quinta-feira, 27 de setembro de 2018

“É violação, não é sedução.” Porto protesta contra sentença do tribunal / O problema sexual da Relação do Porto



“É violação, não é sedução.” Porto protesta contra sentença do tribunal

Manifestação convocada por grupos feministas concentra mais de 400 pessoas na Praça Amor de Perdição, no Porto, contra acórdão sobre caso de violação. A Colectiva, que organizou o protesto, desafia o Governo a lançar, “debate nacional sobre a forma como a justiça que se pratica nos tribunais portugueses quando são julgados crimes de violência de género”.

 Aline Flor
ALINE FLOR 26 de Setembro de 2018, 19:55

“É a segunda vez que o Porto é confrontado com esta situação”, lamenta Sónia Rocha, ao lado da estátua no Largo Amor de Perdição. Vem pela primeira vez a um protesto contra o machismo na justiça para se queixar de “um acórdão que efectivamente não condena quem tem que ser condenado, quem comete um crime”. Mãe de duas filhas, sente que “faz parte da sua missão estar aqui”. “Aquilo que acho que se transmite às gerações que estão a crescer é que afinal há algumas coisas que se podem fazer, quando não se podem.”

Cerca de 400 pessoas estão concentradas ao lado do Tribunal da Relação do Porto, num protesto convocado por grupos feministas. “Vivas. Livres. Unidas. Fim da justiça machista”, lê-se na faixa no centro do aglomerado. Na mira está a decisão do Tribunal da Relação do Porto que manteve a condenação a uma pena suspensa de dois homens acusados de violarem uma mulher. “A escolha do tribunal foi clara: entre uma vítima de violação e a desculpabilização dos violadores, o tribunal decidiu proteger os violadores e apoucar a vítima. Que sinal dá à sociedade um acórdão desta natureza?”, perguntam as activistas d’A Colectiva, movimento que convocou a manifestação, numa nota enviada ao PÚBLICO pouco antes da concentração.

No que as activistas referem como o acórdão da “sedução mútua”, os juízes argumentaram que “a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e um “ambiente de sedução mútua”. A ilicitude “não é elevada”, defendiam, alegando ainda a ausência de “danos físicos”.

O caso ocorreu em Novembro de 2016 numa discoteca de Vila Nova de Gaia, onde a mulher, de 26 anos, foi violada numa casa de banho enquanto estava muito embriagada. O Tribunal de Gaia tinha condenado os agressores, em Fevereiro deste ano, a pena de prisão de quatro anos e meio por crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. O Ministério Público recorreu, pedindo condenação a pena efectiva, mas os juízes do Tribunal da Relação do Porto Maria Dolores Silva Sousa e Manuel Soares - o actual presidente da Associação Sindical de Juízes - optaram por manter a condenação a pena suspensa.

Perdemos o medo e estamos na rua
“Juízes machistas, ide ver se chove. Não vamos voltar ao século XIX”, arrancaram ao megafone as palavras de indignação, cerca de meia hora depois da hora marcada no evento no Facebook.

Para Teresa, estudante de Belas Artes, esta também é a primeira vez numa manifestação feminista. “Isto é um assunto que nos toca a todas”. Reconhece a importância de vir para a rua partilhar a revolta. “Dá-me conforto, não nos sentirmos sozinhas neste tipo de luta. Acho que a união é importante.”

“Todas essas pessoas estavam incomodadas e zangadas isoladamente, e hoje vão-se juntar e fazer de uma manifestação colectiva de desagrado com a justiça que é praticada nos tribunais”, refere Andrea Peniche, do movimento A Colectiva, que convocou a manifestação no Porto. “Uma tomada de posição colectiva. Perdemos o medo e estamos na rua porque percebemos que é a força da cidadania que pode fazer mudar as coisas e que faz com que a nossa voz não seja uma voz isolada”, diz antes da concentração.

Na nota enviada ao PÚBLICO pouco antes do protesto, A Colectiva desafia o Governo a lançar, “com urgência, um debate nacional sobre a forma como a justiça que se pratica nos tribunais portugueses quando são julgados crimes de violência de género”. “Porque a ministra, na altura do Neto de Moura, tinha dito que um caso não punha em causa o sistema. Mas agora são muitos casos. Portanto, o problema é sistémico e é preciso olhar para ele”, diz Andrea Peniche. O manifesto com o desafio foi lido e votado simbolicamente durante a manifestação. Aprovado.

Para Andrea Peniche, que também esteve na organização das manifestações de Outubro de 2017 no Porto, “a situação não é a mesma do ano passado porque há uma confirmação de que, de facto, há preconceito nos tribunais”. Além do acórdão assinado pelo juiz Neto de Moura, que motivou protestos no Porto e em Lisboa, a editora refere também o acórdão do Tribunal de Guimarães, conhecido em Abril, ao mencionar decisões que têm gerado indignação. “E se a gente se dedicasse a ler acórdãos, íamos descobrir imensas, tenho a certeza.”

“Manada à portuguesa, não de certeza!”, “não me vou culpar e não marcho só”, “justiça para as mulheres”, lê-se nas mãos impressas em papel vermelho, distribuídas pelas pessoas presentes, na mesma cor que pintava as mãos das manifestantes que em Junho de 2016, também no Porto, mostravam solidariedade com outra vítima de violência sexual - a jovem brasileira vítima de uma violação colectiva no Rio de Janeiro. Como então, também agora se grita “mexeu com uma, mexeu com todas”.

"O machismo não é uma coisa que acontece de vez em quando"
A artista plástica Mariana Delgado, de 27 anos, esteve na manifestação do ano passado apenas para protestar. Onze meses depois, fez questão de se envolver na organização. “Apesar de serem casos distintos, encontramos pontos em comum, nomeadamente a violência sistémica, machista. Não são casos isolados”, conclui a estudante de doutoramento.

