Porto … Lisboa …
Um exemplo claro de um “desenvolvimento” aparente e de uma
falsa recuperação económica, através do emprego precário oferecido e
determinado pelo “balão de oxigénio temporário” do Turismo de Massas
OVOODOCORVO
Denúncia de "medo" e "escravatura" nos
barcos do Douro sai à rua
Medo, precariedade, escravatura laboral. O que se esconde
por detrás dos negócios de milhões dos barcos do Douro? Plataforma Laboral e
Popular organiza uma manifestação este sábado nos cais de Gaia e Porto.
MARIANA CORREIA PINTO 8 de setembro de 2017, 7:57
Salários baixos. Contratos maioritariamente temporários,
quase sempre de três ou de seis meses. Sazonalidade. Jornadas laborais de 60
horas semanais. Contínuas. Folgas em plano b. Dormidas a bordo em espaços
exíguos, sem privacidade. Refeições feitas de restos. O cenário é traçado pela
Plataforma Laboral e Popular (PLP) - e corroborado por vários trabalhadores e
ex-trabalhadores dos barcos turísticos do Douro, ainda que sob anonimato. Fala
mais alto o medo de represálias e das portas do turismo fechadas para sempre.
Amanhã, nos cais de Gaia (10h) e do Porto (15h), a plataforma criada em 2016
manifesta-se e tenta uma “organização dos trabalhadores” para combater “a
vergonha da precariedade”. Afinal, o que esconde o glamoroso negócio de milhões
dos barcos do Douro?
O turismo fluvial chegou ao rio nos anos 90 — e em quase
três décadas não há registo de manifestações com impacto ou greves entre os
trabalhadores. Sinal de paz a bordo? Não, responde Gonçalo Gomes, porta-voz da
PLP e ex-trabalhador de três empresas de passeios fluviais: consequência de “um
clima de medo” instalado. Por causa dele, a plataforma “não conta com muita
adesão” na manifestação deste sábado, uma primeira tentativa de fazer sair o
tema da sombra. Mas acredita que, aos poucos, mais gente se juntará. “O meu
caso é paradigmático. Queriam-me fora do rio e a verdade é que conseguiram. Mas
calar-me não”.
Há várias operadoras a actuar nas águas durienses. Além da
líder Douro Azul, do empresário Mário Ferreira, há outras como a Tomaz Douro, a
Douro Acima, a Manos do Douro, a Rota do Douro, a Três Séculos, a Cruise
Europe, a Viking Cruise, a Barcadouro, a Feeldouro. Neste ano devem alcançar um
milhão de passageiros, estima a Administração dos Portos de Douro e Leixões
(APDL), que revela que são 61 os operadores turísticos no rio, com 143
embarcações, 20 delas navios-hotel. “Todos exploradores”, acusa Gonçalo Gomes.
Trabalhadores serão à volta de 500, estima a PLP. Marinheiros, maquinistas,
mestres, cozinheiros, ajudantes de cozinha, copeiros, empregados de mesa e bar,
camaroteiros, auxiliares administrativos, vendedores de cruzeiros, assistentes
de bordo. “Quase todos precários”.
Por estes dias, a PLP — já com um “número significativo de
simpatizantes e militantes” e presença no Porto e em Lisboa — andou pelos cais
do Porto e Gaia a distribuir panfletos, a tentar criar um burburinho. A lista
de reivindicações é longa. “Acabar com a precariedade laboral, substituindo os
contratos de três e seis meses por vínculos efectivos, pôr fim aos ordenados
miseráveis de salários mínimos e exigir que nenhum trabalhador receba menos do
que 750 euros mensais, terminar as jornadas laborais de 60 horas sem direito a
folgas.”
Este combate “deve ser encarado do ponto de vista da luta de
classes”, diz Gonçalo Gomes, apontando o dedo a PCP e Bloco, que “dizem ser de
esquerda mas não são revolucionários”. A PLP, promete, irá “até ao fim”: “Se
todo o legalismo não funcionar podemos até passar à clandestinidade.” O
discurso mais extremado carrega, no caso de Gonçalo Gomes, nove anos de
“exploração” no rio. Passou por três empresas diferentes, mas a diferença entre
elas não era grande. “Estive sempre precário. Vi coisas que julguei impossíveis.
O Douro é ouro para estas empresas, mas não para quem trabalha nelas.”
