As cidades capturadas
Um dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará
as portas, o Monte de São Michel soçobrará, Roma sucumbirá. E Florença talvez
já tenha colapsado sem que ainda não se tenha dado por isso.
Maria João Avillez
13/9/2018
Um dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará
as portas, o Monte de São Michel soçobrará, Roma sucumbirá. E Florença talvez
já tenha colapsado sem que ainda não se tenha dado por isso.
1. Ainda a manhã ia cedo e já não sabia onde pôr os pés, as
multidões ululavam em todas as direcções, o calor era selvático. Tudo exigia um
combate corpo a corpo com tudo. A surpresa foi devastadora: aquilo era
Florença? Era. Capturada.
E agora? Ficar ou fugir? Insistir ou desistir? Aguentar ou
chorar sobre tanto leite derramado
2. Florença capturada. Erro meu que não previ a dimensão do
flagelo, partindo na primavera para lá, sozinha e com admirável ligeireza.
Flagelo e cerco: por todo o lado, gente e mais gente,
turistas arrastando malas ruidosamente pelo empedrado do chão, turistas de
muletas, turistas em cadeira de rodas, carabinieri fumando, carteiristas,
angariadores de restaurantes, sem abrigos, devoradores de gelados, famílias com
crianças de três, quatro anos, pela mão, bebés (já desidratados?) entalados em
mochilas presas às costas cansadas dos progenitores, alunos em fila saindo de
museus, italianos falando alto, fala-se sempre alto em Itália. Bicicletas, como
gatos silenciosos, deslizavam-me felinas pela perna que não cabia nos acanhados
passeios, buzinas de toda a sorte de veículos azoinavam espíritos e mentes,
filas de “follow-me” tudo entupiam, seguindo a bandeirola de um guia
esbaforidamente suado; dezenas de barracas oferecendo assustadora quinquilharia
e duvidoso artesanato, logo comprados pelas hordas do ocupante, tudo enfim
compunha um quadro desoladoramente feio.
E era isto de sol a sol.
Tornando operacionalmente impossível o júbilo do regresso a
uma das mais belas cidades do mundo. O ver ou rever; a descoberta, a pausa
solitária entre duas telas, dois altares, dois frescos, duas esquinas.
3. Tornando sobretudo impossível o que está para “lá”. O
mais recôndito e mais escondido do génio. O que nos reclama um silêncio
recolhido para se deixar desvendar. Para se dar a ver ao olhar mais deslumbradamente
atento ou à observação mais rendida e que é o insondável mistério da criação. O
dom da beleza. O toque da graça, o sopro do transcendente, o sorriso de Deus.
Tudo isso Florença respira, de tudo isso Florença nos fala,
tudo isso ela nos oferece. (Ou oferecia?)
4. Em plena catástrofe lembrei-me de um texto que lera há
tempos no suplemento “Babelia” (El Pais) onde se dava conta de ensaios recentes
de antropólogos, filósofos, arquitectos, sobre “modelos de cidade” e
concretamente sobre o lugar do espaço público nas grandes urbes. Esse “lugar
que reflecte a convivência e o conflito, onde se faz história e onde às vezes
se planifica, outras se improvisa” (boa definição).
Conhecemos cidades hoje de tal modo feridas de morte pela
indústria turística que um dos autores destes ensaios ousava concordar com o
economista Alfredo Acosta na sua comparação entre colonialismo e turismo: “tal
como o colonialismo, o turismo produz dependência económica ao centrar toda a
actividade numa única fonte de receita, gera riqueza rápida e pobreza a longo
prazo, não calcula o valor do que destrói, cria “zonas de excepção” jurídica e
urbana e acaba com a diversidade social.” Comparação deslocada? Relida agora e
aqui, talvez. Vivida porém há três meses “in loco” e ao vivo em Florença e
depois em Roma, quem sabe se não teria assinado por baixo uma comparação com a
qual discordo? Seja como for estamos a anos luz de poder compreender – na pele
da nossa vida quotidiana – a dimensão e a natureza transtornante desta
massificação turística. Basta pensar – e eis um mero exemplo – no que será a
tentativa normal de um cidadão florentino para conhecer ou rever os Uffizzi.
