OVOODOCORVO volta hoje, 2 de Setetembro.
Ele revisita alguns e importantes assuntos que dominaram a actualidade.
Daí, o revisitar dos importantes e mais de que urgentes temas tratados na entrevista
com Carlos Pimenta.
OVOODOCORVO
“As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias
de festa. O planeta não aguenta”
Obrigou a demolir mais de duas mil casas clandestinas, foi
decisivo para o chumbo duplo do projecto nuclear em Portugal e durante anos foi
o relator do clima do Parlamento Europeu, tudo isto nos anos de 1980 e 90. “A
luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania”, diz o
antigo secretário de Estado do Ambiente.
LURDES FERREIRA e ANA FERNANDES 22 de Agosto de 2018, 7:34
As reportagens e imagens de bulldozers a demolirem casas
clandestinas no Portinho da Arrábida, na ria Formosa, na lagoa de Albufeira e
na Fonte da Telha, entre Outubro de 1986 e a Páscoa de 1987, anunciaram o fim
da apatia do Estado sobre o domínio público marítimo e as áreas protegidas. O
rosto de uma nova “ideia de natureza e de património paisagístico” até então
estranha a um país “onde faltavam esgotos, lixeiras de tratamento de resíduos e
saneamento básico, casas também”, é Carlos Pimenta, o secretário de Estado do
Ambiente que ocupava a pasta pela segunda vez.
Tinha montada a operação de “limpeza”, como lhe chamou, para
erradicar das zonas ambientalmente sensíveis e do domínio público mais de duas
mil casas ilegais, quase todas de segunda habitação. Eram de autarcas,
embaixadores, altas patentes militares, empresários, mas também de classes
baixas. “Havia de tudo”.
Mandara fazer levantamentos da situação do domínio público
marítimo e das áreas protegidas na sua primeira passagem pelo Governo, ao qual
chegou com apenas 28 anos. Como o tempo de instabilidade política ditava
executivos de curta duração — esteve na pasta entre Junho de 83 e Junho de 84 —
não chegou a concluir toda a identificação. As demolições tiveram de esperar
até Outubro de 1986. As medidas exemplares visavam sobretudo quem tinha
responsabilidades políticas: na ria Formosa as primeiras casas a irem abaixo
foram de autarcas.
“Foram ao meu gabinete enquanto comissão de moradores, um
era presidente da Câmara de Tavira, os outros eram presidentes de junta de
freguesia e de uma assembleia municipal”, conta Carlos Pimenta. A primeira a
ser mesmo demolida foi a do autarca de Tavira, a quem acusou de “roubo”, porque
“os terrenos pertenciam a 10 milhões de pessoas e aos seus sucessores”.
“O ambiente urbano é
o que dá mais trabalho, mais guerras, porque é a matriz da vida e é
insustentável na forma como está organizado”
Carlos Pimenta
Nesses anos 80, o poder do Estado era desafiado às claras.
Para controlar o processo das demolições, recorria a levantamentos
fotográficos. “No ano de 1986, entre Maio e Setembro, foram construídas 300
casas novas e isto já com todos os media a dizer que as casas iam abaixo. As
pessoas não acreditavam.” Lembra-se especialmente de ver “um engarrafamento de
carrinhas de caixa aberta cheias de tijolos e andaimes”, à saída de uma reunião
de trabalho com responsáveis da Marinha no Forte de Santa Maria da Arrábida. “O
pessoal ia continuar a construir, apesar de estarem lá as autoridades.”
Contra o que seria expectável, os responsáveis das câmaras
abrangidas pela limpeza apoiaram a operação, à excepção do Algarve, de onde diz
que vieram as únicas pressões. “Havia muita gente local. Como eram habitantes
locais, achavam que tinham o direito a ter uma casa de férias nas
ilhas-barreira da ria Formosa”.
Uma situação muito má
Gonçalo Ribeiro Telles tinha sido o inspirador, no início
dessa década, da criação do Ministério da Qualidade de Vida (embora não fosse o
seu primeiro ocupante) e da Secretaria de Estado do Ambiente. Foi assim que a
porta da política teve de se abrir ao ambiente. Carlos Pimenta não chegou a
cruzar-se no Governo com Ribeiro Telles, mas diz ter “um grande respeito” pelo
trabalho deste arquitecto paisagista pioneiro desde as cheias de 67. Levava a
sua tese à prática. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta
pela cidadania. Não concebo o ser humano desligado do equilíbrio e harmonia com
a natureza e o planeta em que vive”, declara, com a certeza de que “o ambiente
urbano é o que dá mais trabalho, mais guerras, porque é a matriz da vida e é
insustentável na forma como está organizado”.
