Graça dividida entre a manutenção da tradicional vida de
bairro e a dinâmica trazida pelo turismo
Sofia Cristino
Texto
14 Setembro, 2018
A Graça está diferente, com prédios e espaço público
renovados e mais unidades de alojamento local. Uma mudança com consequências na
vida dos moradores mais antigos. Muitos foram despejados e quem lá está teme
idêntico destino. “Tenho sempre aquela sensação de insegurança de que o
senhorio nos pode mandar embora”, receia uma habitante, embora reconheça que
“está tudo mais arranjado”. Há também espaços comerciais a surgirem,
acompanhando novas tendências de consumo, ao lado das lojas mais antigas. “Este
contraste dá outro charme à freguesia, torna-a mais sofisticada”, diz uma
residente brasileira. Se há moradores a queixarem-se do ruído dos turistas que
passeiam pelo bairro à noite, outros elogiam a vontade dos novos vizinhos
estrangeiros em relacionarem-se com os portugueses. “São muito simpáticos,
querem-nos cativar”, conta uma moradora idosa. A sujidade das ruas continua a
aumentar, mas a presidente da Junta de Freguesia atribui o problema à falta de
civismo.
De cinco em cinco minutos, o cenário repete-se. Logo pela
manhã, dezenas de tuk-tuks, por vezes espaçados, outras numa fila que se
estende pela Calçada da Graça, transportam turistas ansiosos por chegarem à
colina mais alta da cidade. É no Miradouro da Graça, de onde se vê Lisboa inteira,
que quem visita a capital inicia o roteiro turístico, posicionando-se para
tirar uma fotografia ou tomar um café na esplanada ao som de música ao vivo.
Quem lá vive há mais anos recorda-se do miradouro como um lugar tranquilo, sem
música e com meia dúzia de cadeiras, mas hoje já não é assim. “Durante o dia,
vemos mais turistas, principalmente franceses, espanhóis, alemães e italianos.
Muitos perguntam-nos se conhecemos casas para alugar ou se esta zona é calma
para viver. À noite, vê-se mais portugueses e moradores do bairro”, conta
Afonso Rodrigues, 26 anos, funcionário do café situado nesta varanda de Lisboa.
À medida que caminhamos em direcção ao Largo da Graça, vão
ficando para trás conversas cruzadas em diferentes idiomas, uma cantoria de um
grupo de jovens espanhóis e a letra da música Imagine, de John Lennon, tocada
por um artista de rua. Depois de se atravessar uma antiga zona de
estacionamento, que recentemente deu lugar a um coreto e bancos de jardim,
depois da operação de requalificação do espaço público feita no âmbito do
programa municipal Uma Praça em Cada Bairro, percebe-se que a utilização do
lugar mudou. O estacionamento em segunda fila foi extinto e as pessoas movem-se
a ritmos diferentes. Apesar da insatisfação sentida por alguns moradores, os
antigos dizem conviver saudavelmente com os recém-chegados, de várias partes do
mundo.
“No meu prédio, saíram muitos habitantes, mas os novos,
maioritariamente estrangeiros, são muito simpáticos. Perguntam-me se preciso de
alguma coisa, querem-nos cativar”, conta Anabela Lopes, 68 anos. Vive na
Calçada dos Barbadinhos com uma amiga, Aurora dos Prazeres, 92 anos, que
partilha o mesmo sentimento. “A convivência de antigamente, entre os vizinhos,
diminuiu um bocadinho, mas ainda há vida de bairro. Sou uma privilegiada
porque, de manhã, ainda abro a janela e tenho uma vista maravilhosa do rio
Tejo”, diz Aurora.
Uma das novas
moradoras da freguesia de São Vicente, Juliana Parro, 32 anos, veio da
Fortaleza, no Brasil, e não quis mais regressar às origens. “No Brasil, estava
sempre assustada, aqui senti-me segura, apesar de já me ter sentido mais. Já se
vê carteiristas a correrem atrás dos turistas”, diz. A vendedora de crepes na
Maria Limão, um espaço aberto há um ano nesta parte da cidade, vê com bons
olhos a transformação do bairro histórico. “Em 2017, senti uma mudança muito
brusca. De repente, a cidade estava cheia de tuk-tuks e hostels. Mas gosto
deste ambiente, em que a parte mais antiga convive com a moderna. Este
contraste dá outro charme à freguesia, torna-a mais sofisticada”, constata a
moradora que, este ano, já participou nas Marchas Populares de Santo António.
