O estado de sítio na habitação
Quando um apartamento em Lisboa é tão caro ou mais que em
Londres chegámos ao momento de fazer com a habitação o que se fez com o pão:
tabelar, contra a especulação.
Fernanda Câncio
02 Setembro 2018
Um apartamento na área 2 de Londres (não exatamente no
centro, nas central), num edifício com piscina, por 1600 euros. Uma casa
espaçosa na mesma zona por 1500 euros. São as rendas de apartamentos onde, até
2018 e 2017, viviam emigrantes portugueses entrevistados para a edição de hoje
do DN.
São preços altos, sem dúvida. Mas, incrivelmente, iguais ou
inferiores aos de Lisboa. Basta dar uma volta pelos sites imobiliários para o
constatar. Ou falar com quem ande à procura de casa. Uma amiga entregue a esse
martírio contou-me que tem visto tugúrios por 1800 euros (para além de ter
tropeçado num anúncio em que "só aceitavam famílias tradicionais",
história contada pelo DN esta semana); outra, dona de um apartamento médio no
Bairro Alto, alugou-o por uns incríveis 2200 euros por mês.
Não é preciso ser um cientista nuclear para perceber que
estamos ante um drama (nem me incomodarei a explicá-lo a quem acha que isto é
"a lei do mercado e não tem problema nenhum"). E que há pelo menos
dois anos, quando começou a ser óbvio que os preços estavam a subir de forma
imparável, se deveria ter começado a contrariar a tendência.
Sucede que, num país que vinha de uma recessão, quer o
governo quer a autarquia receberam com alegria a injeção de
"investimento" estrangeiro no imobiliário. E deixaram andar - ou
melhor, incentivaram, vendendo vistos de residência a quem compre imóveis de
mais de meio milhão e oferecendo descontos nos impostos a residentes
estrangeiros (e continuam a fazê-lo, quando noutros países já se proíbe a venda
a estrangeiros não residentes). É só quando estamos para lá do ponto de rutura
que surgem as primeiras medidas com o alegado objetivo de enfrentar o problema:
a lei que cria instrumentos para a restrição do alojamento local, já aprovada
mas ainda não em vigor; os anúncios por parte da Câmara de reabilitação de
imóveis para o mercado de renda controlada; o "pacote para a
habitação" que deverá ser discutido e votado no regresso do parlamento.
Fernando Medina, em entrevista ontem ao Expresso (na qual
anuncia uma ótima proposta para os transportes coletivos da capital), anunciou
mais uma medida: a CML alugará apartamentos a privados para os subalugar,
funcionando como garantia/seguro ante os privados. A não ser que se ache que os
proprietários vão pedir um valor muito inferior ao de mercado por terem a
segurança de um intermediário institucional, isso resolve o quê? Como as
contidas no dito "pacote legislativo", é mais uma ideia solta que não
ataca a raiz do problema.
Na Alemanha, essa Venezuela da Europa, há uma lei que
criminaliza as rendas consideradas especulativas e um teto percentual (20%)
para o aumento das rendas quer na renovação quer nos novos contratos.
Porque o problema é o preço. E não se resolve com propostas
do dito "pacote" como a que prevê que quando o inquilino tenha 65 ou
mais anos e grau de deficiência superior a 60% o contrato passe a vitalício (o
que, além de torção inaceitável no princípio constitucional da segurança
jurídica -- que direito tem o Estado de intervir assim em contratos livremente
celebrados? -, vai penalizar apenas proprietários que se mantiveram no mercado
de arrendamento de longa duração e, claro, deixa sem resposta a esmagadora
maioria das pessoas). Ou com o regresso do prazo mínimo de cinco anos para
arrendamentos habitacionais: de que serve um contrato mais longo se o preço for
impraticável?
Se o problema é o preço, tem de se intervir aí. E não se
venha com a conversa do "comunismo": na Alemanha, essa Venezuela da
Europa, há uma lei que criminaliza as rendas consideradas especulativas e um
teto percentual (20%) para o aumento das rendas quer na renovação quer nos
novos contratos; na Holanda há preços tabelados numa parte do parque
habitacional.
Aliás, o Estado português já intervém, e duramente, nos
preços quando mantém rendas congeladas para contratos de arrendamento
anteriores a 1990 e quando procura atrair estrangeiros para o mercado
imobiliário - ou seja, de forma parcelar, ineficaz e contraditória. Na situação
a que chegámos, após décadas de ausência do Estado na oferta de habitação e
quando a construção/reabilitação pública levará anos, tabelar preços, quer no
arrendamento quer na venda (porque intervir só no primeiro desviará os imóveis
para a segunda), é a única solução. Tal como em tempos se tabelou o preço do
pão por ser considerado alimento essencial (e hoje se "tabela" a
percentagem de sal no mesmo), tal como se regula o preço da eletricidade e da
água, assumamos de uma vez o direito constitucional à habitação e o papel do
Estado na regulação - mas eficaz e não abstrusa -- desse mercado. Chega desta
loucura.
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