"Nós estamos a devastar a natureza"
Will Steffen dá um prazo: duas décadas até se perder o gelo
do Árctico. Daí irromperá uma cascata de alterações na bio e geosfera, que pode
colocar em risco o “sistema de suporte de vida” humana. Certo é que o planeta
já ultrapassou, pelo menos, dois pontos de não retorno.
MARGARIDA DAVID CARDOSO 29 de Setembro de 2018, 6:32
Will Steffen, químico
norte-americano de 71 anos e uma das maiores referências na investigação sobre
as alterações climáticas, nem sempre olhou para a Terra como um sistema.
Começou na química microscópica, passou pelos ecossistemas terrestres, até se
dedicar a entender o todo e como a acção humana pode desencadear efeitos em
cascata que podem, dentro de poucas décadas, modificar o planeta tal como o
conhecemos. “Quando começamos a derrubar as primeiras peças de dominó,
dificilmente conseguimos impedir as seguintes de caírem”, diz. Ao fim de quase
quatro décadas a estudar as alterações climáticas não lhe restam dúvidas: a
manutenção do sistema terrestre não é compatível com os actuais sistemas
económico e social.
Steffen esteve esta semana no Porto para a cerimónia de
lançamento da associação da Casa Comum da Humanidade, na qual é presidente da
comissão científica.
É químico de formação. Quando e porque é que começou a
estudar alterações climáticas?
Quando fiz o doutoramento em 1975, não havia muita
informação sobre alterações climáticas, nem interesse nisso. Era apenas a área
em que os físicos da atmosfera trabalhavam.
Eu estive na química, estudei Cristalografia de Raios-X
[técnica de difracção de Raios-X para determinar a estrutura tridimensional de
cristais], no início da revolução tecnológica. Tentei depois outras áreas da
química, até me envolver na física ambiental. Nos anos 80, as alterações
climáticas começaram a tornar-se um assunto, mas a grande mudança aconteceu em
1990. O Conselho Internacional de Ciência começou um novo programa de
investigação, o Programa Internacional Geosfera-Biosfera [IGBP, na sigla em
inglês 1987-2015], que congregava cientistas de todo o mundo para olhar de
forma sistémica para a Terra. Fui coordenador de um dos projectos, sobre os
ecossistemas terrestres. Em 1998, fui para director do IGBP. Geria o programa
todo: terra, oceano, atmosfera, clima. E juntámos os cientistas sociais, para
integrar os seres humanos como agentes interactivos.
Quando o programa fez dez anos fizemos uma síntese do que
aprendemos. Escrevemos um livro que se pode considerar o primeiro com uma visão
abrangente do sistema terrestre [Global Change and the Earth System, 2004]. Foi
nessa altura que o Paul Crutzen [Nobel da Química em 1995] introduziu o
conceito de Antropoceno – uma nova era geológica.
A partir daí relaciona, nos seus artigos, as alterações
climáticas com o início dessa nova era.
Ainda há duas correntes de pensamento. Uma é a corrente
tradicional das alterações climáticas, que vê como isso afecta o clima e como
os humanos estão a interagir com o clima. Assenta num legado histórico que dá
ênfase à atmosfera. É o caso do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas [com sede nas Nações Unidas].
Temos que ser “mais militantes” para enfrentar as ameaças do
clima
A corrente onde me insiro tem um ponto de partida diferente:
o clima é uma manifestação de como o sistema terrestre opera e como ele muda.
Há um consenso na comunidade científica de que o aumento
extraordinário das emissões dos gases com efeito de estufa se deve às
actividades humanas. Recentemente foi discutida em Portugal uma corrente que
nega esse papel. Como responde?
Há uma quantidade absurda de dados disponíveis e essas
pessoas claramente não são especialistas em ciências da terra ou ciências
climáticas. Não há absolutamente dúvida nenhuma. Obviamente que há uma variação
natural da temperatura, mas essa variação acontece dentro de um intervalo muito
estreito. Agora esse intervalo está todo desregulado.
De forma mais acentuada desde meados do século XX?
Sim. Houve um pequeno aumento da temperatura a começar à
volta de 1850, na sequência da revolução industrial. Cerca de cem anos depois,
a temperatura tinha subido cerca de 0,2ºC ou 0,3ºC. Mas desde 1950-1970, os
termómetros disparam.
É o que chama de Grande Aceleração.
Exactamente. Nos dez anos do IGBP, começamos a recolher
dados desde 1750, o início da revolução industrial. Escolhemos doze indicadores
para representar graficamente a actividade humana, como a população mundial,
PIB, turismo internacional, uso de energia, consumo de água, uso de
fertilizantes, produção de papel, transportes, telecomunicações,... Os
indicadores sobem de forma brutal a partir de 1950.
Depois fizemos doze gráficos semelhantes para o sistema
terrestre, com medições de gases com efeito de estufa, ozono estratosférico,
temperatura à superfície, acidificação dos oceanos, captura de peixe marítimo,
ocupação do solo, degradação da biosfera... Verificamos que alguns sistemas
respondem mais devagar que outros, mas em geral é a meio do século XX que se dá
a mudança. E aí estava, como dizemos em inglês, the smoking gun. Foi o ser
humano que disparou a pistola.
