terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Na Picheleira trabalha-se com medo e há espaços municipais que albergam ‘salas de chuto’ ilegais e carros furtados





Na Picheleira trabalha-se com medo e há espaços municipais que albergam ‘salas de chuto’ ilegais e carros furtados
Sofia Cristino
Texto
11 Dezembro, 2018

Sete artistas a trabalharem em imóveis municipais, na freguesia do Beato, queixam-se de tentativas de assalto frequentes e de conviverem paredes-meias com espaços ocupados abusivamente. Nestes consomem-se drogas e até há quem lá guarde carros furtados. Em 2005, os artistas assinaram protocolos para de ocupação de espaços não-habitacionais da Câmara de Lisboa para ali montarem os seus ateliês. Investiram dezenas de milhares de euros na reabilitação dos novos locais de trabalho, com a promessa de que ali nasceria um pólo de actividades culturais, mas ainda está tudo por cumprir. A autarquia, dizem, não estará a dar a devida atenção a esta parte da cidade. “A câmara tem abandonados quase mil metros quadrados só nesta rua e alguns são usados para actividades criminosas”, critica um artista plástico. Além disso, alguns continuam sem fornecimento autónomo de água e luz, que terá sido prometido pela autarquia há doze anos. Nos terrenos ao lado destes prédios, serão construídas casas no âmbito do Programa de Renda Acessível (PRA).

Ao chegar à Rua Impasse C, no Bairro da Picheleira, a sujidade da via pública e o consumo de droga a céu aberto, em plena luz do dia, não deixam adivinhar o que se passa dentro das fracções dos prédios municipais. Ali, nas traseiras da Rua João Nascimento, artistas plásticos, arquitectos, fotógrafos, uma pintora e um estilista reconhecidos desenvolvem actividades profissionais, e a companhia de teatro infantil de Lisboa e o Teatro A Barraca guardam o seu material, há doze anos. A ideia era dar uma nova vida àquela parte da cidade, rodeada por bairros municipais – como a antiga Quinta da Curraleira, o Casal do Pinto e a Quinta do Lavrado-, e atrair outro tipo de população. Um objectivo inicial que, porém, se encontra longe de ser cumprido.

 A zona está referenciada como “um novo Casal Ventoso”, grupos de pessoas consomem drogas a qualquer hora do dia e a segurança da zona tem piorado. Todos os inquilinos já foram alvo de tentativas de assalto e a polícia já terá encontrado carros e motas roubadas na zona. “De há três anos para cá, tornou-se um inferno. Às vezes, há cinco pessoas a consumirem drogas à porta do meu atelier, é uma ‘cracolândia’ invisível. Anteontem, tinha uma pessoa a dormir à porta”, conta Pedro Gomes. Em 2005, o artista plástico assinou, juntamente com mais vinte pessoas, um protocolo de cedência de espaços não-habitacionais com a Câmara Municipal de Lisboa (CML). Hoje, são sete a trabalham em garagens, que deveriam ser lugares de estacionamento de habitação municipal, ou em fracções de lojas. “O Plano Director Municipal (PDM), na altura, obrigava à construção de garagens, mas não ficaram bem feitas por causa de um erro de cálculo na construção. Os carros não entram e, por isso, a câmara abriu um concurso para agentes culturais da cidade”, explica Pedro Gomes, apontando para a entrada da garagem, muito estreita.

Alguns vencedores do concurso camarário nunca chegaram a usar os espaços, e outros acabaram por sair, desiludidos com as condições de trabalho. Dali, de onde se vê o Vale de Chelas e um descampado, o som que vem de dentro das garagens prova que ali há gente. Alguns espaços deixados ao abandono foram, porém, sendo tomados pela população, ao longo dos últimos quatro anos. Há partes de edifícios inteiros esventradas e janelas arrancadas, mas também cadeados para que ninguém consiga entrar. Uma das fracções, que O Corvo conseguiu ver de soslaio, é uma sala de chuto de 180 metros quadrados, às escuras. Há ainda três fracções ocupadas ilegalmente, onde funciona um ferro velho. “Têm acesso a 700 metros quadrados e a Câmara de Lisboa não faz nada. A câmara tem abandonados quase mil metros quadrados, só nesta rua, e alguns são usados para actividades criminosas”, critica Pedro Gomes.