“Há uma diversidade cultural muito grande, a conviver com uma população mais
idosa, mas ambas relacionam-se bem. Aparecem idosos na creparia a quererem
saber o que é a modernice do brunch e, depois, comem”, conta, entre risos.
Ao chegar ao quiosque mais antigo da freguesia de São
Vicente, no Largo da Graça, onde Maria do Carmo Gonçalves, 59 anos, vende
jornais e revistas há 35 anos, os comentários sobre as transformações desta
parte da cidade mudam de tom. “Desapareceu muita gente do bairro e vão sair
mais, porque há muitos contratos de arrendamento a chegar ao fim. Isto é um
pandemónio todos os dias, com o eléctrico 28 sempre cheio. Há prédios que têm
mais fracções em Airbnb do que moradores antigos”, critica Casimiro Abreu, a viver
na Graça desde 1975, enquanto compra o jornal habitual. Maria do Carmo comenta
as novidades com o cliente, enquanto que outros, em passo mais acelerado, pegam
no jornal e deixam as moedas na banca dos jornais, sem falarem com a vendedora.
“É normal, já nos
conhecemos todos”, comenta Maria Silva, 77 anos, que também está inconformada.
“Quem a viu e quem a vê, a Graça está uma desgraça”, brinca com as palavras. E
explica: “Alargaram muito os passeios e, por vezes, as ambulâncias têm
dificuldade em passar nas ruas, há muito trânsito. Quando começaram a aparecer
os tuk-tuks, colocávamos panos nas janelas para abafar o som, nem dormíamos. Os
turistas ainda fazem muito barulho à noite”. Apesar disso, admite, existem
coisas positivas. “Ainda há bom convívio, pelo menos”, elogia. Maria do Carmo
também exalta as boas relações entre os “poucos moradores” que ainda vivem na
freguesia e a requalificação do Largo da Graça. “Trouxe mais gente, reúnem-se
muitos aqui à tarde”, diz. E O Corvo constatou-o quando lá esteve. No centro da
praça, a meio da tarde, quatro idosos sentados em círculo ouvem uma história
contada por Elisa Dias, no âmbito do projecto “Na rua com histórias – Uma
biblioteca para todos”.
À medida que a
contadora de histórias vai lendo, e gesticulando com as mãos nos momentos de
maior suspense, os ouvintes vão fazendo observações. “Pois, no meu tempo, era
mesmo assim”, ouve-se. O regresso às memórias anima-os e fá-los quererem voltar
aquele encontro. “Já fazia falta uma iniciativa deste género, é uma forma de
nos distrairmos, mas o que gostamos mais é da companhia”, diz Firmina Maria.
Joaquim Correia, 85 anos, teve uma frutaria durante muitos anos na Graça e, ao
ouvir as histórias, explica, “atenua a saudade daqueles tempos”. “É o bairro
mais bonito da cidade”, diz, enquanto dois turistas observam com curiosidade o
momento inusitado.
Com o aumento do
número de pessoas a movimentarem-se na zona, a freguesia de São Vicente começou
a ganhar nova vida também à noite. Quem lá mora diz que, pelo menos uma vez por
semana, ouve um grupo de estrangeiros a cantarolar a horas tardias e que os
novos espaços nocturnos, abertos nos últimos anos na Rua Damasceno Monteiro e
na Rua da Voz do Operário, estão sempre lotados. “É rara a noite em que o Damas
não esteja cheio, de estrangeiros principalmente”, diz Sérgio Tavares, 35 anos,
vendedor de livros na Rua Voz do Operário. Quem dispensa a ajuda do eléctrico
28 na subida de um dos mais movimentados arruamentos do bairro, por vezes pára
no “bistrô” Vicente Lisboa, onde são confeccionados petiscos no momento,
crumpets e galletes de trigo sarraceno, típicas do Norte de França, e pratos
vegan.
