sindicatos, o poder local, as organizações sociais. “Hoje é a palavra
directa que se impõe como forma democrática; mas é, ao mesmo tempo, uma
expressão confusa, que dificilmente se unifica e que é extraordinariamente
vulnerável às teorias do complot e às fake news”, diz Rosanvallon. Um vídeo de
disseminação veloz no Facebook diz que o Pacto Global para as Migrações, que a
França se prepara para subscrever, visa “abolir as fronteiras para os
imigrantes e promover a mistura racial em proveito de um supergoverno mundial”.
“Macron prepara-se para vender a França à ONU e para aceitar a vinda de 480
milhões de imigrantes para a Europa.” Outros falam de um “governo paralelo” que
ninguém vê, ou reivindicam a VI República (uma ideia de Mélenchon), uma
democracia directa (como o 5 Estrelas de Di Maio). Outros ainda querem “uma mão
de ferro para governar a França”. De novo Rosanvallon: “O termo ‘desigualdade’
não chega para traduzir este enorme passivo social e moral. (…) Esta revolta
obriga-nos a olhar para a sociedade com um novo olhar. Precisamos de
indicadores de dignidade e de desprezo, de guetização e de afastamento social,
de apreensão dos medos e dos fantasmas, para apreender a realidade.” A heterogeneidade
é tanto sociológica como ideológica. Há os activistas e os que os seguem. Mas
há também “a câmara de eco e uma câmara de escuta”, muito mais ampla – a que
permite que 70% dos franceses apoiem, em maior ou menor grau, esta revolta. O
que vem a seguir ninguém sabe.
5. Entretanto, a elite europeia parece anestesiada. Em
Bruxelas, os eurocratas preocupam-se com uma situação de excepção que leve
Paris a não cumprir as regras do Pacto de Estabilidade. Um amigo contou-me que
participou há três dias numa conferência em Bruxelas sobre a “autonomia
estratégica” da Europa. O que se passa em Paris não constou de nenhuma das
intervenções.
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