Carla, a “Rainha dos Pequenos”
VERA MOUTINHO (texto e vídeo)
Carla Pinheiro não sabia, mas andava à procura da sua voz.
Em miúda era acanhada. A mãe dizia-lhe: “És um bicho-do-mato”. Até ir ao café
era uma vergonha. Era conhecida como “Carla, a angolana”, por fazer parte dos
retornados de Angola. Sentiu-se muitas vezes excluída. Em casa, o pai,
militante do PCP, praguejava contra o discurso dos políticos na televisão.
Carla respondia: “Eles não estão a ouvir”. Desinteressou-se cedo pela escola,
os trabalhos sempre foram precários. Foi a primeira carta de despejo que
recebeu pelo correio em Setembro de 2016 que deu uma reviravolta na vida de
Carla.
Aos 48 anos, tornou-se uma activista. “Toda a gente diz que
temos muita força. Quando vamos para uma intervenção, a fazemos tremer aquela
gente”, conta ao PÚBLICO. Carla e os moradores do número 25 da Rua dos Lagares
em Lisboa tornaram-se um símbolo da luta contra os despejos na capital.
Encheram a fachada do prédio de frases de protesto, organizaram-se, ganharam
atenção mediática e apoio de figuras de peso na Câmara Municipal de Lisboa,
como a vereadora da Habitação Paula Marques ou Helena Roseta, presidente da
Assembleia Municipal.
Foram sobretudo as mulheres do prédio que se mobilizaram.
Carla foi escolhida para ser porta-voz. Fala com garra, determinação. Nos
últimos anos, a mãe, que entretanto perdera a visão, adorava ouvi-la. "Tu
falas tão bem, filha. Falas o que o povo percebe". É ela quem dá a cara
nas reuniões públicas da Câmara Municipal de Lisboa e em todas as intervenções
públicas. No primeiro evento que decidiram organizar - uma sardinhada solidária
em Junho de 2017- Carla tremia por todo o lado. "Não sabíamos de nada, não
tínhamos dinheiro, juntámos um bocadinho dali, outro daqui. À noite tínhamos
aqui muita gente a apoiar-nos". Ricardo Robles, ex-vereador do Bloco de
Esquerda, deu a Carla e às resistentes da Rua dos Lagares a alcunha de
“gaulesas”.
Maria do Rosário, Carla Pinheiro e Alessandra Esposito são
as três moradoras mais activas no protesto contra o despejo do número 25 da Rua
dos Lagares ANDREIA PATRIARCA
Nas Assembleias Municipais falam directamente com o
presidente da CML, Fernando Medina, ou com o vereador do Urbanismo, Manuel
Salgado, que acusam de dar benefícios ao senhorio. “Durante estes dois anos o
que ouvimos foi obras e nada de solução definitiva. Ainda não nos conseguimos
dizer assim ‘fogo estou a dormir sossegada, vou ter um tecto’.” A CML chegou a
acordo com o senhorio e garantiu-lhes mais cinco anos no número 25 da Rua dos
Lagares. As rendas mantiveram-se (com valores entre os 200 e os 500 euros) e o
proprietário foi obrigado a fazer obras na cobertura do prédio até Outubro
deste ano. O prazo foi entretanto alargado até Maio de 2019.
Para os moradores, a solução passou a ser um problema: “Não
estão a melhorar as nossas casas para nós vivermos cá. Aquilo está pronto para
um alojamento local. Temos a certeza absoluta de que iremos todos para a rua”.
Nos últimos dois anos, Carla Pinheiro perdeu o pai, depois a
mãe. “Tenho pena que o meu pai não me tenha visto a ser uma mulher tão forte.
Hoje, Carla já não vê só as as “cusquices” das redes sociais. Está atenta aos
decretos de lei, lê atentamente as notícias. Mas há dias deu por si a fazer um
daqueles jogos do Facebook:"Descubra quem foi na vida passada".
"O meu dizia: Rainha dos Pequenos. Gosto".
Paula e as seis vidas do T1 não cabem no Porto cartão-postal
MARIANA CORREIA PINTO (texto) e TERESA PACHECO MIRANDA
(vídeo)
Quando Paula Magalhães “via o mundo no telejornal”, os
dramas dos outros pareciam-lhe distantes. Professores deslocados e mal pagos,
desempregados, desalojados. O ecrã da TV era montra e ao mesmo tempo
trincheira: “Não via as coisas como agora”. Agora, conta, o noticiário acontece
na sua cidade, passa na sua rua, entra na sua casa. E isso mudou tudo.