“Acontecem situações muito engraçadas. Há pouco tempo, um
homem vinha de mota, parou, e sentou-se nos nossos bancos a descansar. Depois,
acabou por beber um sumo”, conta a proprietária do espaço, que recebe O Corvo
ofegante. Só trabalha neste ramo de actividade há cinco meses e meio, o tempo
de vida do Vicente Lisboa. É artista plástica e a ideia inicial era fazer uma galeria
de arte, mas rapidamente percebeu que a gastronomia atraia mais gente. “Comecei
por colocar quadros e servir alguns petiscos, mas as pessoas começaram a
pedir-me para direccionar mais o negócio para o ramo alimentar, e foi
crescendo”, conta. Foram os próprios clientes que lhe sugeriram fazer pastéis
de nata e assim surgiu uma receita original do doce típico de Belém, a que
chamou pastéis de nata de São Vicente. O problema de trabalhar neste
arruamento, diz, porém, “é que não tem comércio nenhum, nem moradores”. “Os
meus clientes são clientes de três dias, são muito voláteis”, conta.
É também graças aos
visitantes de Lisboa que o Atelier Porta 16 e uma loja de artigos reciclados,
na Rua de São Vicente, mantêm as portas abertas. Ana Salomé, 31 anos, faz
artesanato há sete anos, num espaço que, ao primeiro olhar, não se entende logo
que é uma loja. “Muitos espreitam e vêem-me a trabalhar e não entram, é
engraçado”, conta, entre risos. A artesã, também moradora no bairro, diz que,
apesar do panorama ser positivo – com o aumento do turismo durante todo o ano,
“e não só no Verão”, e o facto de 90% dos seus clientes serem estrangeiros -,
teme viver numa zona “transformada em casas de Airbnb”. “Sinto que está tudo
mais requalificado e arranjado, o que é óptimo, mas tenho sempre aquela
sensação de insegurança de que o senhorio nos pode mandar embora”, receia.
No mesmo arruamento,
André Chaby, 25 anos, trabalha há poucos meses na loja de artigos reciclados –
malas, blocos de notas, carteiras, canetas, entre outros -, nascida naquela
parte da cidade há dois anos, e deseja mudar a forma de pensar de quem vive e
frequenta a zona. “Queremos incentivar as pessoas a fazer reciclagem e, por
isso, a quem trouxer materiais de casa para reciclar oferecemos um desconto nas
compras. Para os turistas, principalmente dos países do Norte da Europa, isto
não é nada novo. Só em Portugal é que ninguém liga à reciclagem”, critica,
explicando ainda que vários moradores têm aderido ao desafio de dar um novo uso
a produtos antigos.
Ao descer em direcção
ao Panteão Nacional, há menos sinais de comércio. Na Rua da Verónica, Anabela
Santos, 55 anos, costureira, é das poucas que ainda lá trabalha. “Os prédios
estão mais arranjados, mas têm havido muitos despejos. Nesta esquina, saíram
todos, já só mora uma pessoa”, diz, enquanto aponta para um imóvel requalificado,
enumerando quem lá vivia. Nascida na Graça, e a trabalhar na zona há quatro
décadas, diz que a vida de bairro se perdeu. “O conceito de vizinhos já não
existe. No Beco da Verónica vê-se pessoas diferentes a sair e a entrar todos os
dias”, conta.
Um pouco mais acima,
Tehssin Khan, 35 anos, lamenta a perda de características peculiares do
edificado. “Há muito movimento, abriram muitos hostels, o que é bom para a
economia do país. É óptimo os edifícios serem recuperados, mas Lisboa é bonita
sendo antiga, há casas que depois de renovadas perderam a beleza”, diz,
enquanto abre a loja de venda exclusiva de extintores. “Aqui já só vendemos
para os hostels, é bom para o negócio, mas é um sinal de que algo está a
mudar”, acrescenta.