No último ano, porém, as preocupações começaram a aumentar. João Onofre, fotógrafo reconhecido internacionalmente, estava a preparar uma exposição quando reparou que o portão da garagem teria sido arrombado de uma forma “violentíssima”, descreve. Um dia depois de substituir a fechadura, tentaram novamente entrar no seu espaço de trabalho. “A porta estava toda descascada, parecia uma lata de sardinha de conservas. Em dois dias, tivemos de instalar fechaduras novas duas vezes, mas continuo a sentir-me em perigo iminente”, admite.



No Verão, uma inundação destruiu algumas obras de João Pedro Vale, artista plástico, que partilha a entrada do atelier com João Onofre. “Ficámos assustados, outra vez, e chamamos a polícia. Afinal, só tinham sido os vizinhos de cima a esvaziarem uma piscina. Nesse dia, a polícia ainda encontrou duas motas roubadas numa das fracções ocupadas”, conta o artista visual, que, entretanto, já terá blindado a porta. O fotógrafo já recebeu vários críticos de arte nacional, directores de museus de todo o país e fundações conhecidas. “Alguns visitantes do meu espaço e coleccionadores começam a torcer o olho, quando cá vêm. Não temos de ter um espaço no Restelo para recebê-los, mas com os mínimos de condições”, pede.

 Naqueles espaços ocupados de forma abusiva, já terão sido encontrados vários veículos roubados. E a falta de resposta da câmara de Lisboa é a principal preocupação de quem aqui trabalha. “Os lotes não atribuídos deveriam estar selados. A Polícia Municipal de Lisboa diz que não pode fechar estas espaços vazios. Então quem o poderá fazer? A Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) diz que tem de ser a polícia, está a acontecer algo muito estranho aqui. E não conseguimos pedir policiamento extra, porque os polícias da zona dizem que não têm meios”, critica João Onofre.

Diogo Corredouro, arquitecto, um dos fundadores da ARCOOP – Cooperativa para a Inserção Profissional de Arquitectura, ali sediada, também está assustado. “Vivemos sempre com o coração nas mãos, já perdi a conta das tentativas de arrombamento”, confessa. A ARCOOP funciona em duas lojas, também espaços municipais. Lá dentro, há jovens arquitectos em formação, uma incubadora de empresas e ateliers onde trabalham dez pessoas. Por ano, fazem 60 formações e recebem 450 formandos.  “Supostamente, vínhamos dar uma nova vida a um bairro social, mas não é possível fazê-lo nestas condições”, lamenta. Há uma semana, diz ainda, viu uma situação suspeita. “Vi uma carrinha da câmara de Lisboa a levar muitos móveis e, provavelmente, material roubado apreendido. No dia seguinte, vimos uma pessoa a tomar posse do espaço e a pôr uma fechadura, já foi tomado outra vez”, conta.

 Hoje, há dez ateliês a funcionar. E todos estão insatisfeitos. “Era suposto sermos um hub criativo e melhorarmos as nossas condições de trabalho, mas tornamo-nos no hub criativo do terror”, diz Pedro Gomes, também porta-voz dos agentes culturais da Rua do Impasse C. No último ano, queixam-se que a rua começou a ser utilizada permanentemente para consumo de droga e, só no último mês, já houveram quatro tentativas de assalto aos ateliers. A pintora Sara Maia, com um ateliê ao lado, recentemente descobriu um buraco na parede por detrás da estante dos livros. “A sorte dela é que tinha a prateleira, mas é assustador imaginar que alguém abriu um buraco na parede”, diz Diogo Corredouro.

 Além das várias tentativas de roubo, os inquilinos queixam-se da falta de higiene da via pública. “A parte de baixo da rua só é limpa com a presença da polícia. Onde há salas de chuto as equipas de limpeza são atacadas”, conta Pedro Gomes. Os elevadores já avariaram por acumulação de lixo dentro das caixas dos mesmos, e na rua amontoam-se detritos de “várias ordens”. “São pessoas que não têm hábitos de pôr o lixo no contentor. Vê-se de tudo, até já foi lançado um armário de uma janela”, conta ainda.

