segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Comércio grossista tradicional nas ruas da Palma e do Benformoso está em declínio e com os dias contados






Pergunta de algibeira: A crise também se estende às lojas asiáticas ?
(…) “A Rua da Palma vai ser a Chinatown de Lisboa. A venda grossista tradicional vai acabar aqui”, prevê Sandra Fernandes”
(…) “Jatin Chandra, tal como outros comerciantes, critica ainda a construção do templo islâmico. “Sou hindu e desloco-me até Telheiras para ir à igreja. Não vejo necessidade da construção de uma mesquita, já há muitas na cidade”, diz.”
OVOODOCORVO

Comércio grossista tradicional nas ruas da Palma e do Benformoso está em declínio e com os dias contados

Sofia Cristino
Texto
10 Setembro, 2018

Na zona mais cosmopolita e multicultural da cidade, existe ainda uma Lisboa testemunha de outro tempo e que está, aos poucos, a desaparecer. Os grossistas instalados há mais anos nos arruamentos que vão dar ao Martim Moniz nunca temeram tanto pelo futuro dos seus negócios. Denotando amargura com as mudanças em redor, culpam a Câmara de Lisboa pela degradação do comércio tradicional. Os empresários, com crescentes quebras na facturação, dizem que a dificuldade de estacionamento e os planos de requalificação daquela parte da cidade – que prevêem a demolição de uma garagem para a construção de uma mesquita e o despejo de lojistas para a criação de habitação acessível – já estão a afastar clientes e fornecedores. E até acusam a polícia de lhes ocupar os lugares de parqueamento. “Desde que mudaram as instalações para aqui, tomaram conta do estacionamento”, critica um vendedor.

 “A Rua da Palma vai ser a Chinatown de Lisboa. A venda grossista tradicional vai acabar aqui”, prevê Sandra Fernandes, 41 anos, filha do proprietário de uma empresa de revenda nesta parte da cidade, onde se concentram muitas lojas de venda em grandes quantidades. A lojista fala da inevitabilidade do desaparecimento de uma Lisboa por muitos já vista como obsoleta, em grande medida fruto das alterações dos hábitos de consumo. “Algumas feirantes que iam para a praça vender os nossos produtos foram morrendo e, cada vez mais, também se compra pela internet”, explica.

O gerente da firma, José Lopes Fernandes, 73 anos, há três décadas a trabalhar nesta artéria, também teme o pior. “Andávamos em obras quando o Chiado estava a arder, conheço bem esta zona. O negócio começou a sofrer quando abriram outras lojas concorrentes, e, de ano para ano, tem vindo a piorar. Já reduzimos as vendas em 80%”, lamenta. Os lojistas estão insatisfeitos com o acentuar da degradação do comércio, nos últimos anos, e dizem que os planos de requalificação da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para aquela parte da cidade – a construção de uma mesquita e o despejo de lojistas da Rua de São Lázaro, para a criação de habitação no âmbito do Programa Renda Acessível (PRA) – contribuirão ainda mais para a decadência dos negócios.

“O cenário é muito negro. Já fecharam várias lojas, na Rua de São Lázaro vão encerrar mais e as pessoas vão deixar de vir a esta zona porque já não há praticamente nada. Com a saída da garagem, vão fechar mais espaços, porque os comerciantes vão deixar de ter onde estacionar”, diz Jatin Chandra, 42 anos, que diz só manter portas abertas graças aos clientes habituais. Dono de uma loja de revenda de têxteis, aberta deste 1985, Jatin tem três carros estacionados na garagem que será demolida para dar lugar à Praça da Mouraria e a uma mesquita, tal como O Corvo tem noticiado. Ao deixar de ter onde colocar as viaturas, o lojista reconhece que vai ser mais difícil aguentar o negócio. “Desde que a polícia mudou as instalações para aqui, tomou conta do estacionamento, já há poucos lugares. As pessoas ainda não têm bem noção do que o fecho da garagem vai causar”, observa, apontando para os seis lugares de estacionamento ocupados por viaturas da Polícia de Segurança Pública (PSP), na Rua da Palma.

Jatin Chandra, tal como outros comerciantes, critica ainda a construção do templo islâmico. “Sou hindu e desloco-me até Telheiras para ir à igreja. Não vejo necessidade da construção de uma mesquita, já há muitas na cidade”, diz.

