HABITAÇÃO
Procura-se: cidade com casas
acessíveis e turismo equilibrado
Invasão de turistas está a criar desafios na
oferta de habitação nas grandes cidades
As dificuldades em alugar casas em
Lisboa e Porto têm gerado diversas reacções, que envolvem também o alojamento
local. Ponto de acordo é o de que algo tem ser feito para evitar cidades com
centros esvaziados de habitantes permanentes.
ROSA SOARES e LUÍS VILLALOBOS 29 de Setembro de 2017, 7:15
Tema crucial nas grandes cidades, a habitação é alvo de
constantes debates e embates, com os respectivos fluxos sociais e financeiros
(ou financeiros e sociais). Na actual conjuntura, e olhando para as duas
grandes urbes, Lisboa e Porto, o enfoque tem estado na questão da oferta de
habitação para residentes permanentes e para turistas, com destaque para o
grande crescimento do alojamento local (AL), tendo como pano de fundo o elevado
preço das rendas. O tema, complexo, requer pensar no caminho percorrido até
aqui, com uma reduzida oferta de imóveis para arrendamento tradicional, rendas
elevadas, e crescimento da oferta do alojamento para turistas.
Em grandes números, é possível ver que o índice de preços da
habitação, calculado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) aumento 24,8%
desde o segundo trimestre de 2013, data em que atingiu o mínimo da série,
iniciada em 2009. Entre 1991 e 2011, a população residente no centro histórico
do Porto caiu para mais de metade (em 2011 eram 9334 indivíduos) e a do centro
histórico de Lisboa 34% (para cerca de 47.000). O Índice de Rendas
Residenciais, da Confidencial Imobiliário, mostra, nos mesmos quatro anos, um
aumento de 34 % nos preços em Lisboa e de apenas 3% no Porto.
O turismo deu ainda mais visibilidade às questões da
habitação
Sónia Alves, especialista em ambiente urbano e investigadora
de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de
Lisboa, entende que as razões do desequilíbrio actual entre os dois tipos de
alojamento vêm de longe. “As políticas públicas que foram implementadas ao
longo das últimas décadas contribuíram para o desequilíbrio entre a oferta de
habitação para arrendamento/compra e de ocupação permanente/temporária”, destacando
que as decisões políticas, ao longo de um ciclo de 25 anos, foram no sentido de
apoiar sobretudo os empréstimos bancários para a construção e aquisição de nova
habitação, em vez da reabilitação e do arrendamento.
O resultado, nos dias de hoje, é haver dificuldades em
alugar casas, com destaque para Lisboa, com preços comportáveis para cidadãos
nacionais. Aqui, a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, diz ser
redutor, e até mesmo errado, afirmar que o alojamento local (AL) está na base dos
males do valor das rendas nas cidades. De acordo com a governante, há todo um
outro conjunto de factores ligados a esta questão, como um maior fluxo de
investimentos estrangeiros, e o efeito da alteração da lei das rendas.
Recordando que há poucos anos os centros históricos de Lisboa e Porto estavam
esvaziados e hoje recuperaram um novo fôlego com o turismo – posição partilhada
pela Associação de Hotelaria de Portugal – afirma que a ideia de que o AL está
a fazer subir os valores dos arrendamentos é “demagógica” e “simplista” e que
surge porque este elemento da oferta é “a face mais visível das mudanças” que
ocorreram nas cidades.
Destacando que as zonas de grande pressão do AL estão
circunscritas a duas ou três freguesias em Lisboa e Porto, a governante não
deixa de sublinhar que é preciso “acompanhar a evolução do que vai acontecendo
e ir encontrando mecanismos que permitam a sã convivência entre as várias
realidades”.
Numa altura em que se preparam alterações à lei que regula o
AL, a Associação de Hotelaria de Portugal (AHP), pela voz da sua presidente
executiva, Cristina Siza Vieira, defende que há vários instrumentos que podem
ser usados para estimular os arrendamentos de longa duração e recorda que já
propôs mudanças no AL, como a distinção entre quem aluga apartamentos
esporadicamente ou de forma permanente.
