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“ Se se riram, foi talvez do nervoso “
(…) “A ideia de que não há uma sociedade global e que o
único valor que deve reger as relações internacionais é a soberania de cada
Estado e o seu direito a defender os seus interesses faz sentido também para um
número crescente de europeus. O controlo das fronteiras para impedir a entrada
de imigrantes é visto como prioridade para cada vez mais gente. As mudanças na
Europa são mais subtis, mas o sentimento de que a globalização criou mais
perdedores nas economias desenvolvidas do que nas outras está hoje generalizado
– porventura, mais do que gostaríamos de admitir, com os nossos óculos
elitistas, sempre que olhamos para a América, quando já temos a nossa casa a
começar a arder. Vontade de rir? Nenhuma. Ou então, apenas algumas gargalhadas
nervosas.”
Teresa de Sousa
Se se riram, foi talvez do nervoso
O discurso de Trump foi o mais completo ataque à ordem
multilateral e a mais clara negação das orientações da política externa
americana nos últimos 100 anos.
30 de Setembro de 2018, 8:36
1. Alguns dos presentes na Assembleia Geral da ONU, em
reunião plenária desde o dia 25 até hoje, ter-se-ão rido abertamente em alguns
momentos do discurso do Presidente norte-americano, proferido na passada
terça-feira. A incivilidade está, no geral, afastada destas missas solenes em
que o mundo se reúne em Nova Iorque. Rir do Presidente dos EUA é uma prática
inédita. Protestos de algumas delegações, é habitual. O incidente, que ainda
hoje faz manchetes, (quase) apagou o conteúdo da intervenção de Donald Trump.
Não é uma boa notícia, sobretudo para quem ainda presa o multilateralismo e os
valores universais que a Carta das Nações Unidas consagra. Há que admitir que
pelo menos numa passagem, logo no início, teria sido difícil conter um sorriso.
Foi quando o Presidente anunciou que “em menos de dois anos (…) tinha
conseguido mais do que quase todas as administração da História” do seu país.
Ficamos sem saber se o “quase” se referia a Lincoln ou Roosevelt, os dois mais
fortes candidatos que nos vêem à cabeça, para além de George Washington.
Depois, passou em revistas todas as suas extraordinárias realizações, desde o
maior corte de impostos da história da América até à construção do muro na
fronteira com o México. Mais tarde, explicou aos jornalistas que se tratava de
“fake news”, que a Assembleia riu com ele e não dele. Para encerrar a questão
vale a pena recordar o que disse em 2014, referindo-se a Obama: “Precisamos de
um Presidente que não seja motivo para riso no mundo inteiro.” “O riso
figurativo de 2014 tornou-se no riso literal de 2018”, escreve a Atlantic. “O
soft power americano está no seu nível mais baixo desde a II Guerra”. Não é um
conceito pelo qual Trump tenha qualquer interesse.
2. O conteúdo da sua intervenção, lida em tom monocórdico,
sem qualquer capacidade de entusiasmar ou emocionar, foi o mais completo resumo
de uma visão do mundo que estava anunciada em quase todas as suas decisões de
política externa, transmitidas na maioria da vezes em meia dúzia de palavras,
mas agora transformadas numa longa peça escrita que constituiu o mais completo
ataque à ordem multilateral e a mais clara negação das orientações da política
externa americana nos últimos 100 anos. Fosse qual fosse a cor política do seu
Presidente. Trump rejeita o “globalismo” e uma “burocracia global, não eleita
nem susceptível de ser responsabilizada”, como descreveu, por exemplo, a
Comissão dos Direitos Humanos da ONU, da qual anunciou que se retirava. Quase
no final, deu a sua visão da ordem que defende: “Nações soberanas e
independentes são o único veículo onde a liberdade sempre sobreviveu, a
democracia sempre foi garantida ou a paz sempre prosperou. Por isso devemos
proteger a nossa soberania e a nossa adorada independência acima de tudo”. À
cooperação internacional assente em regras, Trump contrapõe a soberania
nacional, que todas e as nações têm o direito de defender por todos os meios.
