Bullying imobiliário existe. Mas, juridicamente, “não se
pode usar”
Rita Neto
São cada vez mais os casos que vão surgindo de bullying
imobiliário. As queixas são muitas, mas as soluções poucas. O problema é que,
do lado da lei, ainda não existe um termo legal.
“A senhoria tem-me feito a vida negra. Já ando a
ansiolíticos, porque ela até a água já me cortou”. Encontrámos Maria de Lurdes,
de 74 anos, na sala de espera da Associação dos Inquilinos Lisbonense (AIL),
com uma pasta com documentos na mão. Tinha hora marcada com a advogada da
associação porque diz que tem estado a ser vítima de bullying imobiliário por
parte da senhoria. Vive na casa onde está, no bairro de Santos, desde que
nasceu e, quando os pais faleceram, o contrato passou automaticamente para o
nome dela: é isso que está na lei.
“Ela quer que eu saia lá de casa. Eu tenho o contrato que
era dos meus pais e que passou automaticamente para mim. Pago 198,90 euros de
renda”, conta ao ECO. “Ando nisto há, praticamente, quatro ou cinco anos. Ela
primeiro pediu-me quase 400 euros de renda e eu recusei. Com 700 euros de
reforma não consigo pagar isso nem posso estar a arranjar outra casa”. A casa
onde mora está “toda velha” e “toda a cair”, conta. É Maria de Lurdes que tem
arranjado tudo o que é preciso. “Ela agora já nem os recibos me passa”.
"Quando é para falar com ela é o meu filho que fala, eu
não falo, porque ela já me fez desmaiar. Ela anda a fazer isto de propósito
para ver se me dá alguma.”
Maria de Lurdes
“Ela é tão má, já nem fala comigo. Antes dava-se comigo. Mas
uma vez foi lá a casa e eu pedi-lhe para falar mais baixo porque tinha o meu
netinho a dormir. Ela respondeu alto: ‘era o que faltava, estou na minha casa’,
e começou a gritar. Eu pedi-lhe para sair e, desde aí, foi quando tudo
começou”, recorda. Hoje em dia, Maria de Lurdes evita falar com a senhoria,
deixa isso para o filho. “O meu filho já discutiu com ela várias vezes, aliás,
quando é para falar com ela é o meu filho que fala, eu não falo, porque ela já
me fez desmaiar. Ela anda a fazer isto de propósito para ver se me dá alguma”,
conta.
Maria de Lurdes recorreu à AIL para ter ajuda, onde lhe
disponibilizaram uma advogada. Nas consultas recorrentes que são marcadas, a
advogada da AIL envia cartas para a senhoria, que alega que a septuagenária lhe
deve dinheiro. “As cartas que a advogada daqui lhe escreve, ela não as levanta,
devolve-as. Mas, as minhas, recebe-as”, conta. “Já me cortou a água e só não me
cortou a luz porque já estava no meu nome”. Na altura foi à junta de freguesia
e conseguiu passar a água para o seu nome.
"A advogada diz que não vale a pena apresentar queixa
porque isto não vale a pena. Se eu sair de lá vou para onde? Com que dinheiro?”
Maria de Lurdes
Vítima de bullying imobiliário
“Ela é muito má, muito má. Não comprou nada, herdou tudo do
pai e, desde aí, nunca mais trabalhou”, conta. Soluções? Diz não ter muitas.
“Eu só recebo 710 euros de reforma. Só em medicamentos, em três meses, já
gastei 300 e tal euros, tomo 12 comprimidos por dia. A advogada diz que não
vale a pena apresentar queixa porque isto não vale a pena. Se eu sair de lá vou
para onde? Com que dinheiro?”, remata.
“Vejo muita gente a sofrer de bullying. Muitos não querem
aceitar, mas ele existe”
Embora mais nova, Carla Susana da Cunha passou por uma
situação semelhante. Em setembro do ano passado, o contrato de cinco anos que
tinha no número 14 do Pátio do Carrasco, em Alfama, terminou. Entretanto, o
prédio tinha sido vendido a uma empresa. Do lado do senhorio veio a promessa de
que o novo senhorio iria fazer um novo contrato, mas isso não aconteceu. “Uma
coisa é termos uma pessoa como senhorio, outra é termos uma empresa. Uma
empresa não tem sentimentos, não tem coração, só quer é dinheiro, de resto não
quer mais nada”, conta ao ECO.