Em miúdo, Carlos Pimenta sorvera os filmes de La Fuente e os
episódios de Há Só Uma Terra de Correia da Cunha; o estudante de liceu fora
diariamente do Barreiro para Setúbal de lenço no nariz porque ou o nevoeiro
trazia os gases do ácido sulfúrico dos adubos da Quimigal ou o vento, se
soprasse de leste, trazia o que a siderurgia no Seixal largava; o mesmo
estudante descobrira com as cheias de 67 o outro país que o Estado Novo
escondia e a força da denúncia de Ribeiro Telles de um desastre anunciado —
“foi um herói para mim e continua a ser hoje, pôs o dedo na ferida”; o
universitário que, entretanto, ganhou a direcção da Associação de Estudantes do
Técnico criara com João Caninas a primeira secção Património e Ambiente de uma
associação académica de uma escola de engenheiros ligados ao betão e à obra
pública.
O primeiro lugar político e público para o qual foi eleito
representou a passagem do ambiente de luta política do final dos anos 60 e do
25 de Abril que o levara a filiar-se no PSD de Sá Carneiro em Junho de 1974,
com 19 anos, para a luta política pelo ambiente. Os tempos estavam-lhe também
de feição: a adesão à Comunidade Económica Europeia obrigava a uma revolução
nas leis do ambiente e a austeridade do segundo resgate do FMI, estava Mário
Soares à frente do Governo, induzia um clima de rigor.
Já jovem licenciado e sindicalista, ajudava a organizar
sessões de educação ambiental destinadas às populações, país fora, com o apoio
de um projector instalado na parte traseira de um carro e bobinas de filmes da
Comissão Nacional do Ambiente. “Explicavam-se coisas básicas” num tempo em que
“as pessoas atiravam uma garrafa fora, fosse de plástico ou vidro, não tinham
saneamento básico em casa ou tinham, mas o esgoto ia direito para a ribeira, as
fábricas e fabriquetas atiravam tudo para os rios, fossem metais pesados como o
crómio, nos sapatos e no couro, fossem as tinturarias no rio Ave, no Cávado,
que tingiam de azul, a água saía a ferver, em circuito aberto... A situação era
mesmo muito má nas zonas industriais têxteis e do agro-industrial”. Entretanto,
criou o GEOTA (Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e Ambiente) e “era
sócio do que havia para ser sócio” na defesa do ambiente.
A guerra maior
Com duas passagens pela Secretaria de Estado do Ambiente
(83/84 e 85/87) e uma mais fugaz pela das Pescas (Fevereiro a Novembro de 85),
Carlos Pimenta tornou-se também um dos principais rostos da derrota do nuclear
em Portugal.
"Não concebo o ser humano desligado do equilíbrio e
harmonia com a natureza e o planeta"
Carlos Pimenta
“A guerra maior foi em 83/84 com o nuclear, foi a que deu
mais impacto público, mais nervos, mais problemas, foi preciso geri-la com
muito cuidado.” É uma indústria que, para Pimenta, “de certa forma, simboliza o
mal levado ao extremo da sociedade industrial”, vive “sob o segredo e a
mentira” e usa “muitas vezes o nuclear civil como capa do nuclear militar”.
Em 1983, quando chegou à Rua do Século, em Lisboa, a
comissão técnica do Plano Energético Nacional (PEN) propunha a construção de
três centrais nucleares, eventualmente uma quarta, capazes de alimentar um
determinado crescimento da procura de electricidade das décadas seguintes,
calculado com base em modelos matemáticos. Foi dos primeiros despachos que teve
para assinar e para o qual foi aconselhado a não criar obstáculos.
Antes da discussão do assunto em Conselho de Ministros, o
pequeno grupo de pessoas de que se rodeou e o conselho do ex-secretário-geral
da agência francesa de energia ajudaram a identificar os principais erros da
proposta: a assunção de que a procura de electricidade ia crescer sempre mais
do que a economia e que as alternativas ao nuclear não existiriam ou seriam
caras. Segundo as previsões dos “nuclearistas”, estaríamos hoje a consumir mais
50% de electricidade, o carvão estaria significativamente mais caro, não
teríamos gás natural e as renováveis teriam um peso residual.