No Jardim Botto Machado,
crianças a correr em várias direcções sobre o olhar atento da mãe, jovens
casais e um grupo de idosos a jogar às cartas, compõe o quadro de uma freguesia
multigeracional em mudança. Daqui, observa-se o Campo de Santa Clara, onde a
Feira da Ladra, a mais antiga de Lisboa, continua a realizar-se todas as
terças-feiras e sábados de manhã, e o Panteão Nacional, onde jazem figuras
incontornáveis da cultura portuguesa. O silêncio que impera em torno do
monumento só é interrompido por um motorista de um tuk-tuk, a subir o Campo de
Santa Clara. “Aqui ao lado é o Panteão Nacional, depois, na descida, podem
ver”, sugere aos passageiros. A meio da tarde, começam a ouvir-se burburinhos
em alemão, francês e italiano, enquanto a vida de bairro prossegue. O som do bater
da porta de um prédio antigo, que faz estremecer os lençóis brancos pendurados
à janela, denuncia que naquela fronteira da freguesia, quase a chegar à Alfama
(Santa Maria Maior), ainda vive gente.
A presidente da Junta
de Freguesia de São Vicente, Natalina Moura (PS), em declarações a O Corvo, diz
que o aumento de unidades de Alojamento Local (AL) sem regulação na freguesia,
numa fase inicial, prejudicou as relações entre os moradores e os visitantes,
mas o problema já está a ser resolvido. “A convivência nem sempre é a melhor,
temos queixas constantes, essencialmente por causa do barulho, e até já tivemos
de intervir. Já nos deslocamos a um AL para resolver um problema de ruído à
noite. Felizmente, faço parte das freguesias que se juntaram para regulamentar
o AL e acredito que deixará de ser um problema”, diz, referindo-se à intenção
da CML em não aceitar mais unidades de AL na zona histórica de Lisboa.
Natalina Moura reconhece que a perda de habitantes, de 15
mil e 500 eleitores, em 2011, para 13 mil, é “uma descida significativa”, sem
deixar, porém, de elogiar os benefícios do crescimento do turismo. “Não sou
contra o aumento do turismo, traz uma economia circular que faz muita falta,
não pode é haver Alojamento Local ‘prédio sim, prédio sim’ e esperemos que a
lei de bases do arrendamento venha colmatar esta situação. Perdemos muitos
habitantes, mas não saíram todos pelas mesmas razões”, explica, informando
ainda que já foram entregues dez casas municipais, localizadas na freguesia de
São Vicente, no âmbito do programa “Habitar o Centro Histórico”.
A autarca socialista reconhece ainda que o tráfego automóvel
é um dos problemas da freguesia e avança os próximos projectos. “Há ruas onde
não entra nenhum carro de remoção de lixo, nem nenhuma ambulância. Uma das
nossas prioridades é a abertura da Rua General Justiniano Padrel, de forma a
escoar o trânsito, todas as ruas transversais vão ganhar e vai poder fazer-se
uma ligação directa à Mouzinho de Albuquerque”, diz. Quanto ao aumento do lixo,
sentido por toda a cidade, Natalina Moura atribui a causa do problema à falta
de civismo. “Esta freguesia já foi considerada das mais limpas da cidade, mas,
neste momento, há uma grande falta de civismo. São os nossos funcionários, que
não têm a função da recolha do lixo, que, por vezes, o fazem, se identificarmos
uma situação que põe em risco a saúde pública”, explica.
Relativamente à
concentração de espaços comerciais de São Vicente na zona da Graça, Natalina
Moura diz que “é normal”, muito devido à geografia da freguesia. “A Graça é
mais plana e as outras zonas são mais inclinadas, é normal que abram ali mais
negócios. O comércio está a atravessar uma boa fase, todos os dias temos uma
surpresa e o que abre não fecha, que é um sinal que há movimentação para o
efeito”, diz.
Quanto à polémica da construção de um edifício que poderá
vir a colocar em risco a integridade da actual vista panorâmica a partir do Miradouro
da Senhora do Monte, noticiada esta semana por O Corvo, a presidente da Junta
de Freguesia diz que já entregou à Assembleia Municipal de Lisboa, na tarde
desta quarta-feira, 12 de Setembro, a petição contra esta obra. “É um assunto
que tem de ser tratado com pinças e vai ser analisado com muito cuidado. A
errar também se aprende e, se há um engano, vai ser corrigido. Não vai ficar
esquecido, ainda há muita coisa que pode ser modificada”, garante.
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