domingo, 23 de setembro de 2018

A Demissão de João Ribas



Demissão de João Ribas expõe mal-estar “generalizado” em Serralves

Administração mantém silêncio sobre a saída do director do museu. Suzanne Cotter, a sua antecessora, não se revê nas acusações de ingerência feitas à presidente da fundação, mas ressalva que não pode falar pelos últimos meses. Entretanto, vários funcionários e ex-funcionários denunciam “totalitarismo”

INÊS NADAIS e LUCINDA CANELAS 22 de Setembro de 2018, 23:11

Ana Pinho preside à administração da Fundação de Serralves desde 2015; João Ribas era director do museu desde Janeiro deste ano NELSON GARRIDO

As restrições impostas pela administração de Serralves à apresentação do trabalho sexualmente explícito do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe, reunido desde quinta-feira numa retrospectiva que a instituição anunciou como um dos seus grandes acontecimentos para 2018, terão sido apenas a gota de água que levou João Ribas a apresentar a demissão, menos de oito meses depois de assumir o cargo. A tensão entre o director do museu – e curador da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures – e a presidente do conselho de administração da fundação, Ana Pinho, cujo primeiro mandato expira em Dezembro e pode ser renovado por mais três anos, foi-se avolumando ao longo dos últimos meses e tornou-se explosiva na fase final da montagem da exposição, como testemunharam ao PÚBLICO, sob anonimato, diversos funcionários e ex-funcionários de Serralves.

A interdição a menores de 18 anos de uma trintena de obras de Mapplethorpe, confinadas a duas salas reservadas do museu, veio contrariar publicamente a intenção manifestada por João Ribas ao PÚBLICO duas semanas antes da abertura da exposição, quando garantiu que “não haveria censura, obras tapadas, salas especiais ou qualquer tipo de restrição a visitantes de acordo com a faixa etária” na retrospectiva que estava prestes a inaugurar. E veio também expor o cada vez mais indisfarçável desacordo entre a administração presidida por Ana Pinho e o director do museu de Serralves, que se terá visto forçado a excluir pelo menos duas das imagens que deveriam integrar a exposição. “Era um barril de pólvora, ia rebentar mais cedo ou mais tarde”, disse ao PÚBLICO uma ex-funcionária da instituição que “já esperava” este desfecho.

Ao longo do dia, de resto, foram chegando ao PÚBLICO vários relatos de trabalhadores e ex-trabalhadores que quiseram dar conta do clima de “mal-estar generalizado” que se vive na instituição desde a tomada de posse da actual administração, em 2015. “O problema em Serralves não reside numa exposição de Robert Mapplethorpe, mas na interferência diária da administração no dia-a-dia de trabalho dos seus colaboradores”, afirmou um deles. Outros quiseram sublinhar o “clima intimidatório” e “o nível de totalitarismo”, que dizem “assustador”, da actuação de Ana Pinho – desde que chegou à administração, em 2010, mas sobretudo desde que passou a presidir àquele órgão. “A ingerência é diária, na esfera da direcção artística e nas outras. A administração decide que quer fazer uma exposição e faz. Tudo é anti-estatutário”, resume uma colaboradora que há meses deixou a fundação. “A presidente exerce os seus poderes de forma autocrática e intrusiva, desrespeitando a autonomia e a responsabilidade de trabalhadores com anos de casa. É um poder ditatorial que se sobrepõe a todas as direcções, a todos os departamentos”, resume outra, que saiu recentemente de Serralves após nove anos de ligação à fundação, acrescentando ainda que nos últimos meses presenciou episódios de “interferência directa na escolha e na curadoria de vários projectos expositivos”. “Os programadores e os coordenadores de Serralves tinham identidade, tinham nome, investiam no projecto tudo o que sabiam; com a nova administração deixou de ser assim. Instalou-se um ambiente de violência extrema; a única lógica é obedecer a quem manda”, refere ainda outra ex-colaboradora que durante 15 anos coordenou um departamento.