 Quando os inquilinos chegaram aos espaços devolutos, em 2005, comprometeram-se a realizarem obras profundas e a pagarem uma renda simbólica à Câmara de Lisboa. Este valor só terá sido pago, porém, durante alguns meses. Isto porque, naquela altura, terá havido um compromisso da Câmara de Lisboa de isentar estes inquilinos do pagamento da renda, enquanto não houvesse fornecimento autónomo de água e electricidade. “Só depois de virmos é que percebemos os problemas que existiam. Não havia fornecimento autónomo de água e luz, e isso nunca nos foi dito. Até hoje, não temos água”, critica Pedro Gomes. Cada um despendeu, em média, 15 mil euros, tornando estes espaços, anteriormente emparedados e sem condições de habitabilidade, em locais de trabalho. Quando João Onofre chegou à Rua Impasse C, encontrou o chão do seu ateliê em terra batida, repleto de carteiras de seringas e pombos mortos. “Gastei 50 mil euros a reabilitar o espaço e trabalho com medo, pareceu-nos que a ideia era integrar-nos com a comunidade e não está a acontecer. Se a Câmara de Lisboa não consegue encontrar solução, tem de nos dar novos espaços para trabalharmos”, pede.

 Após várias tentativas de contacto com a Câmara de Lisboa, e de alguns funcionários municipais se terem deslocado àquela zona para avaliar a gravidade da situação, os problemas permaneceram. “Iniciaram-se as obras para o fornecimento de água em Janeiro, mas não foram terminadas. Não sabemos se estamos em condições de pedir os contadores da água”, diz Pedro Gomes. A 19 de Dezembro de 2017, a vereadora da habitação, Paula Marques, terá enviado um email no qual se compromete a realizar as obras necessárias para a ligação à EPAL. Estas terão começado em Janeiro de 2018, mas ainda não estarão concluídas.  A vereadora prometeu intervir junto da população que ocupa as zonas comuns e remover barreiras físicas que “potenciam ocupações do espaço público”. Quanto à questão das dívidas dos inquilinos, resultantes das rendas em falta, a vereadora prometia, no email a que O Corvo teve acesso, “a anulação da dívida registada enquanto o espaço não possua condições de uso”.

 Um ano depois, sem resolução à vista, Pedro Gomes deslocou-se à reunião descentralizada da Câmara de Lisboa, na passada quarta-feira (6 de Dezembro), para questionar a falta de respostas do município e convidar a autarquia a visitar a Rua Impasse C. O vereador dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, disse que o sítio está referenciado como sendo “uma zona de consumidores de drogas injectáveis para um equipamento móvel” e que esta estrutura poderá contribuir para melhorar a segurança da zona.

 Momentos antes, o vereador da Mobilidade, Miguel Gaspar, prometeu solicitar junto da PSP um reforço de policiamento nesta parte da cidade e perceber as diligências que estão a ser feitas no local sobre esta matéria. “Não tenho informação, só sei que é uma zona sensível do ponto de vista da segurança”, admitiu. Quanto aos futuros projectos pensados para aquela zona, outra das questões colocadas por Pedro Gomes, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, disse que este é um dos terrenos identificado para o Programa de Renda Acessível (PRA), em desenvolvimento neste momento. “Há um número considerável de fogos e equipamentos complementares que vão ser aqui construídos. É um projecto ambicioso, que está a ser finalizado e vai ser colocado em concurso muito em breve, dentro de dois ou três meses”, garantiu.

 As respostas foram, contudo, insuficientes, para quem espera por soluções há mais de uma década. “Não responderam ao mais importante. A Câmara faz um muro de silêncio à volta disto, não quer que isto seja falado. É estranhíssimo como deixam o assunto arrastar-se até hoje, não expulsam actividades ilícitas e não assumem responsabilidade por uma zona que é da cidade”, acusa Pedro Gomes, em declarações a O Corvo, depois da reunião camarária. O porta-voz do grupo de trabalho criado por estes artistas garante que a situação piora, todos os dias, e que temem o pior. “Trabalhamos com medo nesta rua. Em breve seremos um corpo estranho a ser expelido por uma comunidade de tráfego e uso de droga, e não foi por falta de aviso”, adverte.

 O Corvo questionou o pelouro da Habitação da Câmara de Lisboa sobre esta matéria. Perguntou se sabiam da existência de espaços ocupados abusivamente naquele bairro e o que tem sido feito para o impedir; se se revêem nas acusações dos inquilinos e se sabem que estes continuam sem água nem electricidade. A autarquia respondeu da seguinte forma: “O historial das cedências dos espaços não habitacionais em causa é complexo e tem sido acompanhado pelo Município na procura das soluções adequadas. Estes processos, estão em curso e sobre eles teremos novos dados em breve, que serão oportunamente comunicados.”

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