Não consegue: estão sob ocupação estrangeira. Se “leigamente” me surge como
quase impossível (e quem sabe se a realidade não virá provar um dia ser mesmo
impossível) solucionar, debelar ou sequer domesticar esta cavalgada selvagem,
não deixo de estranhar que a questão não seja objecto de muito maior
ponderação. E de uma aflição que ultrapasse medidas pontuais ou frágeis panaceias.
Como parece. Qualquer dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará
as portas, o Monte de São Michel soçobrará de vez na subida da maré turística,
Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha sucumbido sem que ainda não se tenha
dado totalmente por isso.
5. Por isso um dia agarrei nas pernas e parti à procura de
“outra” Florença. Menos sitiada e por isso mais amável. Encontrei-a pela mão do
meu generoso (e sábio!) amigo Anisio Franco, conservador do Museu de Arte
Antiga. Antes de partir pedira-lhe um papelinho com lugares escondidos dos
predadores.
Anisio conhece-os e eu fui. Fui pela Capela Brancacci, no
convento de Santa Maria del Carmine, do outro lado do Arno. Fica numa praça
branca, havia pouca gente e corria uma brisa. Dentro do convento, na capela
Brancacci, doze telas de Masaccio, Masolino e Filippino Lippi oferecem-nos o
inicio do Renascimento na pintura. Glorioso e inesquecível. Se eu pudesse não
teria saído de lá.
Fui por outra pequena capela, na Igreja de Santa Felicita,
logo após passar a ponte Vecchio. Multidões na travessia da ponte, poucos
mortais diante da capela Barbadori – Capponi onde é preciso pôr uma moeda para
ter acesso ao paraíso: num relâmpago celestial, jorra diante dos nossos olhos
incrédulos, o relevo admirável da pintura de Pontorrno (1494-1557) um génio
maneirista da escola de Florença.
Fui pelos Jardins dei Boboli e nunca será de mais louvar o
doce, delicado efeito de um jardim sobre alguém com os olhos turvados pelo
deslumbramento.
Procurei a desoras a Santíssima Anunciata e a Santa Crocce e
subi até San Miniato al Monte. Havia autocarros e filas de gente, mas fiquei
com os ciprestes do caminho, a luz fulgurante do princípio da tarde, a geometria
clara da quase inteira Florença que daquela colina se pode alcançar. E, claro,
com a capela do cardeal português D. Jaime (1433-1459), entrevista na penumbra
deserta do convento beneditino de San Miniato. Jaime, de extraordinária e
brevíssima vida (morreu em Florença aos vinte a cinco anos), era neto de D.
João I e filho de D. Pedro, o mais viajado dos príncipes da ínclita geração.
Tinha, em suma, a quem sair brilhante.
6. E a verdade é que me valeram também os próprios
florentinos. O riso aberto e o verbo sonoro quando finalmente as multidões
recolhiam aos seus dormitórios e a cidade se humanizava, tornando possível a
circulação da vida. Era quando a noite se deixava cair na doçura quente da
primavera e começava a festa, a deles: nas ruas, nos passeios, nos bairros onde
os moradores se entretinham ao relento com o jogo da bisca ou da bola; nos
restaurantes onde a pizza e a pasta se saboreavam sempre em voz audível; nos
terrraços, onde se discutiam as coisas da vida e o vinho escorria sem pressa (e
felizmente também com fartura).
Ah Itália, “segunda pátria de toda a gente” na mais feliz
das expressões que conheço para definir este país tão, tão abençoado pelos
deuses (mesmo que agora pareça que eles se distraíram a tomar conta dele.)
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