Cidadãos manifestam-se em Lisboa contra “brutal especulação”
imobiliária e onda de despejos
Samuel Alemão
Texto
21 Setembro, 2018
“Uma manifestação que já tardava”. É assim que a descreve
Rita Silva, presidente da Associação Habita, referindo-se ao grande protesto
pelo direito à habitação e contra a proliferação de despejos que se realiza na
tarde (15h) deste sábado (22 de Setembro), nas ruas da Baixa de Lisboa, com
início no Largo do Intendente e ponto de chegada junto à Ribeira das Naus.
“Sentimos que este é um momento decisivo, porque, se não nos mexermos agora, as
coisas vão continuar a piorar. Era importante fazer um protesto massivo,
perante a onda de despejos que está a afectar tanta gente e a especulação
imobiliária brutal que paira sobre as nossas cidades”, afirma a dirigente
associativa, envolvida na organização de uma acção reivindicativa que pretende
ainda denunciar a “crescente privatização do espaço público e o fecho das
colectividades”.
O protesto, que terá um percurso que incluirá Praça da
Figueira, Rossio, Praça do Município e Cais do Sodré, resulta da junção de
esforços de 49 associações e colectivos, garante Rita Silva, salientando a
abrangência e representatividade dos mesmos. “Estamos a falar de entidades de
diferentes quadrantes políticos, algumas das quais nunca fizeram nada em
conjunto. Esta é uma aliança inédita, julgo que nunca tivemos uma manifestação
tão ampla para reivindicar o direito à habitação. Talvez o maior protesto que
tenha ocorrido neste campo remonte a 2007”, afirma, dando conta da inédita
junção de forças para esta manifestação – que se realizará em simultâneo com
outra no Porto. Ainda assim, e observando o elenco de grupos envolvidos, é
notória uma polarização à esquerda e junto de campos mais próximos de ideais
libertários.
Na lista de entidades participantes encontram-se, entre
outras e para além da Habita, a Associação dos Inquilinos Lisbonenses, a SOS
Racismo, a Associação do Património e População de Alfama, Associação de
Moradores e Moradoras do Centro Histórico do Porto, Fruta Feia, Gaia, Moradores
do Bairro 6 de Maio, Disgraça, Zona Franca, Stop Despejos, Morar em Lisboa ou o
Panteras Rosa. A estes juntar-se-á ainda um grupo de estudantes da Universidade
de Coimbra ameaçados de despejo. “Temos ideia de que o Largo do Intendente
poderá revelar-se demasiado pequeno para o número de pessoas que se deverão
juntar ao protesto”, avalia Rita Silva.
A confiança
demonstrada pela activista e responsável pela organização da manifestação
alicerça-se na abrangência programática da mesma. São quatro os objectivos
principais do protesto marcado para a tarde deste sábado: “Antes de mais, queremos
combater a especulação imobiliária brutal que paira sobre as nossas cidades, a
qual se tornou por demais evidente. Além disso, pretendemos também denunciar a
onda de despejos que se tem vindo sentir. Todos passámos a ter medo de receber
uma carta do senhorio, a dizer que pretende cessar o contrato de arrendamento
ou aumentar a renda para um valor incomportável”, afirma a dirigente
associativa.
Intimamente ligados a estes dois, os outros dois objectivos
da mobilização passam pela “luta pelo direito à habitação condigna por parte de
todas as pessoas, como defende a Constituição da República Portuguesa” e ainda
pela “denúncia da crescente segregação social, também consequência da onda de
despejos e da saída para fora da cidade dos mais frágeis economicamente”. Uma
realidade que, diz, se reflecte ainda na “privatização de espaço público, como
se tem vindo a assistir, por exemplo, com o encerramento do Miradouro de Santa
Catarina, através da colocação de uma vedação” e no fecho de diversas
colectividades um pouco por toda a cidade de Lisboa. Um conjunto de razões que
estão longe de ser atenuadas pelas muitas alterações legislativas actualmente
em preparação para a área da habitação, considera a dirigente associativa.
Há, neste momento, 24 propostas de diplomas legais sobre a
matéria em apreciação na Assembleia da República, se se somarem as iniciativas
governamentais com as propostas de alteração a essas medidas por parte dos
partidos políticos. No pacote legislativo avançado pelo Governo, encontram-se
mexidas no Código Civil, no Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), no
regime de obras em prédios arrendados, no crédito à habitação ou ainda a
criação do Programa de Arrendamento Acessível, através de mexidas no regime
fiscal que estimulem a oferta, no âmbito do Orçamento de Estado para 2019. Um
conjunto vasto de medidas, que tem vindo a ser trabalhado por um grupo de
deputados liderado por Helena Roseta, deputada independente eleita pelo PS e
também presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML).
