sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Vizinhos e visitantes do miradouro do Largo das Necessidades dizem que novo hospital lhes rouba a vista do Tejo



Vizinhos e visitantes do miradouro do Largo das Necessidades dizem que novo hospital lhes rouba a vista do Tejo
Samuel Alemão
Texto
7 Dezembro, 2018

“É um autêntico mamarrachão o que aí está! Tirou-nos a vista que tínhamos daqui, que era uma coisa linda”, queixa-se Maria Silva, 74 anos, apontando com a cabeça em direcção à zona ribeirinha do Tejo, da qual agora apenas contempla resquícios. “É verdade, era mesmo bonita”, confirma o marido, Filinto Correia Silva, 77, enquanto põe no chão o saco das compras, para, com calma, expressar as razões da profunda discordância com o que consegue ver – ou deixa de ver, dependendo da perspectiva – a partir do miradouro do Largo das Necessidades, junto ao palácio e à tapada com o mesmo nome. Arruamento onde Maria e Filinto vivem há meio-século, no prédio com o número 41. A construção do Hospital Cuf Tejo, em Alcântara, iniciada em 2017, está a toldar-lhes uma parte substancial da vista panorâmica que tinham sobre o troço final do rio. Ou seja, em grande medida subtraiu a principal razão pela qual o local era procurado. Ainda continua a sê-lo, é verdade, mas o espanto ante a nova referência visual é crescente.

Nas últimas semanas, tem sido muito comentada nas redes sociais a real dimensão do irrefutável impacto cenográfico causado pela edificação daquele equipamento de saúde, na Avenida 24 de Julho, em terrenos anteriormente pertencentes ao município de Lisboa. Alienada, a 22 de Janeiro de 2015, através de uma hasta pública a que apenas concorreu o grupo Mello, aquela fracção junto à zona ribeirinha de Alcântara – com uma área de 20.763,48 metros quadrados e também conhecida como “triângulo dourado”, devido ao seu inequívoco valor – está a ver nascer um imóvel com seis pisos acima da soleira. O novo hospital, implantado numa área superior a 10 mil metros quadrados e com uma superfície de pavimento de quase 35 mil metros quadrados, terá uma altura máxima de edificação de 26 metros, prevendo-se que a altura máxima da fachada tenha apenas menos um metro. Ou seja, é difícil não dar por ele. E há muita gente a queixar-se disso, percebeu O Corvo ao visitar o local, onde também falou com quem não encontra razões para descontentamento.

O tom geral, porém, é de decepção. “Agora, a gente chega aqui e só vê cimento, é uma tristeza”, desabafa Maria da Encarnação, 65 anos, açoriana a residir há mais de três décadas naquela zona. “Estávamos habituados a ter aqui uma vista tão bonita para o rio. Isto vai fazer diferença, sobretudo no verão, em quem vem para aqui muita gente. Este local é ponto de convívio de muita gente mais velha”, conta, enquanto passeia por ali o seu cão de pequeno porte. É o final da manhã de um dia de semana e a neblina marítimo-fluvial ofusca grande parte da Ponte 25 de Abril, impedindo os olhos de alcançarem o pouco do Tejo que, agora, em dias límpidos, a vista dali alcança. “Não acho bem o que estão aqui a fazer. O hospital, por mais importante que seja, não devia ser feito aqui”, queixa-se Joaquim França, 82 anos, encostado ao murete de onde contempla o bulício matinal da zona ocidental da capital. “Ainda no outro dia, o meu filho veio cá e comentou logo ‘tiraram-nos a vista do Tejo’. Temos muitos atropelos à cidade de Lisboa”, sentencia o antigo carteiro, ensaiando mais uma pequena deslocação, com auxílio de uma bengala.

Utensílio no qual também se apoia José Barreira, 94 anos, ao realizar um vagaroso circuito em redor do lago mandado construir em 1747, por Dom João V, “em agradecimento à Virgem”. Algo que faz todos os dias. “É óbvio que estragou a vista. Ainda pensei, quando estavam numa outra fase menos adiantada da obra, que iam deixar uma aberta para o rio no meio da construção, mas taparam-na”, lamenta o ex-funcionário da Guarda Nacional Republicana (GNR). “Uma questão destas mete muito dinheiro, é difícil lutar contra este gigante”, afirma, referindo-se ao facto de o dono da obra ser um grande grupo económico. José não tem dúvidas de que o novo figurino da paisagem obtido a partir dali terá consequências para a sua fruição turística. Uma opinião partilhada por Amadeu Tavares, 70 anos, outro dos muitos donos de cães que, quotidianamente, acorrem ao Jardim Olavo Bilac, situado junto ao miradouro. “Tiraram uma bela vista com a construção de um mamarracho. Chegam aí os tuk tuk com os turistas e o que é que vêm?”, interroga-se.