A forma como a administração terá imposto unilateralmente ao director do museu e curador da exposição a sua visão acerca dos cuidados a ter na apresentação do trabalho de Robert Mapplethorpe não surpreende, por isso, os funcionários ouvidos pelo PÚBLICO, que a entendem como “a primeira manifestação visível do que se passa em Serralves”. De resto, como um deles argumentou, se não tivesse explodido a pretexto da exposição de Robert Mapplethorpe a tensão iria muito provavelmente manifestar-se com a chegada a Serralves da grande exposição de Joana Vasconcelos inaugurada no final de Junho no Guggenheim de Bilbau, um projecto “negociado directamente” pela presidente da fundação e que se transformou numa das mais visíveis pedras no sapato de João Ribas – que, na sua recente entrevista ao PÚBLICO, evitou responder directamente às perguntas sobre o tema.

Mas o director do museu, escolhido por concurso público internacional após a saída de Suzanne Cotter, que não quis renovar por mais um período de cinco anos a sua ligação a Serralves, é de resto apenas uma das inúmeras saídas que se vêm sucedendo na fundação ao ritmo de “uma por mês, quando não são duas”, segundo várias fontes ouvidas pelo PÚBLICO. “Da minha equipa de 12 pessoas, apenas uma ficou: é um referencial do estado a que as coisas chegaram lá dentro. A diferença é que as pessoas que saíram até aqui não tinham a presença mediática que tem um director artístico”, sublinha uma ex-funcionária.

Até ao final deste sábado, a administração de Serralves manteve-se no mais absoluto silêncio em relação à demissão de João Ribas, limitando-se a reiterar, ao final da manhã, a garantia de que “não retirou nenhuma obra” e de que “todas” as 159 imagens de Robert Mapplethorpe incluídas na exposição (de uma lista inicial de 179 cuja redução nenhuma das partes explicou até ao momento) foram “escolhidas pelo curador”. Num comunicado enviado às redacções, a administração sublinhou ainda que "desde o início" estava previsto que "as obras de cariz sexual explícito" fossem instaladas "numa zona com acesso restrito”, “dado o teor de várias das obras expostas e sendo Serralves uma instituição visitada anualmente por quase um milhão de pessoas de todas as origens, idades e nacionalidades, incluindo milhares de crianças e centenas de escolas”.

As várias perguntas enviadas pelo PÚBLICO à administração de Serralves na tarde de sexta-feira ficaram sem resposta. Já este sábado o PÚBLICO tentou repetidamente, e sem sucesso, obter esclarecimentos junto de quatro membros do conselho de administração, incluindo a sua presidente.

“Um lugar difícil”
João Ribas, que apresentou a sua demissão por considerar que “já não tinha condições para continuar à frente da instituição”, como confirmou ao PÚBLICO, também se mantém em silêncio, tendo reservado para mais tarde um esclarecimento das razões que o levaram a esta decisão. Este sábado, já não participou na visita guiada à exposição que deveria conduzir com o presidente da Fundação Robert Mapplethorpe, Michael Ward Stout – que, em declarações aos jornalistas, se mostrou “chocado” com a demissão, considerando-a um acto “egoísta” e “pouco profissional” lesivo do “respeito que Serralves conquistou no mundo e do talento do artista”.

Michael Ward Stout disse também ter sido informado “por Ana Pinho” de que a decisão de retirar certas imagens da exposição – “não 20, mas apenas duas” – fora do próprio curador e não da administração: "Não sei por que é que o João retirou as fotografias, não faz sentido nenhum. Tudo isto deixa nos deixa envergonhados."

Já Suzanne Cotter, a antecessora de João Ribas, que chegou a Serralves para ser seu director-adjunto, lamentou que Serralves “tenha de passar por um processo destes apenas sete meses após a nomeação de um novo director”. “É uma pena”, disse ao PÚBLICO a actual directora do MUDAM, no Luxemburgo, ressalvando não ter “conhecimento suficiente acerca do que se passou” e negando que a sua própria saída, há quase um ano, tenha sido precipitada por dificuldades de relacionamento com a presidente do conselho de administração: “A minha saída foi uma decisão estritamente profissional. O conselho de administração sempre respeitou a minha autonomia. Mas, claro, não posso falar pelo período que se seguiu, e cada relação entre uma administração e um director artístico é uma relação diferente. E é um lugar muito difícil, como lhe dirão todos os meus colegas.”