"Levei com barulho de martelar às 8h da manhã e até
poeira. Como disse que, mesmo assim, não ia sair, mandaram mudar a água e a luz
para o nome deles e, passados dois meses, mandaram cortar a a água.”
Carla Susana da Cunha
Vítima de bullying imobiliário
“Eles alegavam que a casa precisava de obras profundas.
Nesse caso tinham de apresentar uma prova em como isso era necessário, mas não
foi apresentado nada”, diz. “Falei com a advogada deles e disse que só saía
dali com a polícia, com uma ordem judicial. Não foi uma conversa nada amigável.
Ela fez de tudo… até me ofereceu a hipótese de me mudar para o número 15, a
casa ao lado. Mas sem contrato”.
Carla Susana da Cunha, em frente à casa que ocupava no Pátio
do Carrasco.
RIta Neto/ECO
Na altura, ainda questionou os novos inquilinos se podia
arrendar alguma das várias casas que tinham comprado no pátio. A resposta não
agradou: “Não são para esse efeito”. “Claro! São para os turistas”, afirma
Carla. Na altura, a empresa estava a pedir um milhão de euros por uma daquelas
casas, valor que, explicou, nem ela nem ninguém que lá morava tinha. Tempos
depois, com a persistência de Carla, as coisas começaram a piorar. “Levei com
barulho de martelar às 8h da manhã e até poeira. Como disse que, mesmo assim,
não ia sair, mandaram mudar a água e a luz para o nome deles e, passados dois
meses, mandaram cortar a a água”, recorda.
"O que posso dizer que foi mesmo bullying profundo foi
terem-me cortado a luz sem o meu consentimento e tendo menores a meu encargo.
Estive um dia sem água. Isso não se faz, é desumano. Nem foi por mim, foi mais
pelas minhas filhas.”
Carla Susana da Cunha
Na altura, a situação da água foi revertida depois de Carla
se ter dirigido à EPAL, ameaçando com o livro de reclamações. “Foi uma guerra
aberta. O que posso dizer que foi mesmo bullying profundo foi terem-me cortado
a luz sem o meu consentimento e tendo menores a meu encargo. Estive um dia sem
água. Isso não se faz, é desumano. Nem foi por mim, foi mais pelas minhas
filhas”, conta. Como explica ao ECO, Carla tinha o direito a estar na habitação
até janeiro — “paguei até novembro, que equivale a dezembro e ainda janeiro,
que era o mês de caução”. Depois de uma outra tentativa do novo senhorio em
cortar a água, que Carla conseguiu impedir, foi ativado um plano de emergência
na Proteção Civil, pelo facto de o caso envolver duas menores.
Juntamente com as filhas — na altura com nove e 16 anos –,
Carla mudou-se para uma casa em Chelas, oferecida pela Proteção Civil. “A
cabeça não foi abaixo, mas o corpo foi todo. Não tive meios de levar as minhas
coisas para lá. A Proteção Civil arranjou-me uma carrinha para levar algumas,
mas poucas”, recorda ao ECO. Pouco tempo depois, concorreu ao concurso de
habitação pela câmara de Lisboa e conseguiu uma casa, novamente em Alfama, a
poucos metros da antiga.
"A nova empresa quer fechar aquilo tudo e fazer daquilo
um condomínio privado. Hoje em dia, quem vive lá no pátio são aquelas pessoas
com contrato vitalício e que eles não conseguem expulsar. Mas também não lhes
perdoam. Fazem-lhes bullying exercido de forma suave.”
Carla Susana da Cunha
Vítima de bullying imobiliário
Hoje, olha para trás com tristeza. “A nova empresa quer
fechar aquilo tudo e fazer daquilo um condomínio privado. Hoje em dia, quem
vive lá no pátio são aquelas pessoas com contrato vitalício e que eles não
conseguem expulsar. Mas também não lhes perdoam. Fazem-lhes bullying exercido
de forma suave”, diz. “Nós todos sofremos de bullying imobiliário, familiar,
porque não é só uma pessoa, são todas. Muitas vezes isto é feito de forma
silenciosa. E as pessoas não explicam, não expõem. Vejo muita gente a sofrer de
bullying, e muitos não querem aceitar, mas ele existe”.