Os movimentos associativos olham com cepticismo para
reformas em preparação para o sector da habitação
Rita Silva mostra-se, contudo, descrente nos pretensos
efeitos positivos de tamanha mudança legislativa – que alguns chamam de
“revolução” -, a que acrescem as alterações recentemente aprovadas ao regime de
exploração do Alojamento Local (AL) e, ainda, o Programa 1º Direito,
apresentado este ano, pelo executivo liderado por António Costa, como a solução
para as comprovadas carências habitacionais graves de 26 mil agregados
familiares a nível nacional. O referido programa tem 2024 como meta e resulta
de um levantamento efectuado pela Secretaria de Estado da Habitação. O
cepticismo da dirigente da Associação Habita em relação à abrangência do mesmo,
contudo, é muito grande. “Ninguém acredita naqueles valores. Sabemos que há
muito mais gente em situações dramáticas”, diz.
A dirigente
associativa critica o que considera ser “a falta de vontade política do Governo
para encarar o problema da habitação e encontrar soluções”. “Não têm vontade
nenhuma de mexer nas coisas a sério. Fala-se de uns incentivos fiscais. Mas, no
fundo, do que se trata é de mudar um bocadinho para ficar tudo na mesma”,
critica a activista, lembrando o que diz ser o compromisso assumido pelo
primeiro-ministro de “não mexer no mercado”. Atitude que, sustenta, se alarga à
política adoptada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) para a área da
habitação. “Há anos que andam anunciar o programa das rendas acessíveis e vão
fazê-lo privilegiando as parcerias público-privado”.
Também Leonor Duarte, membro do movimento Morar em Lisboa,
outra das entidades organizadoras do protesto deste sábado, se mostra descrente
nas motivações de quem tutela a administração pública. “Não existe vontade
política”, repete, lançando igualmente um olhar decepcionado face às propaladas
alterações legislativas para o sector da habitação. “O que está previsto muito
dificilmente terá efeitos. Temos vindo a assistir a uma especulação galopante,
com a criação de uma bolha imobiliária, com impactos terríveis na vida das
pessoas. Estamos a viver uma situação de emergência social grave, com imensos
despejos e muitas pessoas a procurarem casa, mas a não a encontrarem ao alcance
dos seus rendimentos”, afirma.
Razões mais que
suficientes para justificarem a manifestação, entende. “Há, neste momento,
entre os responsáveis políticos nacionais, uma falta de consciência
relativamente à realidade. Era bom que a habitação fosse efectivamente uma
prioridade, não apenas nas palavras, mas sobretudo na prática”, preconiza
Leonor Duarte. Para o conseguir, o movimento que representa tem, aliás, um
conjunto de reivindicações bem preciso: “Queremos que se parem os despejos; que
se elabore uma nova Lei das Rendas e não a que existe com remendos; o fim dos
Vistos Gold; a revisão do regime dos residentes não permanentes; e que os
investidores, que são bem-vindos, ofereçam contrapartidas à população”. Um bom
exemplo, aponta, seria a adopção de um modelo similar ao de Barcelona, em que
30% da construção residencial é “reservada para a população”.
Leonor Duarte entende, todavia, que, em vez de ajudarem a
resolver o actual estado de emergência social causado pela subida galopantes
dos preços da habitação, “o Estado e a Câmara de Lisboa têm contribuído para a
especulação imobiliária, pois o mercado resulta também da legislação, das medidas
e das políticas por eles adoptados”. E salienta o facto de um número crescente
de pessoas ganhar o salário mínimo ou próximo disso ou até de “muita gente não
ter um rendimento fixo”. Para complementar o que entende ser um quadro de
permanente insegurança dos cidadãos em relação ao local onde habitam, a
activista dá ainda como exemplo a notícia avançada nesta quarta-feira (19 de
Setembro) de que o PS iria propor que os novos contratos de arrendamento tenham
a duração mínima de um ano. “Ao ponto a que chegamos”, ironiza.
Esta é, aliás, uma
realidade cada vez mais presente, sublinha António Machado, secretário-geral da
Associação Lisbonense Inquilinos, outra da entidades que apoia a manifestação.
“Temos verificado um aumento muito grande de contratos de um ano, findo o qual
as pessoas são postas na rua. Além disso, também se tem registado o crescimento
de casos em que se pede um ano de renda adiantada. Isto é coacção sobre as
pessoas. Cada vez mais se esquece a função social da propriedade”, lamenta.
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