Demissão de João Ribas expõe mal-estar “generalizado” em
Serralves
Administração mantém silêncio sobre a saída do director do
museu. Suzanne Cotter, a sua antecessora, não se revê nas acusações de
ingerência feitas à presidente da fundação, mas ressalva que não pode falar
pelos últimos meses. Entretanto, vários funcionários e ex-funcionários
denunciam “totalitarismo”
INÊS NADAIS e LUCINDA CANELAS 22 de Setembro de 2018, 23:11
Ana Pinho preside à administração da Fundação de Serralves
desde 2015; João Ribas era director do museu desde Janeiro deste ano NELSON
GARRIDO
As restrições impostas pela administração de Serralves à
apresentação do trabalho sexualmente explícito do fotógrafo norte-americano
Robert Mapplethorpe, reunido desde quinta-feira numa retrospectiva que a
instituição anunciou como um dos seus grandes acontecimentos para 2018, terão
sido apenas a gota de água que levou João Ribas a apresentar a demissão, menos
de oito meses depois de assumir o cargo. A tensão entre o director do museu – e
curador da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures – e a presidente do conselho
de administração da fundação, Ana Pinho, cujo primeiro mandato expira em Dezembro
e pode ser renovado por mais três anos, foi-se avolumando ao longo dos últimos
meses e tornou-se explosiva na fase final da montagem da exposição, como
testemunharam ao PÚBLICO, sob anonimato, diversos funcionários e
ex-funcionários de Serralves.
A interdição a menores de 18 anos de uma trintena de obras
de Mapplethorpe, confinadas a duas salas reservadas do museu, veio contrariar
publicamente a intenção manifestada por João Ribas ao PÚBLICO duas semanas
antes da abertura da exposição, quando garantiu que “não haveria censura, obras
tapadas, salas especiais ou qualquer tipo de restrição a visitantes de acordo
com a faixa etária” na retrospectiva que estava prestes a inaugurar. E veio
também expor o cada vez mais indisfarçável desacordo entre a administração
presidida por Ana Pinho e o director do museu de Serralves, que se terá visto
forçado a excluir pelo menos duas das imagens que deveriam integrar a
exposição. “Era um barril de pólvora, ia rebentar mais cedo ou mais tarde”,
disse ao PÚBLICO uma ex-funcionária da instituição que “já esperava” este
desfecho.
Ao longo do dia, de resto, foram chegando ao PÚBLICO vários
relatos de trabalhadores e ex-trabalhadores que quiseram dar conta do clima de
“mal-estar generalizado” que se vive na instituição desde a tomada de posse da
actual administração, em 2015. “O problema em Serralves não reside numa
exposição de Robert Mapplethorpe, mas na interferência diária da administração
no dia-a-dia de trabalho dos seus colaboradores”, afirmou um deles. Outros
quiseram sublinhar o “clima intimidatório” e “o nível de totalitarismo”, que
dizem “assustador”, da actuação de Ana Pinho – desde que chegou à
administração, em 2010, mas sobretudo desde que passou a presidir àquele órgão.
“A ingerência é diária, na esfera da direcção artística e nas outras. A
administração decide que quer fazer uma exposição e faz. Tudo é
anti-estatutário”, resume uma colaboradora que há meses deixou a fundação. “A
presidente exerce os seus poderes de forma autocrática e intrusiva,
desrespeitando a autonomia e a responsabilidade de trabalhadores com anos de
casa. É um poder ditatorial que se sobrepõe a todas as direcções, a todos os
departamentos”, resume outra, que saiu recentemente de Serralves após nove anos
de ligação à fundação, acrescentando ainda que nos últimos meses presenciou
episódios de “interferência directa na escolha e na curadoria de vários
projectos expositivos”. “Os programadores e os coordenadores de Serralves
tinham identidade, tinham nome, investiam no projecto tudo o que sabiam; com a
nova administração deixou de ser assim. Instalou-se um ambiente de violência
extrema; a única lógica é obedecer a quem manda”, refere ainda outra
ex-colaboradora que durante 15 anos coordenou um departamento.
A forma como a administração terá imposto unilateralmente ao
director do museu e curador da exposição a sua visão acerca dos cuidados a ter
na apresentação do trabalho de Robert Mapplethorpe não surpreende, por isso, os
funcionários ouvidos pelo PÚBLICO, que a entendem como “a primeira manifestação
visível do que se passa em Serralves”. De resto, como um deles argumentou, se
não tivesse explodido a pretexto da exposição de Robert Mapplethorpe a tensão
iria muito provavelmente manifestar-se com a chegada a Serralves da grande
exposição de Joana Vasconcelos inaugurada no final de Junho no Guggenheim de
Bilbau, um projecto “negociado directamente” pela presidente da fundação e que
se transformou numa das mais visíveis pedras no sapato de João Ribas – que, na
sua recente entrevista ao PÚBLICO, evitou responder directamente às perguntas
sobre o tema.
Mas o director do museu, escolhido por concurso público
internacional após a saída de Suzanne Cotter, que não quis renovar por mais um
período de cinco anos a sua ligação a Serralves, é de resto apenas uma das
inúmeras saídas que se vêm sucedendo na fundação ao ritmo de “uma por mês,
quando não são duas”, segundo várias fontes ouvidas pelo PÚBLICO. “Da minha
equipa de 12 pessoas, apenas uma ficou: é um referencial do estado a que as
coisas chegaram lá dentro. A diferença é que as pessoas que saíram até aqui não
tinham a presença mediática que tem um director artístico”, sublinha uma
ex-funcionária.
Até ao final deste sábado, a administração de Serralves
manteve-se no mais absoluto silêncio em relação à demissão de João Ribas,
limitando-se a reiterar, ao final da manhã, a garantia de que “não retirou
nenhuma obra” e de que “todas” as 159 imagens de Robert Mapplethorpe incluídas
na exposição (de uma lista inicial de 179 cuja redução nenhuma das partes
explicou até ao momento) foram “escolhidas pelo curador”. Num comunicado
enviado às redacções, a administração sublinhou ainda que "desde o
início" estava previsto que "as obras de cariz sexual explícito"
fossem instaladas "numa zona com acesso restrito”, “dado o teor de várias
das obras expostas e sendo Serralves uma instituição visitada anualmente por
quase um milhão de pessoas de todas as origens, idades e nacionalidades,
incluindo milhares de crianças e centenas de escolas”.
As várias perguntas enviadas pelo PÚBLICO à administração de
Serralves na tarde de sexta-feira ficaram sem resposta. Já este sábado o
PÚBLICO tentou repetidamente, e sem sucesso, obter esclarecimentos junto de
quatro membros do conselho de administração, incluindo a sua presidente.
“Um lugar difícil”
João Ribas, que apresentou a sua demissão por considerar que
“já não tinha condições para continuar à frente da instituição”, como confirmou
ao PÚBLICO, também se mantém em silêncio, tendo reservado para mais tarde um
esclarecimento das razões que o levaram a esta decisão. Este sábado, já não
participou na visita guiada à exposição que deveria conduzir com o presidente
da Fundação Robert Mapplethorpe, Michael Ward Stout – que, em declarações aos
jornalistas, se mostrou “chocado” com a demissão, considerando-a um acto
“egoísta” e “pouco profissional” lesivo do “respeito que Serralves conquistou
no mundo e do talento do artista”.
Michael Ward Stout disse também ter sido informado “por Ana
Pinho” de que a decisão de retirar certas imagens da exposição – “não 20, mas
apenas duas” – fora do próprio curador e não da administração: "Não sei
por que é que o João retirou as fotografias, não faz sentido nenhum. Tudo isto
deixa nos deixa envergonhados."
Já Suzanne Cotter, a antecessora de João Ribas, que chegou a
Serralves para ser seu director-adjunto, lamentou que Serralves “tenha de
passar por um processo destes apenas sete meses após a nomeação de um novo
director”. “É uma pena”, disse ao PÚBLICO a actual directora do MUDAM, no
Luxemburgo, ressalvando não ter “conhecimento suficiente acerca do que se
passou” e negando que a sua própria saída, há quase um ano, tenha sido
precipitada por dificuldades de relacionamento com a presidente do conselho de
administração: “A minha saída foi uma decisão estritamente profissional. O
conselho de administração sempre respeitou a minha autonomia. Mas, claro, não
posso falar pelo período que se seguiu, e cada relação entre uma administração
e um director artístico é uma relação diferente. E é um lugar muito difícil,
como lhe dirão todos os meus colegas.”
Suzanne Cotter lamenta também que a retrospectiva de Robert
Mapplethorpe em Serralves, “um grande acontecimento para a instituição”, cujas
negociações se iniciaram ainda durante o seu mandato e com a sua intermediação,
se veja “ofuscada por esta controvérsia”, confessando não conseguir perceber
como é que “uma exposição que está a ser preparada há mais de um ano” pode ser
palco de “dramas de última hora” como o braço-de-ferro público entre
administração e direcção do museu. “O trabalho de Robert Mapplethorpe é
extraordinário, é indiscutivelmente um dos fotógrafos mais influentes do século
XX. E quando um museu e um curador se dispõem a preparar uma exposição destas,
que têm obviamente uma dimensão provocadora atendendo à natureza sexualmente
explícita de parte do material, é impensável que todas as questões não tenham
sido internamente trabalhadas antes da abertura ao público.”
Já a ex-directora-geral Odete Patrício, que saiu de
Serralves em 2016, passados mais de 25 anos na instituição, considera que o
caso pode ter consequências danosas: “Se for verdade que houve interferência na
escolha das obras, sem a concordância do director artístico, isso só
desprestigia a instituição, e resultará numa perda para a imagem conquistada ao
longo de todo este tempo”, afirmou ao PÚBLICO. “Um dos segredos do sucesso de
Serralves”, acrescenta, está “na independência e na autonomia que o director artístico
e os responsáveis pela programação sempre tiveram relativamente à
administração” e que a instituição “respeitou sempre de forma exemplar, sem
nunca impor, limitar, censurar ou proibir”. Odete Patrício lembra exposições
muito discutidas internamente, como a do artista brasileiro Cildo Meireles, ou
a de Nan Goldin, insistindo que não houve então “qualquer interferência nas
escolhas da direcção artística”: “O Vicente Todolí, por exemplo, nunca
aceitaria ter vindo dirigir o museu se não fosse assim, e o mesmo com o João
Fernandes.”
“Censura inadmissível”
Contados pelo PÚBLICO ao início da tarde, João Pinharanda,
curador e conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Paris, e Sérgio Mah,
também ele curador, juntaram-se ao coro de protestos contra o sucedido na
exposição Robert Mapplethorpe: Pictures. Em primeiro lugar, porque qualquer
forma de censura é condenável, e depois, entre outros argumentos, porque a
tendência das administrações das instituições culturais para interferir na
programação é “preocupante” e, apesar de não ser nova, é cada vez mais
“inaceitável”.
Presidente da Fundação Mapplethorpe critica demissão de João
Ribas: "Foi pouco profissional"
Presidente da Fundação Mapplethorpe critica demissão de João
Ribas: "Foi pouco profissional"
“Censura sob qualquer forma e sob qualquer pretexto é
inadmissível”, diz Pinharanda, mostrando-se “absolutamente solidário” com o
director do Museu de Serralves: “Qualquer director que leve a sério o seu
trabalho faria o que o João Ribas fez. Esta tendência para as administrações
interferirem no que se programa está em todo o lado.” França, garante, não é
excepção, embora no país onde agora trabalha o mais notório seja a promoção do
discurso do “politicamente correcto, outra forma de puritanismo” que é preciso
combater, defende.
Esta tentação de ingerência das administrações no que se
mostra é ainda mais problemática, sublinha Sérgio Mah, porque elas são
geralmente compostas por pessoas com “uma relação intermitente com a arte
contemporânea e até com a cultura”, com “pouca sensibilidade” e “experiência”
em ambas.
Para este professor universitário que já foi o comissário da
representação portuguesa na Bienal de Veneza (2011) e director do PhotoEspaña
(2008-2010), é “totalmente incompreensível a desautorização de um director
artístico” no pleno exercício das suas funções de curador, um director
artístico que foi submetido a um longo processo de selecção e nomeado há menos
de um ano.
Sérgio Mah evoca o investimento do Estado em Serralves para
defender que tanto a administração como Ribas
têm a obrigação de esclarecer publicamente o sucedido: “Não pode haver
uma neblina sobre o tema. João Ribas tem de falar sobre o que aconteceu e a
administração tem de vir dizer o que entende ser a missão do museu de arte contemporânea
mais importante e prestigiado do país. Mais, tem de vir dizer como entende o
papel e a autonomia do director artístico.”
Mapplethorpe só para maiores de 18: "Censura” e
“puritanismo” têm invadido as instituições culturais
Tanto Mah como Pinharanda falam da importância de expor
Mapplethorpe em Serralves e de como o norte-americano se tornou consensual,
embora reconheçam que nalguns sectores mais conservadores a associação de arte
e sexo ainda causa desconforto.
“O que aconteceu em Serralves é revelador de um puritanismo
bacoco disfarçado de pudor inconsequente”, diz o primeiro. “Afinal, isto quer
dizer que se podem mostrar flores que parecem sexos mas não sexos que parecem
flores?”, pergunta o segundo.
Para Sérgio Mah, a administração de Serralves acabou
precisamente por ser apanhada nas contradições que o trabalho do fotógrafo
americano queria realçar. “Robert Mapplethorpe vem denunciar um olhar moral
sobre o sexo e sobre o corpo, em particular o masculino. Estas fotografias
seriam tão polémicas se dirigissem o nosso olhar sobretudo para o corpo
feminino? É que ele cria imagens que mostram o corpo dos homens de maneira
embelezadora e o das mulheres evocando força [no caso da bodybuilder e modelo
Lisa Lyon], o que baralha.”
Entre os artistas e curadores que manifestaram o seu repúdio
pelo sucedido está também o fotógrafo português Daniel Blaufuks, que deveria
conduzir uma visita à exposição do artista norte-americano em Novembro, mas
decidiu “por considerar absolutamente inaceitável as noticiadas restrições na
exposição de Robert Mapplethorpe”, como escreveu nas suas páginas das redes
sociais Facebook e Instagram.
Também o galerista João Azinheiro saudou no Facebook a
coragem de João Ribas, dizendo-se orgulhoso da sua demissão, que leu como “um
alerta” público acerca do “ponto a que as coisas chegaram em Serralves”. Ao
PÚBLICO, acrescentou que as semelhanças entre o que viu passar-se agora na
fundação portuense e o que está acontecer no Brasil, onde diversas exposições
com conteúdos de natureza sexual foram recentemente censuradas ou alvo de
intensas polémicas, o deixam “assustado”. “Um museu de arte contemporânea não
devia ser um lugar de proibição. Sobretudo em Portugal, onde isso significa um
retrocesso impensável, um regresso à censura.” Com Sérgio C. Andrade
OPINIÃO
“A vantagem dos car****s pesa sobre muitas imaginações”
22.09.2018 às 20h58
Se Serralves decide fazer uma grande retrospetiva do
fotógrafo, então tem de exibir as suas obsessões, incluindo as fotografias
explícitas, sexuais, sadomasoquistas, as masturbações, sodomizações. Ou se
expõe Mapplethorpe ou não se expõe Mapplethorpe
Pedro Santos Guerreiro
PEDRO SANTOS GUERREIRO
Advertência: entre neste texto como se num espaço expositivo
com conteúdo eventualmente chocante e explícito. Siga por sua conta e risco.
A frase do título deste texto é explícita, os asteriscos são
nossos e isso não é irrelevante (já lá vamos). É o princípio de um poema e quem
não o conhece ficará surpreendido por saber que quem o escreveu foi o maior,
mais citado (e talvez lido), mais exportado e possivelmente mais amado dos
poetas portugueses. “A alma humana é porca como um ânus / E a vantagem dos
caralhos pesa em muitas imaginações”, escreveu Álvaro de Campos, o engenheiro
naval heterónimo de Fernando Pessoa.
O que pesa sobre muitas imaginações é, por exemplo, o “pénis
ereto ladeado por uma pistola” fotografado por Robert Mapplethorpe, que pode
ser visto hoje em Serralves, no Porto, numa exposição que levou à demissão do
diretor do museu, João Ribas. A história da demissão está ainda mal contada,
com versões contraditórias que tanto fazem de Ribas um homem corajoso e livre
como um miúdo imaturo e birrento; e fazem da presidente Ana Pinho tanto uma
censora autoritária como uma autoridade difamada. Será preciso descobrir como
tudo aconteceu antes de dizer quem tem razão, mas já se percebeu que ninguém
ficará bem numa história que escancarou nos jornais o que já antes era uma má
relação pessoal, que assim causará um custo reputacional numa instituição que
foi, é e será maior que os dois circunstantes: Serralves. A reputação de que
não sabe definir, ao início, a sua linha expositiva, nem respeitar depois a
autonomia de um diretor artístico; de que não dá explicações mesmo tendo, como
diz António Filipe Pimentel, obrigação moral e ética de as dar à sua comunidade
e aos contribuintes que a subsidiam. Nas primeiras 24 horas, desmentiu ter
feito censura e ainda nada mais disse. Já Ribas, se foi apenas calculista,
arrisca passar de herói de uma noite a esquecido todos os dias.
Há já um tema que deve ser discutido. É o da sua imaginação.
Citar Pessoa neste texto não serve para chocar nem sequer apenas para fazer uma
ligação com Mapplethorpe, que fotografou também o que essa frase significa.
Mesmo entre os artistas benditos há criações pouco divulgadas entre os que as
achariam malditas. Leonard Cohen, outro exemplo, morreu amado por milhões que
se deitam nos lençóis do seu romantismo, mais do que os que conhecem os seus
livros então criticados pelas taras sexuais, os seus poemas sobre sexo oral ou
até as letras de músicas como a de “Chelsea Hotel”, onde o cantor se lembra de
Janis Joplin, tão corajosa e tão querida, “giving me head on the unmade bed”.
Mapplethorpe não entra sequer nesta categoria – com perdão
pela armadilha da categorização: se Serralves decide fazer uma grande
retrospetiva do fotógrafo, que morreu em 1989, então tem de exibir as suas
obsessões, incluindo as fotografias explícitas, sexuais, sadomasoquistas, as
masturbações, sodomias. Ou se expõe Mapplethorpe ou não se expõe Mapplethorpe.
O que está em causa (e em dúvida) na exposição é se a
administração mandou excluir fotografias que haviam sido selecionadas pelo
diretor artístico (o que a administração desmente) e se a administração lhe
impôs vedar uma sala a menores de 18 anos (o que parece demonstrado). Nem é
preciso discutir que um artista tem é liberdade total, como argumenta Julião
Sarmento, mas que um curador, como diz Delfim Sardo, trabalha num exercício de
mediação entre o artista e o público: “Cabe às instituições decidir mostrá-lo,
no sentido da liberdade e com contexto. Deve informar, mas não ser paternalista.
A opção do que quer ver é uma escolha que no limite é sempre do público. Esta é
a fronteira permanente e o exercício que se deve fazer." Neste momento, na
exposição Pós-Pop, na Gulbenkian, está exposto o "Relicário" de Clara
Menéres, que se abre para um falo em resina sintética. Há um aviso à entrada da
sala, todas as idades entram. Os avisos fazem sentido à entrada. Um
compartimento proibido não.
Há quem choque, há quem se choque, a arte é um território
expressivo que admite tudo, incluindo a provocação e a sedução, o beijo e o
vómito, a moral e a amoralidade, a criação e a destruição, porque tudo é mesmo
tudo, e os museus não são lugares de entretenimento nem da conveniência de uma
linguagem política, são lugares de opções expositivas da arte para o público.
Ao mesmo tempo em que Serralves inaugurava a exposição de Mapplethorpe, a
programação da Feira do Livro do Porto organizava debates sobre o Maio de 68 e
afixava cartazes “é proibido proibir”. Paradoxalmente, o que seria uma
demonstração de ousadia pode cristalizar-se como um indício de conservadorismo
de Serralves. Não é o primeiro museu em que isto acontece: é a Maldição
Mapplethorpe. “Sex is again the unmentionable word”, disse David Bowie décadas
antes de morrer.
Mas porquê tanto choque com o sexo e tão pouca ralação com a
violência e com conteúdos políticos?, pergunta Delfim Sardo. Se entrar nestes
dias no Núcleo de Arte da Oliva, em São João da Madeira, pode virar à esquerda
e ver a exposição “Intersticial: Diálogos no Espaço entre Acontecimentos”, com
obras da Coleção Norlinda e José Lima, ou pode virar à direita para ver a
exposição “Histórias de Violência”, que mostra uma convocatória destruidora que
nos inquieta. Antes dos 18 anos já os miúdos veem toda a pornografia sem
restrições no telemóvel e matam à toa e à bruta nos jogos online.
Voltamos pois à fotografia de Mapplethorpe: aquele “pénis
ereto ladeado por uma pistola”, escreve o jornalista Valdemar Cruz, sugere “uma
ideia de espelho” que constrói “uma metáfora dos múltiplos poderes associados
ao que pode ser visto como duas máquinas de violência”. Não, não é pornografia.
Quem quer vai, quem não quer não vai. E se aqui usámos asteriscos no título foi
porque os jornais não são do território criativo da arte, têm códigos de conduta
sobre questões editoriais como esta – e porque ainda não tínhamos avisado ao
que vinha. Se aqui chegou, leu porque quis e não leu quem não quis. Censurar
pode ser um ato social e não ser um ato de cultura. Aquele pénis ereto não é um
porno pénis ereto, é arte. E chocante, chocante é ver juízes escrever que uma
mulher violada inconsciente participou numa “sedução mútua”. Também há arte
chocante contra essa violência. Quase um século depois de Pessoa o ter escrito,
“a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas”.
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