Pergunta de algibeira: A crise também se estende às lojas
asiáticas ?
(…) “A Rua da Palma vai ser a Chinatown de Lisboa. A venda
grossista tradicional vai acabar aqui”, prevê Sandra Fernandes”
(…) “Jatin Chandra, tal como outros comerciantes, critica
ainda a construção do templo islâmico. “Sou hindu e desloco-me até Telheiras
para ir à igreja. Não vejo necessidade da construção de uma mesquita, já há
muitas na cidade”, diz.”
OVOODOCORVO
Comércio grossista tradicional nas
ruas da Palma e do Benformoso está em declínio e com os dias contados
Sofia Cristino
Texto
10 Setembro, 2018
Na zona mais cosmopolita e multicultural da cidade, existe
ainda uma Lisboa testemunha de outro tempo e que está, aos poucos, a
desaparecer. Os grossistas instalados há mais anos nos arruamentos que vão dar
ao Martim Moniz nunca temeram tanto pelo futuro dos seus negócios. Denotando
amargura com as mudanças em redor, culpam a Câmara de Lisboa pela degradação do
comércio tradicional. Os empresários, com crescentes quebras na facturação,
dizem que a dificuldade de estacionamento e os planos de requalificação daquela
parte da cidade – que prevêem a demolição de uma garagem para a construção de
uma mesquita e o despejo de lojistas para a criação de habitação acessível – já
estão a afastar clientes e fornecedores. E até acusam a polícia de lhes ocupar
os lugares de parqueamento. “Desde que mudaram as instalações para aqui,
tomaram conta do estacionamento”, critica um vendedor.
“A Rua da Palma vai
ser a Chinatown de Lisboa. A venda grossista tradicional vai acabar aqui”,
prevê Sandra Fernandes, 41 anos, filha do proprietário de uma empresa de
revenda nesta parte da cidade, onde se concentram muitas lojas de venda em
grandes quantidades. A lojista fala da inevitabilidade do desaparecimento de
uma Lisboa por muitos já vista como obsoleta, em grande medida fruto das
alterações dos hábitos de consumo. “Algumas feirantes que iam para a praça
vender os nossos produtos foram morrendo e, cada vez mais, também se compra
pela internet”, explica.
O gerente da firma, José Lopes Fernandes, 73 anos, há três
décadas a trabalhar nesta artéria, também teme o pior. “Andávamos em obras
quando o Chiado estava a arder, conheço bem esta zona. O negócio começou a
sofrer quando abriram outras lojas concorrentes, e, de ano para ano, tem vindo
a piorar. Já reduzimos as vendas em 80%”, lamenta. Os lojistas estão
insatisfeitos com o acentuar da degradação do comércio, nos últimos anos, e
dizem que os planos de requalificação da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para
aquela parte da cidade – a construção de uma mesquita e o despejo de lojistas
da Rua de São Lázaro, para a criação de habitação no âmbito do Programa Renda
Acessível (PRA) – contribuirão ainda mais para a decadência dos negócios.
“O cenário é muito negro. Já fecharam várias lojas, na Rua
de São Lázaro vão encerrar mais e as pessoas vão deixar de vir a esta zona
porque já não há praticamente nada. Com a saída da garagem, vão fechar mais espaços,
porque os comerciantes vão deixar de ter onde estacionar”, diz Jatin Chandra,
42 anos, que diz só manter portas abertas graças aos clientes habituais. Dono
de uma loja de revenda de têxteis, aberta deste 1985, Jatin tem três carros
estacionados na garagem que será demolida para dar lugar à Praça da Mouraria e
a uma mesquita, tal como O Corvo tem noticiado. Ao deixar de ter onde colocar
as viaturas, o lojista reconhece que vai ser mais difícil aguentar o negócio.
“Desde que a polícia mudou as instalações para aqui, tomou conta do
estacionamento, já há poucos lugares. As pessoas ainda não têm bem noção do que
o fecho da garagem vai causar”, observa, apontando para os seis lugares de
estacionamento ocupados por viaturas da Polícia de Segurança Pública (PSP), na
Rua da Palma.
Jatin Chandra, tal como outros comerciantes, critica ainda a
construção do templo islâmico. “Sou hindu e desloco-me até Telheiras para ir à
igreja. Não vejo necessidade da construção de uma mesquita, já há muitas na
cidade”, diz.