“Juridicamente, bullying não se pode aplicar, terá de ser
outro tipo de ilícito”
Nos últimos quatro anos, a Junta de Freguesia de Santa Maria
Maior fez, através do Gabinete Jurídico, 1.032 atendimentos a agregados
familiares com problemas de habitação. Ao ECO, estimou que cerca de um quarto
esteve associado a bullying imobiliário.
Do lado da Associação dos Inquilinos Lisbonense (AIL), diz,
“a tendência é para piorar”. “Os casos que aqui aparecem são tentativas de
despejos dos inquilinos, por diversos motivos. Há um conjunto de rendas mais
antigas que estão limitadas pelo rendimento e os senhorios tentam forçar esses
aumentos. O inquilino não aceita e continua a pagar a renda que está fixada.
Depois é movida uma ação de despejo por falta de pagamento de renda. São coisas
que estão a correr em tribunal, mas isto leva uma data de tempo”, conta ao ECO
António Machado, secretário-geral da AIL.
"O problema é que o bullying imobiliário não está
legislado do ponto de vista penal e, por outro lado, não há fiscalização por
parte das autoridades competentes.”
António Machado
Secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonense
A associação, situada em pleno Intendente, presta apoio
jurídico e ajuda com as ações que são levadas a tribunal. Neste momento são
cerca de 30. A procura pela associação “aumentou, muito mesmo”. A solução, diz,
“passa por resistirem até poderem”. “Claro que a resistência manda ter limites
e há casos em que depois acaba por resultar [o bullying], a pessoa cansa-se,
acaba por desistir e vai-se embora”, afirma. Para António Machado, o problema é
que o bullying imobiliário “não está legislado do ponto de vista penal e, por
outro lado, não há fiscalização por parte das autoridades competentes”. “A
perseguição de uns aos outros deve ser um crime”, sublinha.
Frederico Assunção é advogado na Dantas Rodrigues e
Associados e conta ao ECO que, nos últimos dois ou três anos, “tem-se falado
bastante” em bullying imobiliário. “Isto porque o turismo tem aumentado muito e
isso tem levado a que os senhorios — com a expectativa de tirarem mais
rendimento dessas casas, principalmente nos bairros históricos de Lisboa —
pratiquem esses atos de forma a fazer uma pressão, ainda que indireta, para que
os inquilinos saiam”, diz. Muitos dos inquilinos, já com mais de 65 anos, “acabam
por não estar bem informados” e, com essas pequenas pressões, “vão acabando por
sair”.
"Juridicamente, bullying não se pode aplicar, terá de
ser outro tipo de ilícito. Teria de ser pelas ameaças, intimidações. Agora,
pelo bullying em si não, porque isso realmente é algo que, na prática, não
existe no ramo imobiliário.”
Frederico Assunção
Advogado
As coisas vão acontecendo, as pressões vão sendo exercidas
das mais variadas formas. “Agora, é difícil demonstrar que foram os senhorios”
a fazê-lo, diz o advogado, especialista em Direito da Família. Vale a pena
avançar para tribunal? “Por vezes vale. Quando a lei lhes dá mais tempo e
possibilidade de continuar a usufruir do imóvel, vale a pena”, explica. “Se o
caso forem ameaças por parte dos senhorios, ao ser apresentada queixa na
polícia isso também ajuda a travar um pouco — mesmo que depois a queixa venha a
ser arquivada por falta de provas –, dará sempre uma imagem de que o inquilino
está a ser defendido e que está informado”, acrescenta.
Nestes casos, “juridicamente, bullying não se pode aplicar,
terá de ser outro tipo de ilícito. Teria de ser pelas ameaças, intimidações.
Agora, pelo bullying em si não, porque isso realmente é algo que, na prática,
não existe no ramo imobiliário”, explica Frederico Assunção. As soluções, diz,
passam pela queixa-crime — que poderá demorar anos na justiça e não levar a
lado nenhum por falta de provas –, a resolução do próprio contrato e pedindo
uma indemnização pelos danos causados. No tribunal judicial, um processo destes
demora cerca de dois anos, em média. Já no Balcão Nacional de Arrendamento,
seria mais rápido — cerca de um ou dois meses — mas, ultimamente, demora muito
mais tempo porque está sobrecarregado, remata.
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