Para um documento de mil páginas, Carlos Pimenta preparou
cinco notas de uma página para o seu ministro, António Capucho, que acompanhara
a “descodificação” dos cálculos. A “intuição política” do então
primeiro-ministro Mário Soares e a “sensibilidade ao risco financeiro” do
ministro das Finanças Ernâni Lopes reagiram à argumentação de Capucho e o
nuclear caiu.
Cerca de um ano depois, com Francisco Sousa Tavares já como
ministro do Ambiente e com Pimenta fora do elenco, o dossier voltou de surpresa
a Conselho de Ministros. “Era o mesmo projecto. Estavam convencidos que
passava”. Uma das pessoas a quem Sousa Tavares telefonou a pedir conselho foi
Pimenta. Havia muito menos tempo desta vez, “foram três horas” em que um falava
e o outro tomava nota — “escrevia páginas”. Soube do resultado do Conselho de
Ministros por um ministro que lhe disse que “o ‘Tareco’ [como era conhecido
Sousa Tavares nos meios próximos] falou hora e meia e destruiu aquilo”. “Foi
assim que escapámos, por duas vezes”, sublinha.
Carlos Pimenta orgulha-se da dupla vitória contra o nuclear
como também dos anos seguintes como eurodeputado, em que deu a cara por várias
lutas ambientais, mas especialmente pela do clima, como relator do Parlamento
Europeu à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC) e para
o Protocolo de Quioto, assinado em 1997. Antes disso, cruzou-se com os dossiers
de saúde humana, no caso da qualidade da carne.
A investigação a muitos matadouros e quintas, e da qual foi
relator por influência de Simone Weil, tornou-o quase vegetariano até hoje. “As
pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa, até porque se
pode viver muito bem sem ela. O planeta não aguenta... não há recursos, não há
água, não há capacidade de gerir tanto desperdício. Para fazer um quilo de bife
o que se deita fora de água, nutrientes, de bife estragado ao longo da cadeia
para depois ter um bife no prato, não dá. E o que vi assusta: hormonas,
cortisonas, antibióticos, outros tipos de drogas...”
O relatório aprovado no PE quase por unanimidade, em 1988,
proibia a utilização de antibióticos sem atestado médico. “Se se tivesse
cumprido, não teria havido a crise das vacas loucas”, anos mais tarde. Guardou
como memória desse tempo o quarto de milhão de animais que tiveram de ser abatidos
no Reino Unido quando “não houve uma única vaca de agricultura biológica ou de
raças autóctones criadas em liberdade que tivesse tido a BSE [vulgarmente
conhecida como doença das vacas loucas]”.
Esteve, entretanto, ligado à preparação da conferência do
Rio-92 e logo após é nomeado relator do PE para o clima, “por muitos anos”, e
que o leva a “dar a volta ao mundo muitas vezes”. Considera que a luta do clima
é “a grande luta e a mais complicada”.
“Quioto (em 1997) é uma vitória, um marco muito importante,
não salva o planeta mas era o acordo possível para trazer para a mesa da
negociação países como a China, Índia, Brasil, onde reside o maior número de
habitantes do mundo e que estavam fora disto. Nunca teria havido a cimeira de
Paris e o acordo de Paris em 2015 se não tivesse havido Quioto quase 20 anos
antes.”
Uma ponte errada num sítio errado
Na contracorrente dos nacionalismos de hoje, o então senador
dos EUA Al Gore cria a Globe, uma organização internacional com membros de
vários parlamentos (as duas câmaras dos EUA, o europeu, o russo, entre outros).
Carlos Pimenta foi “vice” da organização, mais tarde presidente. “Foi muito
importante para haver Quioto, era uma rede de cumplicidade que organizava
seminários, colóquios concretos sobre o que estava em cima da mesa que os
legisladores podiam ajudar a fazer passar”, sem divisões entre direita e
esquerda. “Havia gente pró-ambiente em todos os grupos parlamentares”.