“É violação, não é sedução”. “Sou feminista e a justiça eu vou mudar”, garantem em uníssono. Há também quem peça o microfone para pedir: “Para cada violação, uma cela na prisão”.

“Quando é uma violência de cariz sexual, é ainda mais grave porque traz consequências para toda a vida”, dizia Sónia Rocha, ainda antes da praça se encher de palavras de ordem. E as histórias repetem-se nas mensagens ditas no centro do protesto. “Sentimos muita dor e muita revolta quando vemos notícias como esta”, lamentam as representantes da Slutwalk Porto, um dos grupos que convocaram o protesto. “As coisas não estão a mudar tão rápido como gostaríamos”, lamentam. “Mas sentimos muita esperança em ver tantas pessoas unidas. Sempre que acontecer temos que sair à rua."

A luta feminista tem-se tornado mais visível, talvez por influência internacional - a primeira acção organizada pel'A Colectiva foi em Janeiro de 2016, antes da tomada de posse de Donald Trump -, mas também tem levado mais pessoas às ruas em Portugal, nota Andrea Peniche. “Isso no meu entender significa uma viragem fundamental, significa a compreensão de que o machismo não é uma coisa que acontece de vez em quando, mas que, antes pelo contrário, é uma coisa estrutural na forma como as nossas sociedades estão organizadas”.

Os protestos continuam até ao final da semana: em Coimbra, na quinta-feira, e em Lisboa, na sexta-feira. Para Patrícia Vassallo e Silva, do movimento Por Todas Nós, que marcou a manifestação em Lisboa, “é muito importante a Justiça deste país saber que nós, cidadãs, estamos atentas a situações destas e não queremos deixar passar.” A activista, que também esteve na organização da manifestação em Lisboa, no ano passado, contra outro acórdão polémico da Relação do Porto, lamenta que este tipo de acórdãos seja um reflexo do “país machista e conservador em que vivemos”. “Há um grande trabalho [a fazer], ainda por cima se estes homens sabem que podem cometer estes crimes e não são penalizados... É horrível dizer isto, mas é verdade.”




O problema sexual da Relação do Porto

A Relação do Porto não se dá bem com o sexo, e seria útil que uma daquelas associações que andam pelo país a pregar os direitos das mulheres fizesse uma visitinha à Rua Campo dos Mártires da Pátria.

João Miguel Tavares
27 de Setembro de 2018, 6:52

Ontem o juiz Manuel Soares escreveu neste jornal um texto intitulado “Alguém que explique isto, por favor”, e eu pensei: “Excelente, vai justificar o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que subscreveu em Junho, no qual dois homens que abusaram sexualmente de uma mulher semi-inconsciente se safaram com pena suspensa.” Mas não. Afinal era só um texto a queixar-se dos juízes de carreira terem perdido o monopólio das decisões em matérias de litígio fiscal (pelos vistos, alguns juízes queixam-se do excesso de trabalho, mas também se queixam da sua diminuição). O acórdão, esse, ficou por explicar. Mas vale a pena reflectir sobre ele, porque há três problemas distintos que devem ser sublinhados.

O primeiro problema tem a ver com o facto de o acórdão ser assinado pelo Tribunal da Relação do Porto. A Relação do Porto não se dá bem com o sexo, e seria útil que uma daquelas associações que andam pelo país a pregar os direitos das mulheres fizesse uma visitinha à Rua do Campo dos Mártires da Pátria. Desde o acórdão que absolveu o psiquiatra de abusar de uma paciente grávida no seu consultório, com o argumento de que para ser violação tinha de ter sido com mais força (acórdão de 13 de Abril de 2011); ao acórdão do juiz Neto de Moura que manteve a pena suspensa a um homem que agrediu violentamente a mulher com uma moca de pregos, usando como um dos argumentos que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou, e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído” (acórdão de 11 de Outubro de 2017); receio bem que a Relação do Porto comece a ter um histórico sinistro em matérias de sexo e costumes.

O segundo problema tem a ver com a própria lei. Ainda este ano a Amnistia Internacional acusou Portugal de não definir a violação como sexo sem consentimento, e alguns juristas contestaram essa interpretação. Mas este caso é um bom exemplo para ver quem tem razão. O artigo do Código Penal que define a violação (164.º) exige a prática de “violência”, “ameaça grave” ou “ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir” a vítima. Mas logo a seguir, o artigo 165.º define o “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência” como a prática de um acto sexual com “pessoa inconsciente”. Ou seja, pôr uma pessoa a dormir e ter sexo com ela é violação. Se já estiver adormecida é abuso sexual. Esta distinção é chocante, e não espanta que a maior parte das pessoas, quando confrontadas com o caso de dois funcionários de uma discoteca que copularam à vez com uma mulher incapaz de reagir, o considerassem uma violação. Era exactamente isso que deveria ser.

O terceiro problema tem a ver com a interpretação da lei. É verdade que não são os juízes que fazem as leis, mas são eles que as interpretam, e a complacência demonstrada pelos juízes desembargadores em relação aos dois abusadores é difícil de compreender. Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares consideraram que eles têm “escassíssimo pendor para a reincidência”, que a sua culpa se situa “na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e “ambiente de sedução mútua” e que “a ilicitude não é elevada”, já que não houve “danos físicos nem violência”. Imaginem a mulher abusada, que nem sequer pediu uma indemnização mas apenas a condenação dos dois homens, a ler uma passagem deste calibre. Este é o tipo de crimes cuja desvalorização é absolutamente inaceitável nos tempos que correm. E ainda bem.

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