Promessas falsas
Os bons salários e óptimas condições de trabalho nunca
passaram de promessas. Os contratos foram quase todos de três ou seis meses.
Quando chegava o período em que teria obrigatoriamente de passar a efectivo era
mandado para casa. Tempos depois chamavam-no de novo.
A bordo, as jornadas de Gonçalo Gomes eram duras. Nos barcos
por onde passou, os trabalhadores entravam ao serviço para fazer a preparação
do pequeno-almoço e continuavam até depois do jantar. Faziam pequenas pausas,
às vezes. A maioria das empresas não fazia registos de horários. “Agora já
fazem, mas é tudo forjado”. Pagamento de feriados e fins-de-semana "nunca
foram feitos". As gorjetas eram “divididas de forma injusta”. As dormidas
improvisadas em “beliches colocados em espaços minúsculos, sem qualquer
privacidade”, denuncia: “Num dos barcos onde trabalhei nem sequer se conseguia
estar de pé na zona onde se dormia.” As refeições eram feitas com restos dos
buffets dos clientes.
“A escravatura laboral é clara e aberta.” E, acusa a PLP,
ninguém faz nada por isso. Dedo apontado às estruturas sindicais: “Os
sindicatos afectos à UGT e à CGTP fornecem as respostas do costume aos
problemas de sempre”, lamentam num dos panfletos que têm andado a distribuir.
Gonçalo Gomes não é de meias palavras: “Não tenho qualquer dúvida de que há
conluios com o patronato.”
A estas embarcações, explicou ao PÚBLICO Francisco
Figueiredo, da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas,
Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT), pertencente à CGTP, “aplica-se o
Contrato Colectivo de Trabalho da hotelaria e alojamento”. Ou, pelo menos,
assim deveria acontecer: “Muitas empresas não estão a aplicar, incluindo a
Douro Azul que assinou um Acordo Colectivo de Trabalho com outras
organizações”. Por isso, justifica, “tem disso difícil organizar estes
trabalhadores”. Diagnóstico anotado: “Há muita precariedade, quase 100%.”
Era a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores do Mar
(FESMAR), afecta à UGT, quem estava nos barcos por onde Gonçalo Gomes passou. A
sindicalização, conta, é até incentivada. Mas não pelos melhores motivos.
“Estão alinhados com os patrões e a prova disso foi o que se passou em 2016”.
Foi o ano da primeira luta laboral no Douro. Ou tentativa
dela. Gonçalo Gomes estava então na Tomaz Douro e, entre os 24 trabalhadores,
nove quebraram o silêncio e o medo. Organizaram-se. “Escrevemos um manifesto
reivindicativo e pedimos à FESMAR para convocar uma greve.” No dia seguinte,
conta, “os responsáveis declararam férias sem, deixar o assunto entregue a
ninguém”. Semanas depois, acabaram por reunir-se com um representante sindical
no Porto. Não estiveram na mesma sala mais do que 15 minutos. “Começou por nos
dizer que só iam representar quem descontasse 1% do salário, quando há a
possibilidade de descontar 0,75. Uma discriminação.”
Houve uma ruptura com o sindicato. Gonçalo Gomes pediu para
se desvincular. Mas o máximo que conseguiu foi passar da contribuição de 1% do
salário para 0,75. “Eles não dizem que as pessoas são sindicalizadas, dizem que
estão a descontar para um acordo de empresas executado por eles e pelo
patronato.” O PÚBLICO tentou ouvir o sindicato afecto à UGT, mas não obteve
resposta em tempo útil.
Nos quase dez anos no Douro, o portuense viu passar pelos
barcos as finanças, a segurança social, a Autoridade para as Condições de
Trabalho. “De todas as vezes soube antecipadamente que eles iam visitar o
barco”, lamenta, descrente no sistema. “Se era a ASAE deitava-se a carne borda
fora, se era a ACT havia que fazer outras diligências.”
Enamorado do Douro, mas expulso dele, Gonçalo não esconde a
mágoa. “Ninguém quer saber dos precários do Douro, o turismo dá jeito a muita
gente”, regista como quem faz um diagnóstico. Mas há um fio solto — talvez
capaz de desencadear um “boicote” ao turismo fluvial — que a PLP procura puxar:
“Estas empresas ganham milhões todos os anos, não há qualquer justificação para
manterem os trabalhadores precários. Acredito que se os turistas soubessem o que
se passa a bordo dos barcos onde passeiam não seriam cúmplices disto.”