Suzanne Cotter lamenta também que a retrospectiva de Robert Mapplethorpe em Serralves, “um grande acontecimento para a instituição”, cujas negociações se iniciaram ainda durante o seu mandato e com a sua intermediação, se veja “ofuscada por esta controvérsia”, confessando não conseguir perceber como é que “uma exposição que está a ser preparada há mais de um ano” pode ser palco de “dramas de última hora” como o braço-de-ferro público entre administração e direcção do museu. “O trabalho de Robert Mapplethorpe é extraordinário, é indiscutivelmente um dos fotógrafos mais influentes do século XX. E quando um museu e um curador se dispõem a preparar uma exposição destas, que têm obviamente uma dimensão provocadora atendendo à natureza sexualmente explícita de parte do material, é impensável que todas as questões não tenham sido internamente trabalhadas antes da abertura ao público.”

Já a ex-directora-geral Odete Patrício, que saiu de Serralves em 2016, passados mais de 25 anos na instituição, considera que o caso pode ter consequências danosas: “Se for verdade que houve interferência na escolha das obras, sem a concordância do director artístico, isso só desprestigia a instituição, e resultará numa perda para a imagem conquistada ao longo de todo este tempo”, afirmou ao PÚBLICO. “Um dos segredos do sucesso de Serralves”, acrescenta, está “na independência e na autonomia que o director artístico e os responsáveis pela programação sempre tiveram relativamente à administração” e que a instituição “respeitou sempre de forma exemplar, sem nunca impor, limitar, censurar ou proibir”. Odete Patrício lembra exposições muito discutidas internamente, como a do artista brasileiro Cildo Meireles, ou a de Nan Goldin, insistindo que não houve então “qualquer interferência nas escolhas da direcção artística”: “O Vicente Todolí, por exemplo, nunca aceitaria ter vindo dirigir o museu se não fosse assim, e o mesmo com o João Fernandes.”

“Censura inadmissível”

Contados pelo PÚBLICO ao início da tarde, João Pinharanda, curador e conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Paris, e Sérgio Mah, também ele curador, juntaram-se ao coro de protestos contra o sucedido na exposição Robert Mapplethorpe: Pictures. Em primeiro lugar, porque qualquer forma de censura é condenável, e depois, entre outros argumentos, porque a tendência das administrações das instituições culturais para interferir na programação é “preocupante” e, apesar de não ser nova, é cada vez mais “inaceitável”.

Presidente da Fundação Mapplethorpe critica demissão de João Ribas: "Foi pouco profissional"
Presidente da Fundação Mapplethorpe critica demissão de João Ribas: "Foi pouco profissional"
“Censura sob qualquer forma e sob qualquer pretexto é inadmissível”, diz Pinharanda, mostrando-se “absolutamente solidário” com o director do Museu de Serralves: “Qualquer director que leve a sério o seu trabalho faria o que o João Ribas fez. Esta tendência para as administrações interferirem no que se programa está em todo o lado.” França, garante, não é excepção, embora no país onde agora trabalha o mais notório seja a promoção do discurso do “politicamente correcto, outra forma de puritanismo” que é preciso combater, defende.

Esta tentação de ingerência das administrações no que se mostra é ainda mais problemática, sublinha Sérgio Mah, porque elas são geralmente compostas por pessoas com “uma relação intermitente com a arte contemporânea e até com a cultura”, com “pouca sensibilidade” e “experiência” em ambas.

Para este professor universitário que já foi o comissário da representação portuguesa na Bienal de Veneza (2011) e director do PhotoEspaña (2008-2010), é “totalmente incompreensível a desautorização de um director artístico” no pleno exercício das suas funções de curador, um director artístico que foi submetido a um longo processo de selecção e nomeado há menos de um ano.

Sérgio Mah evoca o investimento do Estado em Serralves para defender que tanto a administração como Ribas  têm a obrigação de esclarecer publicamente o sucedido: “Não pode haver uma neblina sobre o tema. João Ribas tem de falar sobre o que aconteceu e a administração tem de vir dizer o que entende ser a missão do museu de arte contemporânea mais importante e prestigiado do país. Mais, tem de vir dizer como entende o papel e a autonomia do director artístico.”

Mapplethorpe só para maiores de 18: "Censura” e “puritanismo” têm invadido as instituições culturais
Tanto Mah como Pinharanda falam da importância de expor Mapplethorpe em Serralves e de como o norte-americano se tornou consensual, embora reconheçam que nalguns sectores mais conservadores a associação de arte e sexo ainda causa desconforto.

“O que aconteceu em Serralves é revelador de um puritanismo bacoco disfarçado de pudor inconsequente”, diz o primeiro. “Afinal, isto quer dizer que se podem mostrar flores que parecem sexos mas não sexos que parecem flores?”, pergunta o segundo.