Num artigo mais recente mediu o risco da Terra perder a sua
resiliência e se atingirem pontos de não retorno. Como chegaram a estas
conclusões e o que significa?
O estudo é uma análise de risco. Ficou claro que quanto mais
quente a Terra fica, mais o risco aumenta. Percebemos que algures entre 1,5ºC e
3ºC [diferença da temperatura média face ao período pré-revolução industrial]
vamos entrar numa cascata de efeitos negativos no planeta. Onde? Podemos nunca
vir a saber com certeza.
Há um ponto fracturante na Amazónia, onde metade da
precipitação é gerada pela evaporação das árvores e do solo e a outra metade
vem do Oceano Atlântico, através do vento. O problema é que o clima está a
mudar e está-se a cortar a floresta. Vamos chegar a um ponto crítico em que a
floresta tropical húmida não vai receber precipitação suficiente, vai começar a
morrer naturalmente de seca. Isso origina menos evaporação, que por sua vez
provoca menos chuva, depois menos árvores, menos evaporação e este ciclo ganha
força. É assim que se desencadeia um ponto de não retorno. No caso da Amazónia
estará à volta de um aumento de 2ºC e 20% de desflorestação. Agora estamos um
pouco acima do 1ºC e cerca de 18% de desflorestação.
É bastante estúpido descobrir onde assenta um ponto de não
retorno ultrapassando-o. Até onde queremos arriscar?
Mortalidade provocada por vagas de calor vai aumentar de
forma drástica
Onde já ultrapassamos o ponto de não retorno?
Há dois pontos que diria, com certeza, que ultrapassamos. Um
deles são os recifes de coral. Com a temperatura média actual dos oceanos os
recifes estão a passar por um fenómeno de branqueamento. Quando aumentar mais
0,2ºC ou 0,3ºC – o que vai acontecer de certeza porque não podemos ter zero
emissões amanhã –, vamos perder uma grande parte dos recifes de coral no mundo.
Outro é o gelo do Árctico. O gelo expande-se no Inverno,
contrai-se no Verão. Quando o clima é estável, há sempre limites semelhantes
nas estações e entre elas. Mas à medida que aquece, esta área encolhe. Ora, o
gelo é um estabilizador do clima, porque reflecte grande parte da luz solar.
Por isso à medida que mais gelo derrete, mais água fica exposta ao sol e, sendo
escura, absorve mais calor. Gera-se um ciclo. Talvez demore uma década a
desaparecer. No máximo duas décadas.
Que efeitos terá?
Se ficarmos sem o gelo do Árctico vamos ter uma aceleração
do ritmo de aquecimento global, talvez em 0,1 ºC ou 0,2ºC. Terá um maior efeito
no hemisfério norte, devido a dois grandes efeitos dominó no extremo norte do
planeta. Um deles é o permafrost [solos permanentemente congelados no Árctico],
onde estão armazenadas grandes quantidades de carbono. Esse solo agora começa a
aquecer, libertando carbono e bactérias. Ora a reacção química entre as
bactérias e o carbono gera calor. Há um novo ciclo. E quando o carbono é
decomposto pelas bactérias, emite dióxido de carbono e metano, que, por sua
vez, contribuem directamente para o aquecimento global.
O segundo efeito do degelo do Árctico incide nas grandes
fortalezas no extremo norte, em especial a Rússia e o Canadá. À medida que as
temperaturas sobem, os insectos que existem em número reduzido por não lidarem
bem com o frio, como os besouros, começam a reproduzir-se mais rapidamente e as
populações aumentam exponencialmente. Mais animais comem mais plantas e fungos
das árvores, enfraquecendo a vegetação e tornando-a mais vulnerável a fenómenos
externos, como os incêndios.
Quando começamos a derrubar as primeiras peças de dominó,
dificilmente conseguimos impedir as seguintes de caírem.
Há uma associação imediata das alterações climáticas às
emissões de dióxido de carbono e de óxido nitroso da produção energética,
indústria e transportes. O papel das emissões de metano, com origem na
agro-pecuária, é negligenciado?
Sim. Das áreas de actividade humana que emitem mais gazes
com efeito de estufa (dióxido de carbono, óxido nitroso e metano), a energia é
o maior sector. Mas os dois seguintes têm praticamente o mesmo peso:
agricultura e transportes. Só depois temos a construção e os resíduos, que em
decomposição libertam bastante metano.
A agricultura emite os três gases. Emite CO2, porque a agricultura
moderna é essencialmente mecanizada, movida a combustíveis fósseis. O óxido
nitroso tem origem, principalmente, nos fertilizantes nitrogenados. E o metano
aparece neste cenário por duas razões: [criação de] gado – sustentada pela
nossa dieta baseada em carne – com origem no processo de digestão dos animais;
e o cultivo de arroz. Quando se faz cultivo em arrozais húmidos, há uma
decomposição do solo subterrâneo. Como não é directamente exposto ao ar, esse
solo não tem dióxido de carbono. Tem carbono e hidrogénio, CH4 [metano], que
borbulha para o campo inundado de arroz. [O metano] é um gás muito mais
perigoso que o CO2, por ser mais eficiente na captura de radiação.