Mas não serão apenas os forasteiros a sentirem as consequências das mudanças na paisagem, já se evidenciou. Elas estão a surpreender, antes de mais, quem todos os dias frequenta o miradouro ou vive na área, como o casal Maria e Filinto Silva, os tais habitantes dos número 41 do Largo das Necessidades. Ambos confessam ter ficado “chocados” quando, a 3 de Novembro, regressados da sua longa temporada estival na “terra”, em Vila Real, se depararam com o novo enquadramento. “Quando voltámos, até fiquei surpreendido. Não estávamos à espera que isto chegasse a esta altura. Fiquei realmente admirado pelo consentimento dado a uma coisa destas”, afirma. “Como é que a Câmara de Lisboa deixa passar isto?”, questiona, antes de levantar o saco de compras e voltar para casa, de onde ele e a mulher já não conseguem agora contemplar a zona ribeirinha do Tejo, como fizeram durante grande parte da vida.

Idêntica consternação confessam Lurdes Martins, 59, e Luís Lopes, 63, proprietários de uma casa na vizinha Rua dos Contrabandistas e que O Corvo encontrou no miradouro, juntamente com outros dois familiares, na manhã em que ali esteve. A residirem noutro local, já não vinham à habitação de que são donos há seis meses. E agora depararam-se com algo inesperado. “Quando fomos à varanda, vimos isto. Que grande mamarracho, desfiguraram completamente a paisagem”, critica Luís. O choque foi tão grande que, agora, até sentiram necessidade de subir uns metros, até ao Largo das Necessidades, para dali se inteirarem do grau do agravo. “É triste ver uma coisa destas, custa-me. Não se percebe como o permitem. Quando foi aquela estória do terminal de contentores, houve uma grande polémica, fez-se imenso barulho. Mas, afinal, para avançarem estas obras, já não há problema”, critica Lurdes, referindo-se à contestação popular que, há uma década, conseguiu travar o alargamento do terminal de contentores de Alcântara – o qual, se avançasse, teria um enorme impacto na paisagem. “A gente brincava aqui neste jardim, quando éramos miúdos”, desabafa a vizinha, antes de se afastar.

 Até para quem não tem uma relação tão antiga com aquele espaço, as diferenças não passam desapercebidas. É o caso de António Pereira, 25 anos, morador da Lapa que, desde há um ano, vai até ao miradouro do Largo das Necessidades para passear a sua irrequieta cadela de raça jack russell. “Estragou um bocadinho a vista, sim. Não há como negá-lo. Antes, dava para observar perfeitamente o rio, até se conseguia ver bem aqueles grandes cruzeiros a passar”, descreve, depois de explicar que, apesar de a construção do Hospital Cuf Tejo ser uma realidade que acompanha há meses, não deixou de ficar surpreendido com o impacto visual que a mesma agora evidencia. “Foi de um momento para o outro, cresceu muito rápido”, conta, antes de evitar que o seu bicho se atire a outro de muito maior porte que por ali anda, um golden retriver.

A dona desse cão, Maria Sanches, 47, foi a única das pessoas com quem O Corvo falou, na parte da tarde do dia em que ali esteve, com uma perspectiva diferente em relação ao projecto que agora se ergue no horizonte de quem observa a paisagem a partir das Necessidades. “Julgo que isto não nos tira a vista de rio. Se pensarmos bem, antes, também não tínhamos assim tanta”, comenta esta moradora da zona, que, por isso, confessa não se sentir prejudicada com a altura do hospital. Além disso, refere, ainda é possível observar o Tejo, se bem que não na sua totalidade. “Mas isso é um dos encantos de Lisboa, a cidade também fica bonita com essas nesgas de rio com que nos deparamos, em vários sítios diferentes”, afirma.

Tal apreciação revela-se, todavia, minoritária, já se percebeu. Mais facilmente se encontra uma opinião contrária. “Antes, via-se bem o Tejo, o que não acontece agora. O hospital pode ser muito útil, não digo que não, mas discordo que nos tirem a visibilidade”, aprecia Maria Gonçalves, 73. “Roubou vista do rio, não há dúvida que roubou. Talvez com menos um piso, isso não tivesse acontecido”, especula Joaquim Ferreira, 70, a descansar num banco de pedra do jardim, enquanto o sol vespertino lhe bate na cara. A duas dezenas de metros, sentada sobre o murete desta varanda de Lisboa, Joana Martins, 38, enrola um cigarro e confidencia a O Corvo estar a “fazer tempo”, enquanto o pai é sujeito a uma intervenção cirúrgica ali ao lado, no velho hospital Cuf Infante Santo – que será substituído pela nova e polémica infra-estrutura. Joana diz conhecer muitos dos outros miradouros da cidade, mas admite não ser frequentadora deste. “Não tenho uma ideia muito precisa de como era antes. Mas se esta construção tapou a vista do rio, percebo o incómodo das pessoas”, diz.

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