Paula não decidiu ser activista. Ocorreu de forma tão
inesperada como a aparição de um guardanapo de papel na sua caixa de correio,
com um nome desconhecido e um NIB inscritos. O pai dela — inquilino do T1 onde
a família de três adultos e três crianças habita, no centro histórico do Porto
— tinha recebido tempos antes uma carta onde lhe davam a opção de compra do
prédio. Bernardo Magalhães não tinha como. Respondeu não estar interessado sem
notar que o documento já previa um segundo comprador, o seu futuro senhorio.
Subscrevia ao engano a sua sentença. Passou a transferir os 295 euros mensais
da renda para o NIB comunicado no guardanapo, mas não demorou até a notícia
temida chegar: contrato rescindido, ordem de saída até ao final de Abril.
Por essa altura, caía na mesma caixa de correio um panfleto
de uma associação de moradores criada para lutar contra os despejos. E Paula
Magalhães, 29 anos, não hesitou. “Fui a uma reunião e no meio daquelas
desgraças todas não podia ficar indiferente”, recorda. “Quando dei por mim já
andava a colar cartazes, a mandar emails para outros colectivos, a contactar
advogados, a participar em manifestações.”
No T1 de Paula Magalhães, no centro histórico do Porto,
vivem três adultos e três crianças. São os únicos moradores permanentes do
edifício transformado num hostel TERESA PACHECO MIRANDA
A família Magalhães resiste no primeiro piso do número 194
da Rua dos Caldeireiros. São os únicos moradores permanentes do edifício
transformado num hostel, um entra e sai diário: as rodas das malas a ecoar no
chão, a campainha deles a soar porque é a única do prédio, vizinhos sempre
desconhecidos.
A luta de Paula Magalhães não é contra os turistas. Há dias,
quando distribuía panfletos a promover a manifestação deste sábado, uma mulher
espanhola interpelou-a, sem entender do que se tratava:
— ¿Qué vendes?
— Liberdade. O direito à minha casa.
Paula contou-lhe da batalha travada por muitos moradores no
Porto para não perder as suas casas, objecto de desejo de investidores e senhorios
a mirar um negócio lucrativo. E a turista, quase envergonhada por se sentir
origem de algo que desconhecia, perguntou-lhe como podia estar ali sem estragar
a vida dela.
— Não temos nada contra os turistas, só não pode ser nas
nossas casas.
Foi essa a mensagem gravada na faixa, agora semi-desbotada,
que vestiu o seu prédio há uns meses. Como outras afixadas por aquela zona da
cidade, querem lembrar a quem passa — e a quem manda — a dor escondida para lá
das janelas. Um outro cartão-postal, invisível na imagem da cidade
quebra-corações de gabarito internacional. No pequeno T1 dos Magalhães, a vida
faz-se de cêntimos contados e numa logística aparentemente impossível.
Improvisam-se camas no chão da sala, perde-se o espaço de convívio, janta-se à
vez porque a mesa não dá para todos. É assim desde que Paula teve de deixar a
sua casa com os filhos por não comportar o aumento da renda. O prédio, mesmo em
frente ao dos pais, entrou em obras. Adivinha-se mais alojamento local. O
apartamento onde vivia antes desse é agora um hostel de luxo.
Paula põe-se a pensar no futuro e os olhos claros entornam a
angústia. Naquela casa, onde a humidade vestiu de preto parte do tecto desde
que as obras para o hostel começaram, não há sequer espaço para uma árvore de
Natal. Nem um cantinho para as prendas. Os brinquedos dos meninos — 11, quatro
e três anos — estão encaixotados. “A gente não quer uma casa com rendas
congeladas, quer uma casa que possa pagar, que me permita pôr os meus filhos a
ter actividades extra-curriculares e continuar a encher o meu frigorifico”, diz
Paula emocionada. “Não quero luxos. Não quero uma casa na Foz. Quero uma casa
aqui, no centro histórico, com as pedrinhas a cair, com as janelinhas antigas.
É onde eu moro, não conheço mais nada.”
“Quero uma casa aqui, no centro histórico, com as pedrinhas
a cair, com as janelinhas antigas”, diz Paula Magalhães TERESA PACHECO MIRANDA
O imbróglio dos contratos é grande. Mas Paula Magalhães
agarra-se à recente alteração da lei de arrendamento — que proíbe despejos de
pessoas com mais de 65 anos, 15 de contrato e incapacidade superior a 60% — e
acredita que não possam pôr os pais dali para fora. Mas o problema dela
continua: precisa de uma casa maior, onde possam viver em vez de resistir.
Os pedidos de habitação social feitos à câmara foram
recusados. E os preços do mercado privado são incomportáveis para o orçamento
caseiro. Os pais trabalham na área da restauração. Paula, mãe solteira, está
desempregada e faz uns biscates quando surgem. Não chega para pagar nenhuma das
casas com as quais se têm cruzado em anúncios imobiliários. “Como é que isto
acontece no século XXI, onde somos todos iguais?”, questiona.
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