Na causa pelo ambiente, olha para a construção da Ponte
Vasco da Gama como a sua maior derrota. “É a ponte errada no sítio errado
porque ela foi fazer mais um subúrbio em cima de terreno agrícola bom, que
temos muito pouco, criou uma nova oferta de habitação e de pessoas a fazerem
movimento pendular e, além disso, não resolveu o problema que vem desde Fontes
Pereira de Melo que é a falta de uma ligação ferroviária entre o Sul e o Norte
do país. Faltava uma ponte ferroviária, vá lá rodoferroviária, e ainda continua
a faltar, não se resolveu o transporte de mercadorias pesado e a ligação dos portos
do Sul do país com a zona industrial do país. São tiros no pé da
competitividade.”
"[A luta do clima é] a grande luta e a mais complicada”
Carlos Pimenta
Marcelista convicto, de quem foi seu “vice” no PSD — foram
também contemporâneos a chamar a atenção para os problemas do Tejo, um dando
mergulhos famosos, o outro subindo e descendo o rio a defender a urgência de um
sistema nacional de tratamento de resíduos perigosos —, foi Durão Barroso quem
lhe cortou a continuidade como eurodeputado. E ao contrário do que previra,
também não regressou ao Estado.
“Intervencionista” para a ala liberal do PSD, incómodo para
outros, outsider na política, insider no ambiente, mudou-se para o sector
privado, no início dos anos 2000, especificamente para as energias renováveis,
com a Generg e a criação do fundo Novenergia, que haveriam de contribuir para o
crescimento da energia eólica em Portugal.
“Tirando a grande hídrica, não havia praticamente nada.
Antes de entrar na política em 1983, fui um jovem engenheiro à frente de uma
pequena reparação naval, na altura pública, e uma das primeiras coisas que fiz
foi montar painéis solares de água quente para os duches no estaleiro. Isto em
79/81. Já tinha essa ‘pancada’”.
A sexta extinção
No início deste Agosto, viu no site da NASA que a
concentração de CO2 na atmosfera atingiu o recorde do último milhão de anos de
403ppm em volume e Quioto já foi há mais de duas décadas. Confessa-se mais
angustiado hoje do que antes.
“Já não são os problemas do ambiente de proximidade — que se
resolvem com estações de tratamento, com filtros, e outros. O problema do clima
é o problema da maneira como vivemos. Deriva da forma como usamos a energia e
também como usamos a terra e produzimos alimentos, e que são as principais
fontes de emissão de GEE. O clima é estrutural, não pego no clima sem mexer nas
cidades, na maneira como as pessoas vivem, comem, se vestem, habitam.”
Preocupa-o que se esqueça a mudança climática assim que a
temperatura desce; que na última década o Alentejo tenha perdido um terço da
água da chuva, mas esteja a ser povoado com culturas superintensivas; que a
água do mar tenha subido sete centímetros nos últimos 25 anos; que metade da
humanidade viva à beira-mar, que as infra-estruturas estejam impreparadas para
resistir a fenómenos meteorológicos extremos.
“Estamos a viver a sexta extinção planetária desde que a
Terra é Terra, em mais de quatro mil milhões de anos esta é a sexta grande
extinção, com a diferença de que as outras foram causadas por fenómenos
naturais e esta é causada pelo Homem. O clima tem efeitos de grande sofrimento
humano, está a provocar refugiados aos milhões, vai provocar a
não-habitabilidade de zonas que hoje são grandes cidades, à beira de água, Nova
Iorque, Xangai, Hong Kong, Miami e também Lisboa, Aveiro, Faro, Viana do
Castelo, todo o litoral.”
Continua a ver “uma enorme resistência à penetração das
renováveis”, quando se projecta que, dentro de 20 anos, um quarto da
electricidade possa ser produzida na casa das pessoas e transaccionada entre
vizinhos ou entre comunidades de energia sem passar pelos sistemas centrais.
“Será uma grande mudança do sistema económico, quando uma parte da mobilidade
deixará de andar a petróleo e passará para a electricidade, parte desta feita
em casa das pessoas e outra centralizada de fontes renováveis.”
Carlos Pimenta está certo de que o que vem aí “é outro
mundo, outra economia”. E para o país, “essa economia interessa”. “Porque nós
fazemos os equipamentos em Portugal e o petróleo e o carvão e o gás
importamo-los para queimar com muita ineficiência”, explica. O que determina
essa mudança é que não muda: “Tudo volta à questão de cidadania. As pessoas,
nas suas múltiplas vertentes, têm de ser confrontadas com a sua
responsabilidade, com o seu padrão de consumo, sejam consumidores, patrões de
uma indústria ou autarcas”.
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