Por parte do executivo, a secretária de Estado do Turismo
recorda a recente criação da nova secretaria de Estado da Habitação, tutelada
pela arquitecta Ana Pinho, e que a entrada de mais imóveis no mercado de
arrendamento é “uma prioridade do Governo”.
No que toca ao AL, o presidente da Confederação Portuguesa
da Construção e do Imobiliário (CPCI), Reis Campos, defende que este e o
arrendamento tradicional “são duas realidades distintas que terão,
necessariamente, de coexistir à semelhança do que sucede na maioria das cidades
europeias”, e que “não são, nem têm de ser alternativas”, e o equilíbrio
depende “da criação de condições que permitam o regular funcionamento do
mercado”.
Sónia Alves, do ICS, destaca o uso de “os instrumentos de
tipo fiscal para apoiar o arrendamento de longa duração e para penalizar a
subutilização e abandono dos imóveis”.
Ao nível do licenciamento urbanístico refere “a cedência de
terrenos ou edifícios para a execução de programas de habitação cujos fogos se
destinem ao arrendamento nos regimes de renda apoiada ou de renda condicionada
e a proibição da instalação de novos hotéis e alojamentos turísticos em áreas
onde estes estão já sobre representados”. E ainda “a obrigatoriedade da
inclusão de habitação para arrendamento em novas áreas de expansão ou de
requalificação habitacional”.
Já o líder da CPCI também destaca a importância da
fiscalidade, que é bem mais elevada no arrendamento permanente face à do
alojamento, e travão à captação de investimento para o arrendamento
tradicional. Mas também alerta para a necessidade de ser apoiar o acesso ao
financiamento de particulares que pretendam realizar obras de reabilitação das
suas casas e, assim, aumentar a oferta de habitações no arrendamento.
Francisco Carballo-Cruz, professor de Economia da
Universidade do Minho, entende que “ dinâmica do mercado irá dificultar a
implementação de políticas públicas que limitem os efeitos indesejados”. Em
termos de quantidade da oferta, entende que “as políticas de restrição da
expansão do alojamento local ou de reserva de oferta para residentes podem
resolver parte do problema, mas irão provocar distorções no mercado” e, neste
domínio, considera que “seria mais adequado expandir localmente a oferta de
habitação de promoção ou com regulação pública para determinados grupos de
residentes e/ou incentivar a descentralização da oferta de alojamento local”.
O objectivo final, esse, deve ser o de procurar uma harmonia
entre residentes de longo e curto prazo, entre locais e visitantes. Com isso,
evitar riscos como o identificado por Sónia Alves, com centros históricos mais
bonitos, “mas possivelmente mais desinteressantes, sem a sua população original
e sem as actividades que lhe davam um cunho distintivo”. Francisco
Carballo-Cruz acredita que o processo de reabilitação de propriedades
continuará nos próximos anos, e que os efeitos positivos “ver-se-ão
contrabalançados por efeitos negativos de carácter económico, nomeadamente o
aumento significativo das rendas, e social, designadamente a expulsão de
residentes, especialmente dos mais vulneráveis”.
O grande desafio, diz Ana Mendes Godinho, é a gestão
inteligente dos territórios, e “desenvolver, cada vez mais, projectos e
infra-estruturas a pensar nas pessoas” que usufruem os territórios. Um exemplo
é da gestão dos transportes públicos, que tem de ser feita tendo em conta
residentes e visitantes e minimizar tensões de carga. Para esta responsável, é
preciso “que o turismo seja incorporado na cidade como uma parte dela própria”,
enquanto factor positivo, nomeadamente com novas centralidades (como o Beato e
a Ajuda, em Lisboa) e menos concentrações.
“Há tensões e desafios que a gestão articulada das várias
necessidades nas cidades coloca”, destaca a responsável da AHP, Cristina Siza
Vieira, afirmando que deve ser encontrado “um modelo que permita monitorizar o
volume de turistas versus capacidade de alojamento vs capacidade de habitação
vs capacidade das infra-estruturas, designadamente de transporte,
aeroportuária, segurança e higiene urbana”. E que a expectativa é a de que
Porto e Lisboa continuem “a ter a capacidade de atracção de turistas,
visitantes e residentes que hoje têm”.
Sem comentários:
Enviar um comentário