Faltou-lhe apenas acrescentar que as soberanias não são todas iguais e que,
como foi demonstrando ao longo da sua intervenção, a relação de forças acaba
por ser o critério fundamental. “Ele é um activista da frente soberanista
Xi-Putin-Orbán, essa impossível internacional dos nacionalismos e um inimigo
jurado da ordem liberal”, escreve sem meias palavras Timothy Garton Ash no
Guardian. Elegeu o Irão como o novo “inimigo número um” dos EUA, ameaçando veladamente
a sua soberania, apontando-o como o único responsável pelas calamidades
cometidas pelo regime de Damasco (a Rússia nunca existiu), incentivando o seu
povo à revolta contra um regime “sangrento” que rouba o povo e que o oprime. A
decisão de aplicar sanções secundárias a todas as empresas que mantenham
negócios com o Irão, depois de ter retirado o seu apoio ao acordo nuclear de
2015 e ter reposto uma primeira leva de sanções, interfere directamente com as
decisões “soberanas” dos países europeus subscritores do acordo. Pode fazê-lo
porque o mercado americano é suficientemente forte e o dólar suficientemente
omnipresente para não lhes deixar outra alternativa senão saírem. “Foi um
momento excepcional nos hábitos dos 73 anos da ONU”, escreve o Financial Times
em editorial. “A Europa, incluindo o Reino Unido, normalmente um fiel aliado
dos EUA, alinhar publicamente com Moscovo e com Pequim contra Washington numa
questão que está no centro da política externa americana”. Tratou dois
ditadores como amigos, mesmo que lhes tenha lembrado que os negócios ficam à
parte. O seu amigo Xi Jinping vai continuar a sofrer os efeitos da “guerra
comercial” que decretou contra a China. “Durante décadas, os EUA abriram a sua
economia – de muito longe a maior à face da Terra – com poucas condições”.
Resultado: "Os EUA perderam mais de 3 milhões de empregos na manufactura,
quase um quarto dos empregos na indústria do aço, e 60 mil fábricas depois de a
China ter aderido à OMC. E acumulámos mais de 13 triliões de dólares em défices
comerciais nas duas últimas décadas”. O outro é Kim Jong-un, que representa até
agora o único meio-sucesso diplomático que pode apresentar: há uma abertura do
regime e prossegue uma aproximação com Seul.
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3. Pela primeira vez de há muitas décadas, um discurso de um
Presidente americano não tem qualquer referência aos aliados europeus e à
aliança transatlântica. Mais uma vez, a Alemanha foi apontada a dedo como o seu
mais sério “inimigo”, desta vez porque escolheu o caminho da dependência
energética (não disse relação a quem), correndo o risco de se tornar
“vulnerável à extorsão e à intimidação”. Berlim tornou-se o alvo privilegiado
de Trump na Europa, desde o início do seu mandato. Por causa do seu excedente
comercial gigantesco mas também porque olha para a Alemanha como a “força” por
trás da integração europeia, cuja utilidade não entende nem fará nada para
preservar. Outra estreia absoluta. Os seus amigos estão em Budapeste, em Roma
ou na Polónia, eleita um dos quatro países do mundo que elegeu como “faróis”
que iluminam as respectivas regiões, numa passagem tão preocupante como
irresistível. “Há a Índia, uma sociedade livre de mil milhões de pessoas, que
conseguiu com sucesso tirar milhões da pobreza (…). Há a Arábia Saudita, onde o
Rei Salman e o Príncipe herdeiro estão a levar a cabo grandes e ambiciosas
reformas. Há Israel, que celebra com orgulho os seus 70 anos como uma
democracia dinâmica na Terra Santa. Na Polónia, um grande povo ergue-se pela
sua independência, a sua segurança e a sua soberania. O mundo é mais rico, a humanidade
é melhor, por causa desta bela constelação de nações.” A Polónia está em
conflito com a União Europeia por violar as regras do Estado de Direito. Mas é
um exemplo perfeito daquilo que Trump entende como país aliado: Varsóvia pediu
aos EUA para instalarem uma base militar na Polónia, pela qual está disposta a
pagar e que promete chamar de “Fort Trump”. Garton Ash, no mesmo texto, avisa
que não é apenas um problema de Trump e que basta que saia da Casa Branca para
que a velha relação transatlântica volte ao que sempre foi. “Grande parte da
América voltou as costas à Europa”. E o historiador britânico não fala apenas
da metade “ignorante”. Fala das elites. “Trump é horrível mas, neste aspecto, é
tanto um sintoma como uma causa”.
4. Aquilo que achamos bizarro ou ameaçador ou que nos faz
encolher os ombros - “de que é que se estava à espera?” –, pode fazer
perfeitamente sentido para muitos americanos mas também para muitos europeus
que rejeitam internacionalismo e aceitam o nacionalismo por razões parecidas
com as dos americanos que elegeram Trump. “A América é governada pelos
americanos. Rejeitamos a ideologia do globalismo e abraçamos a doutrina do
patriotismo”. A ideia de que não há uma sociedade global e que o único valor
que deve reger as relações internacionais é a soberania de cada Estado e o seu
direito a defender os seus interesses faz sentido também para um número
crescente de europeus. O controlo das fronteiras para impedir a entrada de
imigrantes é visto como prioridade para cada vez mais gente. As mudanças na
Europa são mais subtis, mas o sentimento de que a globalização criou mais
perdedores nas economias desenvolvidas do que nas outras está hoje generalizado
– porventura, mais do que gostaríamos de admitir, com os nossos óculos
elitistas, sempre que olhamos para a América, quando já temos a nossa casa a
começar a arder. Vontade de rir? Nenhuma. Ou então, apenas algumas gargalhadas
nervosas.
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