Isso leva-o a concluir que o sistema terrestre não é
compatível com os actuais sistemas económico e social.
Exactamente. Nós estamos a devastar a natureza. Estamos a
produzir e a consumir de tal forma que os ciclos naturais não conseguem
absorver de forma suficientemente rápida o que emitimos. Então acumula-se.
Começamos por ter poluição local dos oceanos, dos solos, do ar. E desde 1950
temos poluição global.
Ou controlamos as alterações ao clima ou "estas
catástrofes vão ser frequentes"
A resposta da ciência foi, em 2009, a definição dos nove
limites do planeta dentro dos quais a vida na Terra está assegurada. Estes
indicadores são medidos?
Não de forma sistemática. A concentração de CO2 é medida por
várias agências. Para os restantes, é necessário esforço da parte dos
cientistas para recolherem os dados. Não há nenhuma agência, como as Nações
Unidas, que os monitorize de forma sistemática.
Essa agência pode ser a Casa Comum da Humanidade? Quais são
as suas expectativas?
Acho que vamos poder monitorizar o que acontece na Terra,
como um sistema. E espero que com isso consigamos obter compromissos dos
governos para que trabalhem em conjunto pela estabilidade do sistema terrestre.
Mas a Casa também tem uma missão ética e moral. Até agora só
olhámos para a Terra como uma coisa física – pescamos do mar, fazemos
agricultura no solo, cortamos árvores –, não pensamos na parte intangível do
sistema terrestre, que nos proporciona um sistema estável e favorável à vida.
Hoje temos a biosfera, o clima e a antroposfera. Se nos
imaginarmos nesta moldura, seremos capazes de nos gerir como parte do sistema
terrestre e como entidade capaz de o manter em equilíbrio. Devemos olhar para o
sistema terrestre como um “sistema de suporte de vida”. Acho que se a Casa
Comum da Humanidade conseguir passar esta ideia às pessoas será um grande
sucesso.
Como avalia, até agora, os avanços do Acordo de Paris?
É cedo para fazer uma avaliação completa. Mas agora diria
que estou desiludido. Não vejo nenhuma mudança significativa, à excepção,
talvez, da China. Certamente não nos Estados Unidos. Nem na Alemanha – que é
tradicionalmente um país activo nesta matéria –, onde têm problemas em parar as
minas de carvão na antiga região leste. Acho que temos grandes desafios à
frente. Em parte porque é um problema do sistema. As pessoas, até os governos
querem fazer o que é certo, mas estão a combater um sistema económico assente
no não-reconhecimento do intangível.
Apelando à sua experiência na Suécia e na Austrália, o que
podem fazer os governos a nível local?
Uso um exemplo da Austrália. Em Camberra, cidade que, embora
seja capital, terá menos de um meio milhão de habitantes, a administração local
decidiu, em 2010, eliminar completamente o carbono do sistema energético até
2020. Eram apenas 10 anos para fazer a mudança e, na altura, estávamos nervosos
porque as renováveis eram muito caras. Mas os preços começaram a descer. Agora
temos cinco grandes parques solares ao longo da auto-estrada e parques eólicos.
Claro que fazemos parte de uma rede nacional, mas eliminámos os combustíveis
fósseis do consumo de energia dos habitantes de Camberra. E, não só fizemos
isto, como temos o preço mais baixo de energia na Austrália.
Isto deu-nos confiança. E recentemente aprovámos uma nova
lei para eliminar o resto do carbono da economia de Camberra – resíduos,
transporte, infra-estruturas – até 2025 ou até mais cedo. E isto mantém-nos
entre os intervalos do Acordo de Paris.
O passo mais difícil foi o primeiro. Houve grandes discussões
políticas. As pessoas diziam que ia custar demasiado, que não ia funcionar, que
iam perder os seus empregos. Na verdade, criámos postos de trabalho. Algumas
empresas de energia renováveis mudaram as sedes para Camberra, começaram a
formar técnicos. A nossa economia cresceu e levou o poder político a dizer:
“Sim, vamos eliminar o resto do carbono da economia.”
Há uma tendência para se considerar que, sendo as alterações
climáticas um fenómeno global, as acções locais terão pouco impacto. Como
desconstrói esta ideia?
As alterações climáticas requerem acção colectiva. E é essa
a beleza das energias renováveis: pode-se começar a nível local, até a nível
individual. O que se passa na Austrália é que temos um governo que não faz
nada, que continua a dar dinheiro à indústria dos combustíveis fósseis. Mas
muitas cidades, inclusive bem mais pequenas que Camberra, fazem a parte delas.
Então agora a Austrália tem a mais elevada taxa de energia solar per capita do
mundo.
E é preciso que as pessoas se envolvam politicamente. Têm
que votar em partidos que tomem acções para mitigar as alterações climáticas
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