Na Rua da Palma há duas décadas, Florbela Vicente, 49 anos,
também está apreensiva. Enquanto acompanha um cliente pelos corredores da loja,
mostrando a variedade de artigos e utensílios para a casa, vai comentando os
planos da autarquia. “O fecho da garagem vai agravar um problema que já existe
nesta zona, a falta de estacionamento. Se a requalificação trouxesse melhorias
à rua, que está totalmente degrada, concordava, mas construir uma mesquita não
faz sentido. Nós também temos os dias contados”, antevê.
Na Rua da Palma, nos
últimos anos, já fecharam uma ourivesaria, um barbeiro, uma retrosaria, uma
sapataria, uma agência de viagens, uma cervejaria e lojas de móveis. Há muitos
edifícios vazios, aparentemente ainda sem destino, um cenário que não agrada a
nenhum dos vendedores. Madalena Ferreira, 60 anos, uma das primeiras lojistas a
instalar-se na Rua da Palma, diz que nunca viu o arruamento que liga a Avenida
Almirante Reis à Baixa “tão abandonado”. “Prometeram requalificar esta zona,
mas está cada vez mais suja e degradada. Sinto-me muito sozinha aqui. Quando
fechar, neste lado da rua, não sobra um único comerciante português”, diz a
vendedora de roupa e acessórios.
Luísa Mota, 44 anos,
não consegue esconder a revolta na voz. Comerciante na Rua da Palma há vinte
anos, já não acredita em melhorias. “Mais dois anos e fecha tudo, não temos
hipótese”, diz inconformada, enquanto empilha embalagens de pijamas e lençóis.
Atrás do balcão, mais tímida, está Ana Maria, com 18 anos dedicados à loja de
revenda. “O ano passado e este, 2018, foram os piores anos de sempre”, diz,
enquanto se ouve a voz de fundo da colega, que não pára de enumerar queixas. Na
mesma rua, Margarida Dias, 52 anos, critica os preços cobrados para o
estacionamento do Martim Moniz. “Os valores do parque de estacionamento
subterrâneo são muito elevados, o que também afasta clientes. Isto já só dá
para as despesas, está tão diferente”, lamenta.
Na Rua do Benformoso,
onde a mistura de nacionalidades se sente mais, até porque estamos na zona mais
cosmopolita de Lisboa, o barulho das obras denuncia mudanças bem mais
profundas. No interior do edifício do número 244, onde a colectividade Amigos
do Minho esteve sediada 67 anos, consegue-se ver paredes pintadas de novo e,
até onde a visão permite, materiais de construção espalhados. Ao longo da rua,
vêem-se alguns prédios à venda, um imóvel rodeado de andaimes e outros já
pintados de fresco, mas ainda não se sabe exactamente o que vai acontecer ali.
E há quem lance palpites. “Nesta rua, só vai haver hostels e hotéis, estão a
destruir a história de Lisboa”, critica António Barroso, que se auto-intitula
como “o lesado de Benformoso”.
O comerciante é proprietário de dois imóveis condenados à
demolição pela Câmara de Lisboa, dos quais a autarquia tomou posse
administrativa a 23 de Maio de 2016, para ali construir a nova mesquita da
comunidade bangladeshi. “Ando em guerra com a CML, porque expropriou os meus
prédios sem me dizer nada. Não conhecem a nossa realidade, nem o que foi esta
rua há trinta anos. Dizem que querem que o comércio do bairro viva dos
moradores, mas expulsaram-nos”, critica. António Barroso, a meio de um processo
judicial com a câmara, diz mesmo não acreditar que a futura Praça da Mouraria
venha a contemplar uma mesquita. “Venderam a loja dos correios, que fica mesmo
ao lado dos terrenos da garagem Navarro. Se realmente for tudo demolido, fica
ali um espaço enorme e muito valioso, dá para construir muitos hotéis”, avalia.
Enquanto António
Barroso ainda tem esperança de não abandonar os prédios onde estão instaladas
as duas lojas, João Fernandes Marinho, 74 anos, antecipa um quadro pior. “Esta
rua foi muito forte em termos de comércio. Há 25 anos, éramos praticamente
todos portugueses. Os grandes armazenistas desapareceram e estas lojas têm
tendência a acabar”, receia. Há meio século a vender brinquedos na Rua do
Benformoso, recorda com nostalgia os tempos áureos do comércio no bairro.
Agora, com perdas nas vendas na ordem dos 50%, já não tem esperança no futuro.
“Esta zona era habitacional e deixou de ser e os turistas têm menos poder de
compra. Há uma grande concorrência desleal, todos vendem a mesma coisa. É
impossível sobreviver”, diz, enquanto mostra o segundo andar da loja, repleto
de caixotes com brinquedos.
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