Em Lisboa, turistas ouviram residentes dizer: “A cidade é
nossa!”
Centenas de pessoas vindas dos bairros históricos e das
periferias desfilaram na capital pelo o "direito à habitação" e o
"fim da especulação".
ANA DIAS CORDEIRO (texto) e NUNO FERREIRA SANTOS
(fotografia) 22 de Setembro de 2018, 21:56
O cortejo passa ao lado dos turistas sentados nas esplanadas
do centro de Lisboa, e da fila de tuk-tuks a caminho do Rossio, onde na fachada
do Teatro D. Maria II, um enorme cartaz sentencia “Há lugar para todos”. As
palavras ali colocadas para uma outra manifestação, contra o racismo, serviram
este sábado para dar voz ao direito à habitação e contra a especulação
imobiliária. “Há lugar para todos?” A pergunta ecoou várias vezes no microfone
da carrinha aberta que liderava o cortejo, antes da resposta: “Não! Só para
quem tem privilégios.”
Centenas de pessoas desceram a Av. Almirante Reis, passaram
pelo Martim Moniz e Rossio, seguindo depois em direcção ao Terreiro do Paço até
ao Cais do Sodré. A manifestação juntou dezenas de associações e foi uma das
iniciativas que entre os dias 20 e 26 juntam em Portugal associações de
Espanha, França e outros países europeus.
“Esta mensagem está
em inglês para os turistas perceberem que talvez haja outras alternativas ao
alojamento local” e que essa opção traz consequências, diz Marta Caeiro, 30
anos, que esperaria encontrar nas pessoas do seu bairro uma comunidade, uma
rede social de apoio. Mas o que encontra no seu prédio e na sua rua são desconhecidos
que ficam uma semana e saem para dar o lugar a outros. “Partilho a casa com
amigas. Só assim é possível viver em Lisboa, mas sempre com medo de ser
despejada ou confrontada com um aumento da renda”, diz.
Quero Morar Aqui: clique aqui para ver a reportagem
interactiva sobre Paula Magalhães e Carla Pinheiro, duas mulheres que a crise
da habitação transformou em activistas
“É um fenómeno global”, relativiza Chris, 52 anos,
australiano de passagem. Aconteceu no centro de Sydney, acontece em Londres,
expõe. Em Nova Iorque, já se estão a impor limites ao alojamento local,
acrescenta a mulher Emma. “Lisboa não foge à regra. Está a acontecer como
aconteceu em Barcelona”, diz Chris para quem o alojamento local é uma escolha
por ser “muito mais barato do que o hotel”.
Também aconteceu na Normandia, explica um casal francês que
se apresenta como senhor e senhora Hamis. “Muitas pessoas enfrentaram
dificuldades, porque os ingleses e outros estrangeiros vieram instalar-se e
compraram casas na Normandia. Os preços aumentaram muito. Entendemos este
protesto [em Lisboa] e admiramos a forma tranquila como decorre”, acrescenta o
senhor Hamis sobre o que vê.
Há música ao vivo e pessoas a quem o calor só torna as suas
palavras de ordem soarem mais intensas e urgentes. Vêem-se cartazes com
mensagens em várias línguas com “Lisboa a saque” ou “eu despejo, tu despejas,
ele despeja” junto à imagem da ex-ministra e líder do CDS-PP Assunção Cristas.
Repetem-se palavras de ordem: “A cidade é nossa”; “O bairro unido jamais será
vencido”, numa evocação da revolução do 25 de Abril, antes de se ouvir, pelos
altifalantes, que “é incrível, mas é verdade, estamos aqui para reconquistarmos
os nossos direitos”.
Frente ao Café Nicola, do outro lado do que antes era a
Pastelaria Suíça, sobe à carrinha (transformada em palanque) Ricardina e Maria,
do bairro da Torre. Pretendem juntar a voz aos residentes dos bairros pobres da
periferia, “onde não há acesso a nada”, ao protesto de quem vê o seu direito a
habitar em Lisboa ameaçado pelo alojamento local para turistas ou a compra de
casas para venda, com margens de lucro e os preços inflacionados pela
especulação.
“Vivemos fora do mundo, sem acesso a água, sem acesso a
nada. Unidos venceremos e a luta vai continuar. Este é o começo da luta pela
habitação digna”, diz Ricardina que arranca aplausos de pessoas jovens e outras
de muita idade, com um ar frágil. Não desfilam mas marcam presença,
permanecendo nos bancos de rua ou em cadeiras de rodas, num protesto que também
lhes pertence.
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