Para Sérgio Mah, a administração de Serralves acabou precisamente por ser apanhada nas contradições que o trabalho do fotógrafo americano queria realçar. “Robert Mapplethorpe vem denunciar um olhar moral sobre o sexo e sobre o corpo, em particular o masculino. Estas fotografias seriam tão polémicas se dirigissem o nosso olhar sobretudo para o corpo feminino? É que ele cria imagens que mostram o corpo dos homens de maneira embelezadora e o das mulheres evocando força [no caso da bodybuilder e modelo Lisa Lyon], o que baralha.”

Entre os artistas e curadores que manifestaram o seu repúdio pelo sucedido está também o fotógrafo português Daniel Blaufuks, que deveria conduzir uma visita à exposição do artista norte-americano em Novembro, mas decidiu “por considerar absolutamente inaceitável as noticiadas restrições na exposição de Robert Mapplethorpe”, como escreveu nas suas páginas das redes sociais Facebook e Instagram.

Também o galerista João Azinheiro saudou no Facebook a coragem de João Ribas, dizendo-se orgulhoso da sua demissão, que leu como “um alerta” público acerca do “ponto a que as coisas chegaram em Serralves”. Ao PÚBLICO, acrescentou que as semelhanças entre o que viu passar-se agora na fundação portuense e o que está acontecer no Brasil, onde diversas exposições com conteúdos de natureza sexual foram recentemente censuradas ou alvo de intensas polémicas, o deixam “assustado”. “Um museu de arte contemporânea não devia ser um lugar de proibição. Sobretudo em Portugal, onde isso significa um retrocesso impensável, um regresso à censura.” Com Sérgio C. Andrade

OPINIÃO

“A vantagem dos car****s pesa sobre muitas imaginações”
22.09.2018 às 20h58

Se Serralves decide fazer uma grande retrospetiva do fotógrafo, então tem de exibir as suas obsessões, incluindo as fotografias explícitas, sexuais, sadomasoquistas, as masturbações, sodomizações. Ou se expõe Mapplethorpe ou não se expõe Mapplethorpe

Pedro Santos Guerreiro
PEDRO SANTOS GUERREIRO

Advertência: entre neste texto como se num espaço expositivo com conteúdo eventualmente chocante e explícito. Siga por sua conta e risco.

A frase do título deste texto é explícita, os asteriscos são nossos e isso não é irrelevante (já lá vamos). É o princípio de um poema e quem não o conhece ficará surpreendido por saber que quem o escreveu foi o maior, mais citado (e talvez lido), mais exportado e possivelmente mais amado dos poetas portugueses. “A alma humana é porca como um ânus / E a vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações”, escreveu Álvaro de Campos, o engenheiro naval heterónimo de Fernando Pessoa.

O que pesa sobre muitas imaginações é, por exemplo, o “pénis ereto ladeado por uma pistola” fotografado por Robert Mapplethorpe, que pode ser visto hoje em Serralves, no Porto, numa exposição que levou à demissão do diretor do museu, João Ribas. A história da demissão está ainda mal contada, com versões contraditórias que tanto fazem de Ribas um homem corajoso e livre como um miúdo imaturo e birrento; e fazem da presidente Ana Pinho tanto uma censora autoritária como uma autoridade difamada. Será preciso descobrir como tudo aconteceu antes de dizer quem tem razão, mas já se percebeu que ninguém ficará bem numa história que escancarou nos jornais o que já antes era uma má relação pessoal, que assim causará um custo reputacional numa instituição que foi, é e será maior que os dois circunstantes: Serralves. A reputação de que não sabe definir, ao início, a sua linha expositiva, nem respeitar depois a autonomia de um diretor artístico; de que não dá explicações mesmo tendo, como diz António Filipe Pimentel, obrigação moral e ética de as dar à sua comunidade e aos contribuintes que a subsidiam. Nas primeiras 24 horas, desmentiu ter feito censura e ainda nada mais disse. Já Ribas, se foi apenas calculista, arrisca passar de herói de uma noite a esquecido todos os dias.