Na Rua da Palma há duas décadas, Florbela Vicente, 49 anos, também está apreensiva. Enquanto acompanha um cliente pelos corredores da loja, mostrando a variedade de artigos e utensílios para a casa, vai comentando os planos da autarquia. “O fecho da garagem vai agravar um problema que já existe nesta zona, a falta de estacionamento. Se a requalificação trouxesse melhorias à rua, que está totalmente degrada, concordava, mas construir uma mesquita não faz sentido. Nós também temos os dias contados”, antevê.

 Na Rua da Palma, nos últimos anos, já fecharam uma ourivesaria, um barbeiro, uma retrosaria, uma sapataria, uma agência de viagens, uma cervejaria e lojas de móveis. Há muitos edifícios vazios, aparentemente ainda sem destino, um cenário que não agrada a nenhum dos vendedores. Madalena Ferreira, 60 anos, uma das primeiras lojistas a instalar-se na Rua da Palma, diz que nunca viu o arruamento que liga a Avenida Almirante Reis à Baixa “tão abandonado”. “Prometeram requalificar esta zona, mas está cada vez mais suja e degradada. Sinto-me muito sozinha aqui. Quando fechar, neste lado da rua, não sobra um único comerciante português”, diz a vendedora de roupa e acessórios.

 Luísa Mota, 44 anos, não consegue esconder a revolta na voz. Comerciante na Rua da Palma há vinte anos, já não acredita em melhorias. “Mais dois anos e fecha tudo, não temos hipótese”, diz inconformada, enquanto empilha embalagens de pijamas e lençóis. Atrás do balcão, mais tímida, está Ana Maria, com 18 anos dedicados à loja de revenda. “O ano passado e este, 2018, foram os piores anos de sempre”, diz, enquanto se ouve a voz de fundo da colega, que não pára de enumerar queixas. Na mesma rua, Margarida Dias, 52 anos, critica os preços cobrados para o estacionamento do Martim Moniz. “Os valores do parque de estacionamento subterrâneo são muito elevados, o que também afasta clientes. Isto já só dá para as despesas, está tão diferente”, lamenta.

 Na Rua do Benformoso, onde a mistura de nacionalidades se sente mais, até porque estamos na zona mais cosmopolita de Lisboa, o barulho das obras denuncia mudanças bem mais profundas. No interior do edifício do número 244, onde a colectividade Amigos do Minho esteve sediada 67 anos, consegue-se ver paredes pintadas de novo e, até onde a visão permite, materiais de construção espalhados. Ao longo da rua, vêem-se alguns prédios à venda, um imóvel rodeado de andaimes e outros já pintados de fresco, mas ainda não se sabe exactamente o que vai acontecer ali. E há quem lance palpites. “Nesta rua, só vai haver hostels e hotéis, estão a destruir a história de Lisboa”, critica António Barroso, que se auto-intitula como “o lesado de Benformoso”.

O comerciante é proprietário de dois imóveis condenados à demolição pela Câmara de Lisboa, dos quais a autarquia tomou posse administrativa a 23 de Maio de 2016, para ali construir a nova mesquita da comunidade bangladeshi. “Ando em guerra com a CML, porque expropriou os meus prédios sem me dizer nada. Não conhecem a nossa realidade, nem o que foi esta rua há trinta anos. Dizem que querem que o comércio do bairro viva dos moradores, mas expulsaram-nos”, critica. António Barroso, a meio de um processo judicial com a câmara, diz mesmo não acreditar que a futura Praça da Mouraria venha a contemplar uma mesquita. “Venderam a loja dos correios, que fica mesmo ao lado dos terrenos da garagem Navarro. Se realmente for tudo demolido, fica ali um espaço enorme e muito valioso, dá para construir muitos hotéis”, avalia.

 Enquanto António Barroso ainda tem esperança de não abandonar os prédios onde estão instaladas as duas lojas, João Fernandes Marinho, 74 anos, antecipa um quadro pior. “Esta rua foi muito forte em termos de comércio. Há 25 anos, éramos praticamente todos portugueses. Os grandes armazenistas desapareceram e estas lojas têm tendência a acabar”, receia. Há meio século a vender brinquedos na Rua do Benformoso, recorda com nostalgia os tempos áureos do comércio no bairro. Agora, com perdas nas vendas na ordem dos 50%, já não tem esperança no futuro. “Esta zona era habitacional e deixou de ser e os turistas têm menos poder de compra. Há uma grande concorrência desleal, todos vendem a mesma coisa. É impossível sobreviver”, diz, enquanto mostra o segundo andar da loja, repleto de caixotes com brinquedos.

Sem comentários: