segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Graça dividida entre a manutenção da tradicional vida de bairro e a dinâmica trazida pelo turismo





Graça dividida entre a manutenção da tradicional vida de bairro e a dinâmica trazida pelo turismo
Sofia Cristino
Texto
14 Setembro, 2018

A Graça está diferente, com prédios e espaço público renovados e mais unidades de alojamento local. Uma mudança com consequências na vida dos moradores mais antigos. Muitos foram despejados e quem lá está teme idêntico destino. “Tenho sempre aquela sensação de insegurança de que o senhorio nos pode mandar embora”, receia uma habitante, embora reconheça que “está tudo mais arranjado”. Há também espaços comerciais a surgirem, acompanhando novas tendências de consumo, ao lado das lojas mais antigas. “Este contraste dá outro charme à freguesia, torna-a mais sofisticada”, diz uma residente brasileira. Se há moradores a queixarem-se do ruído dos turistas que passeiam pelo bairro à noite, outros elogiam a vontade dos novos vizinhos estrangeiros em relacionarem-se com os portugueses. “São muito simpáticos, querem-nos cativar”, conta uma moradora idosa. A sujidade das ruas continua a aumentar, mas a presidente da Junta de Freguesia atribui o problema à falta de civismo.

De cinco em cinco minutos, o cenário repete-se. Logo pela manhã, dezenas de tuk-tuks, por vezes espaçados, outras numa fila que se estende pela Calçada da Graça, transportam turistas ansiosos por chegarem à colina mais alta da cidade. É no Miradouro da Graça, de onde se vê Lisboa inteira, que quem visita a capital inicia o roteiro turístico, posicionando-se para tirar uma fotografia ou tomar um café na esplanada ao som de música ao vivo. Quem lá vive há mais anos recorda-se do miradouro como um lugar tranquilo, sem música e com meia dúzia de cadeiras, mas hoje já não é assim. “Durante o dia, vemos mais turistas, principalmente franceses, espanhóis, alemães e italianos. Muitos perguntam-nos se conhecemos casas para alugar ou se esta zona é calma para viver. À noite, vê-se mais portugueses e moradores do bairro”, conta Afonso Rodrigues, 26 anos, funcionário do café situado nesta varanda de Lisboa.

À medida que caminhamos em direcção ao Largo da Graça, vão ficando para trás conversas cruzadas em diferentes idiomas, uma cantoria de um grupo de jovens espanhóis e a letra da música Imagine, de John Lennon, tocada por um artista de rua. Depois de se atravessar uma antiga zona de estacionamento, que recentemente deu lugar a um coreto e bancos de jardim, depois da operação de requalificação do espaço público feita no âmbito do programa municipal Uma Praça em Cada Bairro, percebe-se que a utilização do lugar mudou. O estacionamento em segunda fila foi extinto e as pessoas movem-se a ritmos diferentes. Apesar da insatisfação sentida por alguns moradores, os antigos dizem conviver saudavelmente com os recém-chegados, de várias partes do mundo.

“No meu prédio, saíram muitos habitantes, mas os novos, maioritariamente estrangeiros, são muito simpáticos. Perguntam-me se preciso de alguma coisa, querem-nos cativar”, conta Anabela Lopes, 68 anos. Vive na Calçada dos Barbadinhos com uma amiga, Aurora dos Prazeres, 92 anos, que partilha o mesmo sentimento. “A convivência de antigamente, entre os vizinhos, diminuiu um bocadinho, mas ainda há vida de bairro. Sou uma privilegiada porque, de manhã, ainda abro a janela e tenho uma vista maravilhosa do rio Tejo”, diz Aurora.

 Uma das novas moradoras da freguesia de São Vicente, Juliana Parro, 32 anos, veio da Fortaleza, no Brasil, e não quis mais regressar às origens. “No Brasil, estava sempre assustada, aqui senti-me segura, apesar de já me ter sentido mais. Já se vê carteiristas a correrem atrás dos turistas”, diz. A vendedora de crepes na Maria Limão, um espaço aberto há um ano nesta parte da cidade, vê com bons olhos a transformação do bairro histórico. “Em 2017, senti uma mudança muito brusca. De repente, a cidade estava cheia de tuk-tuks e hostels. Mas gosto deste ambiente, em que a parte mais antiga convive com a moderna. Este contraste dá outro charme à freguesia, torna-a mais sofisticada”, constata a moradora que, este ano, já participou nas Marchas Populares de Santo António. “Há uma diversidade cultural muito grande, a conviver com uma população mais idosa, mas ambas relacionam-se bem. Aparecem idosos na creparia a quererem saber o que é a modernice do brunch e, depois, comem”, conta, entre risos.

Ao chegar ao quiosque mais antigo da freguesia de São Vicente, no Largo da Graça, onde Maria do Carmo Gonçalves, 59 anos, vende jornais e revistas há 35 anos, os comentários sobre as transformações desta parte da cidade mudam de tom. “Desapareceu muita gente do bairro e vão sair mais, porque há muitos contratos de arrendamento a chegar ao fim. Isto é um pandemónio todos os dias, com o eléctrico 28 sempre cheio. Há prédios que têm mais fracções em Airbnb do que moradores antigos”, critica Casimiro Abreu, a viver na Graça desde 1975, enquanto compra o jornal habitual. Maria do Carmo comenta as novidades com o cliente, enquanto que outros, em passo mais acelerado, pegam no jornal e deixam as moedas na banca dos jornais, sem falarem com a vendedora.

 “É normal, já nos conhecemos todos”, comenta Maria Silva, 77 anos, que também está inconformada. “Quem a viu e quem a vê, a Graça está uma desgraça”, brinca com as palavras. E explica: “Alargaram muito os passeios e, por vezes, as ambulâncias têm dificuldade em passar nas ruas, há muito trânsito. Quando começaram a aparecer os tuk-tuks, colocávamos panos nas janelas para abafar o som, nem dormíamos. Os turistas ainda fazem muito barulho à noite”. Apesar disso, admite, existem coisas positivas. “Ainda há bom convívio, pelo menos”, elogia. Maria do Carmo também exalta as boas relações entre os “poucos moradores” que ainda vivem na freguesia e a requalificação do Largo da Graça. “Trouxe mais gente, reúnem-se muitos aqui à tarde”, diz. E O Corvo constatou-o quando lá esteve. No centro da praça, a meio da tarde, quatro idosos sentados em círculo ouvem uma história contada por Elisa Dias, no âmbito do projecto “Na rua com histórias – Uma biblioteca para todos”.

 À medida que a contadora de histórias vai lendo, e gesticulando com as mãos nos momentos de maior suspense, os ouvintes vão fazendo observações. “Pois, no meu tempo, era mesmo assim”, ouve-se. O regresso às memórias anima-os e fá-los quererem voltar aquele encontro. “Já fazia falta uma iniciativa deste género, é uma forma de nos distrairmos, mas o que gostamos mais é da companhia”, diz Firmina Maria. Joaquim Correia, 85 anos, teve uma frutaria durante muitos anos na Graça e, ao ouvir as histórias, explica, “atenua a saudade daqueles tempos”. “É o bairro mais bonito da cidade”, diz, enquanto dois turistas observam com curiosidade o momento inusitado.

 Com o aumento do número de pessoas a movimentarem-se na zona, a freguesia de São Vicente começou a ganhar nova vida também à noite. Quem lá mora diz que, pelo menos uma vez por semana, ouve um grupo de estrangeiros a cantarolar a horas tardias e que os novos espaços nocturnos, abertos nos últimos anos na Rua Damasceno Monteiro e na Rua da Voz do Operário, estão sempre lotados. “É rara a noite em que o Damas não esteja cheio, de estrangeiros principalmente”, diz Sérgio Tavares, 35 anos, vendedor de livros na Rua Voz do Operário. Quem dispensa a ajuda do eléctrico 28 na subida de um dos mais movimentados arruamentos do bairro, por vezes pára no “bistrô” Vicente Lisboa, onde são confeccionados petiscos no momento, crumpets e galletes de trigo sarraceno, típicas do Norte de França, e pratos vegan.

“Acontecem situações muito engraçadas. Há pouco tempo, um homem vinha de mota, parou, e sentou-se nos nossos bancos a descansar. Depois, acabou por beber um sumo”, conta a proprietária do espaço, que recebe O Corvo ofegante. Só trabalha neste ramo de actividade há cinco meses e meio, o tempo de vida do Vicente Lisboa. É artista plástica e a ideia inicial era fazer uma galeria de arte, mas rapidamente percebeu que a gastronomia atraia mais gente. “Comecei por colocar quadros e servir alguns petiscos, mas as pessoas começaram a pedir-me para direccionar mais o negócio para o ramo alimentar, e foi crescendo”, conta. Foram os próprios clientes que lhe sugeriram fazer pastéis de nata e assim surgiu uma receita original do doce típico de Belém, a que chamou pastéis de nata de São Vicente. O problema de trabalhar neste arruamento, diz, porém, “é que não tem comércio nenhum, nem moradores”. “Os meus clientes são clientes de três dias, são muito voláteis”, conta.

 É também graças aos visitantes de Lisboa que o Atelier Porta 16 e uma loja de artigos reciclados, na Rua de São Vicente, mantêm as portas abertas. Ana Salomé, 31 anos, faz artesanato há sete anos, num espaço que, ao primeiro olhar, não se entende logo que é uma loja. “Muitos espreitam e vêem-me a trabalhar e não entram, é engraçado”, conta, entre risos. A artesã, também moradora no bairro, diz que, apesar do panorama ser positivo – com o aumento do turismo durante todo o ano, “e não só no Verão”, e o facto de 90% dos seus clientes serem estrangeiros -, teme viver numa zona “transformada em casas de Airbnb”. “Sinto que está tudo mais requalificado e arranjado, o que é óptimo, mas tenho sempre aquela sensação de insegurança de que o senhorio nos pode mandar embora”, receia.

 No mesmo arruamento, André Chaby, 25 anos, trabalha há poucos meses na loja de artigos reciclados – malas, blocos de notas, carteiras, canetas, entre outros -, nascida naquela parte da cidade há dois anos, e deseja mudar a forma de pensar de quem vive e frequenta a zona. “Queremos incentivar as pessoas a fazer reciclagem e, por isso, a quem trouxer materiais de casa para reciclar oferecemos um desconto nas compras. Para os turistas, principalmente dos países do Norte da Europa, isto não é nada novo. Só em Portugal é que ninguém liga à reciclagem”, critica, explicando ainda que vários moradores têm aderido ao desafio de dar um novo uso a produtos antigos.

 Ao descer em direcção ao Panteão Nacional, há menos sinais de comércio. Na Rua da Verónica, Anabela Santos, 55 anos, costureira, é das poucas que ainda lá trabalha. “Os prédios estão mais arranjados, mas têm havido muitos despejos. Nesta esquina, saíram todos, já só mora uma pessoa”, diz, enquanto aponta para um imóvel requalificado, enumerando quem lá vivia. Nascida na Graça, e a trabalhar na zona há quatro décadas, diz que a vida de bairro se perdeu. “O conceito de vizinhos já não existe. No Beco da Verónica vê-se pessoas diferentes a sair e a entrar todos os dias”, conta.

 Um pouco mais acima, Tehssin Khan, 35 anos, lamenta a perda de características peculiares do edificado. “Há muito movimento, abriram muitos hostels, o que é bom para a economia do país. É óptimo os edifícios serem recuperados, mas Lisboa é bonita sendo antiga, há casas que depois de renovadas perderam a beleza”, diz, enquanto abre a loja de venda exclusiva de extintores. “Aqui já só vendemos para os hostels, é bom para o negócio, mas é um sinal de que algo está a mudar”, acrescenta.

 No Jardim Botto Machado, crianças a correr em várias direcções sobre o olhar atento da mãe, jovens casais e um grupo de idosos a jogar às cartas, compõe o quadro de uma freguesia multigeracional em mudança. Daqui, observa-se o Campo de Santa Clara, onde a Feira da Ladra, a mais antiga de Lisboa, continua a realizar-se todas as terças-feiras e sábados de manhã, e o Panteão Nacional, onde jazem figuras incontornáveis da cultura portuguesa. O silêncio que impera em torno do monumento só é interrompido por um motorista de um tuk-tuk, a subir o Campo de Santa Clara. “Aqui ao lado é o Panteão Nacional, depois, na descida, podem ver”, sugere aos passageiros. A meio da tarde, começam a ouvir-se burburinhos em alemão, francês e italiano, enquanto a vida de bairro prossegue. O som do bater da porta de um prédio antigo, que faz estremecer os lençóis brancos pendurados à janela, denuncia que naquela fronteira da freguesia, quase a chegar à Alfama (Santa Maria Maior), ainda vive gente.

 A presidente da Junta de Freguesia de São Vicente, Natalina Moura (PS), em declarações a O Corvo, diz que o aumento de unidades de Alojamento Local (AL) sem regulação na freguesia, numa fase inicial, prejudicou as relações entre os moradores e os visitantes, mas o problema já está a ser resolvido. “A convivência nem sempre é a melhor, temos queixas constantes, essencialmente por causa do barulho, e até já tivemos de intervir. Já nos deslocamos a um AL para resolver um problema de ruído à noite. Felizmente, faço parte das freguesias que se juntaram para regulamentar o AL e acredito que deixará de ser um problema”, diz, referindo-se à intenção da CML em não aceitar mais unidades de AL na zona histórica de Lisboa.

Natalina Moura reconhece que a perda de habitantes, de 15 mil e 500 eleitores, em 2011, para 13 mil, é “uma descida significativa”, sem deixar, porém, de elogiar os benefícios do crescimento do turismo. “Não sou contra o aumento do turismo, traz uma economia circular que faz muita falta, não pode é haver Alojamento Local ‘prédio sim, prédio sim’ e esperemos que a lei de bases do arrendamento venha colmatar esta situação. Perdemos muitos habitantes, mas não saíram todos pelas mesmas razões”, explica, informando ainda que já foram entregues dez casas municipais, localizadas na freguesia de São Vicente, no âmbito do programa “Habitar o Centro Histórico”.

A autarca socialista reconhece ainda que o tráfego automóvel é um dos problemas da freguesia e avança os próximos projectos. “Há ruas onde não entra nenhum carro de remoção de lixo, nem nenhuma ambulância. Uma das nossas prioridades é a abertura da Rua General Justiniano Padrel, de forma a escoar o trânsito, todas as ruas transversais vão ganhar e vai poder fazer-se uma ligação directa à Mouzinho de Albuquerque”, diz. Quanto ao aumento do lixo, sentido por toda a cidade, Natalina Moura atribui a causa do problema à falta de civismo. “Esta freguesia já foi considerada das mais limpas da cidade, mas, neste momento, há uma grande falta de civismo. São os nossos funcionários, que não têm a função da recolha do lixo, que, por vezes, o fazem, se identificarmos uma situação que põe em risco a saúde pública”, explica.

 Relativamente à concentração de espaços comerciais de São Vicente na zona da Graça, Natalina Moura diz que “é normal”, muito devido à geografia da freguesia. “A Graça é mais plana e as outras zonas são mais inclinadas, é normal que abram ali mais negócios. O comércio está a atravessar uma boa fase, todos os dias temos uma surpresa e o que abre não fecha, que é um sinal que há movimentação para o efeito”, diz.

Quanto à polémica da construção de um edifício que poderá vir a colocar em risco a integridade da actual vista panorâmica a partir do Miradouro da Senhora do Monte, noticiada esta semana por O Corvo, a presidente da Junta de Freguesia diz que já entregou à Assembleia Municipal de Lisboa, na tarde desta quarta-feira, 12 de Setembro, a petição contra esta obra. “É um assunto que tem de ser tratado com pinças e vai ser analisado com muito cuidado. A errar também se aprende e, se há um engano, vai ser corrigido. Não vai ficar esquecido, ainda há muita coisa que pode ser modificada”, garante.

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