Há já um tema que deve ser discutido. É o da sua imaginação. Citar Pessoa neste texto não serve para chocar nem sequer apenas para fazer uma ligação com Mapplethorpe, que fotografou também o que essa frase significa. Mesmo entre os artistas benditos há criações pouco divulgadas entre os que as achariam malditas. Leonard Cohen, outro exemplo, morreu amado por milhões que se deitam nos lençóis do seu romantismo, mais do que os que conhecem os seus livros então criticados pelas taras sexuais, os seus poemas sobre sexo oral ou até as letras de músicas como a de “Chelsea Hotel”, onde o cantor se lembra de Janis Joplin, tão corajosa e tão querida, “giving me head on the unmade bed”.

Mapplethorpe não entra sequer nesta categoria – com perdão pela armadilha da categorização: se Serralves decide fazer uma grande retrospetiva do fotógrafo, que morreu em 1989, então tem de exibir as suas obsessões, incluindo as fotografias explícitas, sexuais, sadomasoquistas, as masturbações, sodomias. Ou se expõe Mapplethorpe ou não se expõe Mapplethorpe.

O que está em causa (e em dúvida) na exposição é se a administração mandou excluir fotografias que haviam sido selecionadas pelo diretor artístico (o que a administração desmente) e se a administração lhe impôs vedar uma sala a menores de 18 anos (o que parece demonstrado). Nem é preciso discutir que um artista tem é liberdade total, como argumenta Julião Sarmento, mas que um curador, como diz Delfim Sardo, trabalha num exercício de mediação entre o artista e o público: “Cabe às instituições decidir mostrá-lo, no sentido da liberdade e com contexto. Deve informar, mas não ser paternalista. A opção do que quer ver é uma escolha que no limite é sempre do público. Esta é a fronteira permanente e o exercício que se deve fazer." Neste momento, na exposição Pós-Pop, na Gulbenkian, está exposto o "Relicário" de Clara Menéres, que se abre para um falo em resina sintética. Há um aviso à entrada da sala, todas as idades entram. Os avisos fazem sentido à entrada. Um compartimento proibido não.

Há quem choque, há quem se choque, a arte é um território expressivo que admite tudo, incluindo a provocação e a sedução, o beijo e o vómito, a moral e a amoralidade, a criação e a destruição, porque tudo é mesmo tudo, e os museus não são lugares de entretenimento nem da conveniência de uma linguagem política, são lugares de opções expositivas da arte para o público. Ao mesmo tempo em que Serralves inaugurava a exposição de Mapplethorpe, a programação da Feira do Livro do Porto organizava debates sobre o Maio de 68 e afixava cartazes “é proibido proibir”. Paradoxalmente, o que seria uma demonstração de ousadia pode cristalizar-se como um indício de conservadorismo de Serralves. Não é o primeiro museu em que isto acontece: é a Maldição Mapplethorpe. “Sex is again the unmentionable word”, disse David Bowie décadas antes de morrer.

Mas porquê tanto choque com o sexo e tão pouca ralação com a violência e com conteúdos políticos?, pergunta Delfim Sardo. Se entrar nestes dias no Núcleo de Arte da Oliva, em São João da Madeira, pode virar à esquerda e ver a exposição “Intersticial: Diálogos no Espaço entre Acontecimentos”, com obras da Coleção Norlinda e José Lima, ou pode virar à direita para ver a exposição “Histórias de Violência”, que mostra uma convocatória destruidora que nos inquieta. Antes dos 18 anos já os miúdos veem toda a pornografia sem restrições no telemóvel e matam à toa e à bruta nos jogos online.

Voltamos pois à fotografia de Mapplethorpe: aquele “pénis ereto ladeado por uma pistola”, escreve o jornalista Valdemar Cruz, sugere “uma ideia de espelho” que constrói “uma metáfora dos múltiplos poderes associados ao que pode ser visto como duas máquinas de violência”. Não, não é pornografia. Quem quer vai, quem não quer não vai. E se aqui usámos asteriscos no título foi porque os jornais não são do território criativo da arte, têm códigos de conduta sobre questões editoriais como esta – e porque ainda não tínhamos avisado ao que vinha. Se aqui chegou, leu porque quis e não leu quem não quis. Censurar pode ser um ato social e não ser um ato de cultura. Aquele pénis ereto não é um porno pénis ereto, é arte. E chocante, chocante é ver juízes escrever que uma mulher violada inconsciente participou numa “sedução mútua”. Também há arte chocante contra essa violência. Quase um século depois de Pessoa o ter escrito, “a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas”.

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