“O que se passa nos barcos do Douro é um escândalo. Nunca vi
nada igual.”
Teve vontade de fugir no primeiro dia de trabalho. Mas
aguentou quatro meses. Jornadas contínuas, sem folgas, espaços exíguos para
dormir, refeições feitas de restos. B. Costa não dá a cara mas quer denunciar o
que se passa no Douro: “Para que outros não passem pelo que passei”:
“Tudo começou com um telefonema. A minha ex-namorada estava
a trabalhar num barco no Douro e prometeram-lhe 1100 euros líquidos por mês,
com 70 horas semanais e duas folgas por semana. Para o cenário que temos em
Portugal aquilo era um balúrdio. Fui a uma primeira entrevista com uma empresa
de recrutamento. Prometiam alojamento, três refeições por dia, salário e
subsídio de embarque.
Disse que sim. Viajei de Lisboa para o Porto e de lá para o
Pinhão. Quando cheguei, a minha ex-namorada já tinha desistido. Aguentou uma
semana. Entrei no barco um pouco antes das seis da tarde. Pediram-me para fazer
a barba e começar imediatamente. Nem sequer me deram tempo de ler e assinar o
contrato. Tinha de começar logo. Nem uniforme tinha. A sorte foi que tinha
vestido calças pretas, sapatos pretos e camisa.
Comecei às 18h30 e terminei à 1h30 da manhã. Era quase
sempre assim. Despertar pelas 6h30 da manhã para tratar dos pequenos-almoços.
Depois, pelas 11h45, estava terminado. Às 12h30 já estávamos a começar os
almoços, até às 15h/16h. Alguns de nós iam directos para o serviço de bar,
fazer cocktails. A seguir, era preciso abrir o restaurante. Para acabar pela
meia-noite e meia no mínimo.
O contrato só assinei no segundo dia. Vinham explícitas as
40 horas semanais mas havia uma alínea no fim, que eu não reparei na altura,
que obrigava o trabalhador a fazer mais horas caso fosse necessário. Com a
indicação de que esse período seria pago posteriormente. Obviamente isso nunca
aconteceu.
Ao primeiro dia tive vontade vir embora. Foi assustador. Os
quartos eram minúsculos, dois beliches colados um ao outro, uma casa de banho
pequeníssima. Condições terríveis. O ar-condicionado não funcionava, era um
calor enorme. Não havia comida para os trabalhadores. Ou, quando havia, era
horrível e não tínhamos tempo para nos sentar a comer. Comíamos os restos dos
buffets dos clientes. Havia pessoas que iam às compras quando o barco atracava.
Compravam atum, bolachas, pão.
O salário que prometeram era mentira. Falaram em 700 euros
líquidos. Acenaram com as gorjetas. Mas essas nunca eram divididas à nossa
frente. Aos clientes era dito para não deixarem gorjetas aos empregados de mesa
porque já recebíamos um balúrdio. Era-lhes dito para deixarem num envelope no
quarto. Havia clientes que me diziam que queriam dar-me uma gorjeta e que, como
pedido, tinham deixado num envelope no quarto. Comecei a dizer-lhes para não
darem. Não fazia qualquer sentido.
Vida de cruzeiro não tem folgas. Foi-nos prometido um dia de
duas em duas semanas. Nos quatro meses em que lá estive nunca aconteceu.
Recebia 700 euros por mês brutos. Mais uns 60 euros por semana de gorjetas —
mas isso não pode entrar nas contas.
Ali, uma pessoa ali vai rapidamente à loucura. Mesmo. No
barco onde estive no Douro os portugueses começaram a desistir muito
rapidamente. Quando cheguei havia vários e, quando saí, só quatro meses depois,
estava eu e mais dois. Eram quase só trabalhadores estrangeiros. Aquilo não era
vida. Foi uma experiência muito má. Na altura não tinha hipótese de ficar sem
emprego e fui ficando. Mas foram meses terríveis. Já trabalhei noutros
cruzeiros fora de Portugal. O que se passa nos barcos do Douro é um escândalo.
Nunca vi nada igual. Lá fora não é bom, mas comparando com o que cá se passa é
um luxo. Falo disto para que outros não passem pelo que passei.”
Sem comentários:
Enviar um comentário